Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A nossa sombra é o pecado

NELSON RODRIGUES, 90 ANOS

Álvaro Larangeira (*)

A nossa sombra é o pecado. Rodrigueano. A transgressão da carne sem a carne. Do gozo sem o tremor. Do beijo sem os lábios. Rodeiam-nos o fogo dissimulado, as labaredas escondidas no quarto do olhar e a permissividade latente do silêncio. Significativo na vida são as entrelinhas da alma humana, tão vilipendiadas pelo cotidiano. A elas é preciso render a homenagem, e não ao pernambucano-carioca Nelson Rodrigues, o diabo da carne. Aquele que, se parasse de fumar, contivesse as paixões, regrasse os fluxos venenosos do sexo e dissesse amém à vida carola, comemoraria 90 anos nesta sexta-feira, 23/8; e 390, em 2302.

Mas não. O homem enveredou pela corrosiva alcova das entrelinhas. Pelo menos estava bem acompanhado. Basta lembrar de Engraçadinha. Vibrante, olhos de ressaca ? diria Bentinho ?, cruel, pura e safada, como todas as perdições. De Lúcia, ordinária por ser virgem e perigosa por resplandecer vigor. De Glorinha, incestuosa tal qual o flerte libidinoso entre a pele e o sangue. E de Odaléia, capaz de matar-se para provar a existência da fidelidade eterna. Quem dera se Luiz Inácio de Loyola Lula da Silva, Ciro Gomes de Mello, José Nos Serra e Anthony Dízimo Garotinho tivessem estas companhias. O Brasil seria o Brasil.

Seria mais real, como as condições dos empréstimos do FMI e a sina da filha da Engraçadinha. Haveria, por certo, a mesma transparência notada nas contribuições às campanhas presidenciais e na confissão do desejo paternal por Lúcia. Visualizaríamos melhor os rastros deixados pelos donos das contas ciganas espraiadas pelos paraísos fiscais e pela impulsividade de Glorinha à perversão. Compreenderíamos, de fato, o efeito pinga posterior à entrega de lambuja das estatais rendosas e a paranóica certeza da traição sentida pelo noivo da Odaléia. É, seria mais interessante. Afinal, a promiscuidade é dever do cidadão, proclamava Aldous Huxley.

Entretanto, a realidade é cupincha do aniversariante de hoje. Ela escamoteia as intenções. Esconde os potes de ouro ? pudera, qualquer descuido e os larápios levam tudo ? e da sorte ? talvez para evitar o meu enlouquecimento imediato depois de acertar os seis números da mega sena. Ritualiza, em doses homeopáticas, aquilo imprescindível aos ossos: o prazer em abundância. Afunila o já esquálido fio cambaleante da felicidade e, impiedosa, nos condiciona ao mistério da monogamia. Ela poderia ser sincera e berrar: somos todos tarados e taradas porque a nossa sombra é o pecado. Nelson Rodrigues faria isto, se não fosse a vida.

(*) Jornalista e doutorando em Comunicação Social na Puc-RS