Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A notícia da verdade e a política da mentira

OFJOR CIÊNCIA 98

Carlos Vogt

 

H

á séculos, a questão da verdade é uma das grandes e boas obsessões da humanidade. E não apenas em seus aspectos éticos e morais, mas também e, em particular, nos predicados ontológicos que constituem os fundamentos de suas definições e de suas buscas, continuamente empreendidas.

A verdade é uma obsessão, um sonho e às vezes um pesadelo, quando nos vemos ameaçados, como indivíduos ou pessoas, por sua deserção. A verdade desertora é a verdade deserta, que, por demais abandonada das mentes dos indivíduos, das práticas e dos costumes sociais, entrega-se ao abandono dos refúgios do esquecimento. Na verdade é para lá escondida.

Nos novos paradigmas do conhecimento científico, é verdade tudo aquilo que pode ser comprovado com método demonstrativo. O que equivale a dizer que é verdade tudo aquilo que pode ser negado, que pode ser falseado, isto é, para o qual podem ser oferecidas provas de demonstração em contrário. Por isso, nenhuma teoria do conhecimento pode prescindir de uma teoria da negação ou da falsidade.

Verdadeiro é o que pode ser comprovado como tal.

Na filosofia da linguagem, em particular na teoria dos atos de linguagem, uma asserção, uma afirmação deve satisfazer algumas condições de felicidade para que o ato de afirmar, de asseverar, de declarar se realize efetivamente.

A condição essencial é que o enunciado seja verdadeiro, isto é, que ele enuncie a verdade, entendida como adequação entre aquilo que se diz e o conteúdo do que é dito. É a condição ontológica.

As outras três condições, também constituintes do enunciado afirmativo são: o interlocutor deve estar interessado no que diz o locutor; o locutor acredita na verdade do que diz; o locutor pode oferecer provas para a verdade enunciada.

Embora um pouco técnico, é simples e cristalino, constituindo essas regras parte integrante de todos os mecanismos de enunciação que utilizamos no nosso cotidiano para comunicar, para informar, para descrever, para narrar, para dissertar, para dialogar, etc…

Em resumo: dizer uma verdade é enunciá-la, acreditar nela, poder comprová-la e supor, legitimamente, o interesse do outro naquilo que se lhe está sendo dito.

Faço essa rápida digressão, porque freqüentemente se tem a impressão de que a nossa imprensa não tem a menor noção do trato adequado da verdade, cometendo subterfúgios, às vezes atentados, que fazem, como dizia no início, a verdade parecer desertar dos humanos e recolher-se no deserto das solidões.

A revista Época, n? 12, de 10 de agosto de 1998, trouxe revelações de capa a respeito das urdiduras e manipulações da novela eleitoral em São Paulo.

Sob o título folhetinesco “A Última Cartada”, manchete principal da capa, a matéria, agora no interior da revista sob o título “Lula ainda tem jogo”, desdobra-se durante quatro páginas e vários fotogramas, narrando as artimanhas de um jogador manhoso que esconde no seu baralho – essa é a vinheta da reportagem – cartas decisivas como a dama de copas Marta Suplicy, o rei também de copas Orestes Quércia e – carta das cartas – o coringa Francisco Rossi. A grande cartada de Lula, segundo a revista revela, é, com arranjos e acomodações também em outros estados, fazer disso tudo um royal straight flush para a virada definitiva da vitória.

A reportagem afirma fatos e encontros, conversas e acertos, tece enredos e seduz leitores na armação revelada dos bastidores da comédia política da vida nacional.

Em tudo o que conta, naquilo que declara nos enunciados que costuram a síntese da trama, a revista se põe como revelando verdades.

Por mais inusitadas que sejam as informações, elas se organizam, pela narrativa dos acontecimentos e pela lógica discursiva dos argumentos, de maneira tão plausível que a possibilidade de ser verdadeiro já é a demonstração da verdade, ela própria.

Aliás, quanto mais inesperada for a informação, mais será satisfeita a condição do interesse do leitor por aquilo que se enuncia. Deste ponto de vista, a reportagem atende plenamente o requisito da informatividade, que uma das nossas regras apresentava como uma das condições de enunciação da verdade.

Quanto às demais regras, se a revista é confiável, ela está dizendo a verdade; se a matéria é digna de crença, a revista crê na verdade do que diz; e se o leitor aceita o que é dito, é porque a revista e/ou os autores se apresentam, no próprio texto dos fatos que contam, como capazes de apresentar provas, se requeridas, da verdade do que é contado.

É claro que nos admiramos com as peripécias e as traquinagens desses queridos personagens de nosso folhetim político e com sua inesgotável capacidade de nos surpreender, se tudo o que está afirmado em Época for verdade, e tem de ser, se forem respeitadas as regras técnicas que dela são constitutivas.

Assim, mesmo que um pouco incrédulo, por ver inimigos tão figadais se confraternizando na ideologia das oportunidades do mercado eleitoral, coçamos a cabeça e emitimos um gesto, misto de dúvida, surpresa e resignação: – Quem diria!?

Li mais ou menos desse modo a reportagem de Época e não pensei mais nela até que no dia 11, terça-feira, encontrei na Folha de S. Paulo, p.1-7, sob a manchete “PDT pressiona Rossi para apoiar Lula” uma nota, com o título “Marta e Quércia negam renúncia”, na qual era afirmado que os referidos candidatos afirmavam continuar candidatos: “A candidata do PT ao governo do Estado, Marta Suplicy, e o candidato do PMDB, Orestes Quércia, negaram ontem os boatos (o grifo é meu) de que aceitariam renunciar à disputa para apoiar Francisco Rossi (PDT)”.

Aí sim foi que fiquei de queixo caído.

Toda aquela urdidura feita de soslaios e dissimulações, de olhares furtivos e lances espertos, que a revista Época nos vendeu como verdade, aparece na Folha de S. Paulo desmanchada, diluída e concentrada na soberana classificação que tudo desclassifica: boatos.

Mentiras, pois. E quem diz de quem que quem está mentindo? Uma publicação da outra? Os candidatos das publicações? As publicações dos candidatos? Os candidatos de nós? Nós dos candidatos e das publicações? As publicações de nós e dos candidatos? E por aí vai o circo, numa regressão infinita a confundir papéis, atores, autores, leitores, candidatos, votos e eleitores, de modo que mesmo involuntariamente, todos começamos, os cidadãos, a nos sentir confortavelmente constrangidos como partes integrantes dessa comédia de erros da notícia: ágeis de novidades, globais nas bobagens, traquinas de verdade.