Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A nova mídia pós-moderna

DESFILES DE MODA

Luiz Gonzaga Motta, de Barcelona

Há de tudo no mundo da moda, além de costureiros famosos, belas modelos, lançamentos de roupas e negócios milionários. No mês passado, numerosos acontecimentos da alta-costura estiveram na mídia. Entre eles, a tenista americana Serena Williams causou espanto ao usar um macaquinho preto tipo couro, curto e justo, além de uma tiara de diamantes, na final feminina do US Open; o príncipe Charles anunciou que lançará moda country na Inglaterra (traje de caça à raposa) para ajudar produtores rurais; as autoridades inglesas proibiram anúncio sensual de Calvin Klein em que um casal seminu se beija, ele com a mão dentro da calça dela; Victoria Beckham (mulher do jogador Beckam) foi considerada a mulher mais bem vestida pelos ingleses, e a atriz Britney Spears, a mais mal vestida; e assim por diante.

Mas, o fato da alta-costura que provocou o maior impacto foi o desfile de modelos utilizando gaze hospitalar como blusas e vestidos e uma burca afegã tapando os rostos no desfile mais badalado da Espanha, em 13 de setembro. Foi um escândalo. No fechamento do Passarela Cibeles, o principal show de modas de Madri, o costureiro debutante David Delfín chocou os espectadores quando suas modelos entraram na pista encapuzadas na melhor tradição talibã, enquanto ao fundo escutavam-se gemidos de um orgasmo. A coordenadora do evento levantou-se correndo de sua cadeira e tentou conter as modelos, enquanto o diretor da casa procurava de toda forma interromper o desfile. Era tarde demais, as modelos já estavam na passarela. Na confusão, sem enxergar bem por causa das burcas, as modelos perdiam a orientação e se trombavam.

Pior ainda foi a reação da platéia. Algumas pessoas se levantaram e abandonaram o recinto indignadas pela frivolidade com que se tratava um tema delicado. O diretor da casa argumentava que aquilo era um desrespeito com as mulheres no momento em que elas lutam pela igualdade: "É uma irreverência submeter as modelos a situações de perigo em sua integridade física. Isso nunca mais voltará a acontecer."

Muito nervoso, o costureiro tentava se explicar: "Esta não foi a minha intenção, em absoluto. Vi que as meninas tiveram dificuldades e sinto muito por elas." Procurando justificar o escândalo pela vertente estética, ele explicava: Tudo vem de um quadro de Magritte, onde dois amantes se beijam encapuzados. Meu equívoco é que este é um conceito teatral, e aqui na Passarela Cibeles não há ensaio geral. São imagens, desejos inocentes que falam dos sonhos e fantasias. Talvez minha confusão tenha sido querer levar a cultura à moda, e não me refiro ao estético, mais ao espírito." Sobre a trilha sonora dos orgasmos, explicou: "Encomendei ao produtor um fundo sonoro que fosse como parte de um sonho, por isso se ouvem batidas do coração, nada mais."

Por mais que o diretor insista em que foi um equívoco levar a cultura à moda, isso já é um fato corriqueiro no mundo dos desfiles, independentemente de haver ou não ensaios gerais. Os protestos de Madri foram uma exceção à regra, e a geléia geral vai prosseguir. Muitos outros costureiros antes dele, de forma oportunista ou criativa, procuraram levar as tendências da atualidade do mundo social e político para as passarelas. Uma semana antes, na Passarela Gaudi, em Barcelona, em outro desfile badalado, duas modelos desfilaram juntas, cada uma com um alto edifício desenhado em preto sobre o vestido branco, o que o costureiro justificou ser uma homenagem ao 11 de setembro.

Os desfiles de moda são hoje grandes performances pós-modernas, na melhor acepção do termo. Quase todos se utilizam das temáticas sociais, culturais ou estéticas do momento, empregam trilhas sonoras condizentes, produzem o cenário e a iluminação apropriados e o desfile das blusas, saias e vestidos fica em segundo plano, em papel coadjuvante na produção do grande espetáculo. A beleza e a ousadia das modelos costumam ser elementos muito mais atraentes do que as peças de vestuário que estão sendo lançadas. Aliás, as modelos usam cada vez menos roupa nos desfiles, mostram mais a escultura de seus corpos anoréxicos ou a ousadia vanguardista de penteados e acessórios.

No mesmo desfile que causou espanto em Madri, outros costureiros haviam proposto temáticas pós-modernas diversas, quase sempre um simples jogo de palavras marqueteiro, nem sempre vinculado às roupas mostradas. Uma grife chamada Devota & Lomba apresentou-se com o tema Desconstrutivismo em negro, branco e tostados. O conhecido costureiro madrilenho Jesús del Pozo, com vasto currículo de figurinos para teatro e filmes, apresentava assim a sua coleção: "É como se de um puzzle se tratasse, as peças de tecidos vão se adaptando ao corpo". Outro costureiro, Antonio Pernas, apresentou-se com o tema Greta Garbo, quem sabe para lembrar o cinema noire.

Sentença out? Tanto faz

Outro costureiro, que assina Duyos, explicava assim o seu tema Aeroporto: "Depois de passar tantas horas no aeroporto, de entusiasmar-me esperando, voando, correndo, a agitação deixou marcas no meu olhar estético, na minha linguagem: são aviões, corredores, aeromoças, malas, ponte aérea, turistas, bilhetes, executivos." Texto por texto, o melhor foi o do costureiro Lemóniaz: "Caminho entre buildings da grande cidade, meu olhar desencontrado evita o que carece de estética… começa a chover, vou entrar num café. O que é isso? Me parece que levava um trench impermeável dourado sobre vestido de seda estampado. Passou muito rapidamente! Sento numa cadeira, me sinto bem rodeado, o espaço desperta meu interesse. A artista nos seduz com sua indumentária, calças muito folgadas, fazia tempo que não via uma lã tão fina, com tanto peso. A atmosfera é cordial. Decidi ficar, desfruto."

Não é preciso muito esforço para identificar no léxico da alta-costura uma tendência pós-moderna explícita. Muita verborragia publicitária para chamar a atenção, muita produção em cima, purpurinas, confetes e filigranas de linguagem para completar a "instalação". É preciso reconhecer que a alta-costura está conquistando lugar como espaço midiático, ou, melhor dizendo, está se transformando em uma mídia privilegiada para os ícones pós-modernistas. Reúne tudo que o consumismo pós-modernista precisa: ego, simulacro, superficialidade, indiferença, pirotecnia, narcisismo, androginismo, niilismo, hedonismo, individualismo. No hiper-realismo, as passarelas da moda seduzem e fascinam como todo espetáculo midiático, podendo até indignar. E, neste movimento obra-aberta, degrada sem nenhuma culpa o social, o político, o ético. Nas passarelas há informação, há estética retrô in e out, pluralismo, arte, antiarte, há diversão ligeira, riso, gozo fácil, transvanguarda, tudo pode.

Como na estética que a produziu, na alta costura tudo se exotiza, tudo se erotiza, se consome, se robotiza, se esvazia, inclusive a informação política. Mês passado, em Tel-Aviv, a Intifada foi utilizada em campanha da conhecida rede de lojas femininas Nina em sua liquidação de agosto, com o eufemismo usado pelo exército israelense ao referi-se à execução de palestinos: "execução seletiva".

Ambos "liquidavam". As peças da campanha traziam o desenho de um círculo e uma cruz, em referencia à mira do telescópio que o exército israelense utiliza para denominar sua política de assassinatos seletivos. Perguntadas a respeito, poucas clientes das lojas se indignaram. A grande maioria fazia suas compras indiferente à campanha, ou mesmo aprovando-a.

Para voltar ao desfile de Madri, uma representante da alta-costura espanhola afirmava, convicta: "Tento dizer adeus ao minimalismo e à sobriedade que marcaram as minhas coleções anteriores. Nasce uma nova mulher, a executiva de talante jovem, que combina humor radiante com o feitiço das gazes e musselinas de seda." Nada mais in. Mas, pouco importa se a sentença está out, tanto faz.

(*) Jornalista, professor e ex-diretor do Curso de Comunicação da UnB, atualmente em Barcelona para pós-doutorado