Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A novela da morte de Mário Covas

"ESTOU PARA MORRER. PODEM PUBLICAR"

Luiz Antonio Magalhães

O governador Mário Covas parece ter escolhido morrer em público, como muito bem observou Marilene Felinto, colunista da Folha de S. Paulo. Talvez pelo ineditismo da situação, mas muito provavelmente por razões mais obscuras, o fato é que a cobertura da mídia brasileira sobre o caso está se revelando um espetáculo grotesco.

Espetáculo, porque a vida – pública e particular – do governador é transformada em novela. Grotesco, porque a cada dia os jornais descobrem novas fórmulas para desrespeitar a privacidade de um homem doente, possivelmente em estado terminal. A dignidade de Covas em enfrentar suas dificuldades, permanecendo no cargo e lutando pela vida quando muitos já teriam desistido parece ser inversamente proporcional à dos profissionais que decidem a maneira pela qual os brasileiros devem ser informados.

Três casos emblemáticos


Senão vejamos, usando três bons exemplos. A primeira página do dia 17 de janeiro do Jornal do Brasil certamente vai entrar para a história do jornalismo brasileiro: uma inacreditável foto do governador com o semblante abatido e carregado por assessores, a chamada "Último ato" e o chapéu "Calvário" dominam três quintos da página (veja reprodução ao lado).

A intenção do jornal com tudo isso era chamar atenção para o editorial, publicado também na primeira página e que pede o afastamento de Covas do cargo de governador. Ainda que a intenção tenha sido boa e corajosa – o texto faz uma bela homenagem ao político paulista e advoga a tese de que ele agora precisa exclusivamente se tratar –, a edição da primeira página do JB foi extremamente infeliz. Quem não leu o texto do editorial teve a impressão de estar diante de um prematuro obituário do governador de São Paulo.

Muito piores do que a confusão mental da equipe que editou a primeira página do JB do dia 17, porém, são outras práticas. No domingo, dia 14, O Globo deu chamada de primeira página para o "furo" de Ricardo Boechat, que antecipou o diagnóstico de câncer na meninge e disparou o botão vermelho nas demais redações.

Não está claro que Boechat tenha realmente publicado a notícia antes de a equipe médica comunicar o resultado dos exames ao governador, como se noticiou durante a semana passada. De toda maneira, é importante notar que o jornalista do Globo se antecipou ao anúncio oficial dos médicos. Essa história não é nova. Em 1985, quando Tancredo Neves padecia no Incor, Otávio Frias de Oliveira, "publisher" da Folha de S. Paulo, trocava informações sobre a saúde do presidente eleito com Antonio Carlos Magalhães. E assim a Folha "furava" seguidamente a concorrência na cobertura do episódio.

O terceiro exemplo vem da mesma Folha. Há duas semanas, Covas passou por uma situação constrangedora. Durante a posse do novo dirigente da Febem, o governador não conseguiu ler o texto que havia preparado para a ocasião. Fragilizado pela doença e sob efeito de remédios, pronunciou um desarticulado discurso que deixou pasmos todos os presentes e fez com que sua mulher pedisse o encerramento da cerimônia. No dia seguinte, todos os grandes jornais noticiaram o fato, mas apenas a Folha de S. Paulo publicou as frases desarticuladas do governador. A impressão que se tem é de que foi uma criança, e não Mário Covas, quem as pronunciou.

Sinais de um naufrágio

Os exemplos acima apenas ilustram os problemas conceituais na cobertura do caso, mas não os explicam. O âmago da questão que permeia a discussão sobre o comportamento da imprensa no episódio é a oposição entre um dever e um direito. Ou seja: o dever de informar a população sobre as condições de um homem público deve ser maior do que o direito à privacidade deste homem público?

Em uma democracia, é razoável supor que a comunidade seja mantida informada sobre as condições físicas – e sobretudo as psíquicas – de pessoas que exerçam cargos públicos, especialmente das que foram eleitas para representá-la e detêm o poder de decidir sobre aspectos cruciais na vida desta comunidade. Se o governante não tem condições de caminhar, esta certamente não é uma questão de Estado, mas se ele começa a mostrar falta de discernimento sobre os documentos que precisa assinar, isto tem que ser transmitido à comunidade.

Em tese, portanto, qualquer informação poderia ser oferecida sob o pretexto de esclarecer o público da real gravidade do estado físico e mental do governante. Nesses momentos, tudo vira indício, tudo pode ter um significado oculto a ser oferecido e interpretado. O direito à privacidade daquele governante torna-se então absolutamente nulo, passa a não mais existir.

Evidentemente, o mundo real não funciona da maneira descrita acima. A cultura, os hábitos e as tradições de cada comunidade determinam a fronteira entre o que é considerado justo informar e o que é inaceitável publicar.

Voltando ao Brasil de 2001, a cobertura do caso Covas é emblemática de algumas mudanças na cultura, nos hábitos e nas tradições da sociedade brasileira. Já faz algum tempo, por exemplo, que a missão de informar bem e corretamente passou a ser confundida com o ato de saciar a curiosidade das pessoas, a fim de vender um produto de consumo massificado.

Um parênteses aqui se faz necessário. Na última década, um movimento engendrado pelas elites brasileiras e por grandes grupos de comunicação do país com enorme poder de convencimento e persuasão tem sido bem sucedido na tentativa de apresentar à sociedade brasileira valores e modo de vida que essa sociedade – felizmente – não pode almejar tão logo.

Em português claro, a tentativa é transpor para o Brasil um simulacro dos atuais valores e padrões de consumo norte-americanos. Do final dos anos 80 para cá, o grande esforço das elites foi tentar colocar – no tranco – o Brasil no último assento do fechado clube da sociedade de consumo mundial.

O problema é que o país é muito pobre, miserável mesmo. Hoje, vinte anos depois, dentro da própria elite já há muita gente duvidando que dê para pegar no tranco: preferem arrumar bem o carro antes de tentar empurrá-lo de novo.

Parênteses fechado, o que tudo isso tem a ver com Mário Covas? Muita coisa, noves fora o governador de São Paulo ter sido um dos protagonistas de toda essa história.

Se as elites não foram muito felizes em levar o Brasil ao tão sonhado mundo do consumo, os grandes grupos de comunicação fizeram bonito e cumpriram a sua parte.

A sociedade brasileira já foi, em grande parte, seduzida pelo canto da sereia: massificada, entorpecida e consumista, ela aí está, prontinha, esperando as benesses que lhe foram prometidas. Aceita e compra os jornais para saber se o governador gaguejou, se foi carregado por seus assessores, se Dona Lila chorou ou não. Engole o que vem e como vem: nada choca, tudo é considerado "normal".

Nesse processo, a mída brasileira foi paulatinamente se igualando, caminhando para o padrão do que essa sociedade de consumo esquizofrênica deseja. Assim, a cobertura da doença do governador não podia mesmo ser muito diferente. Sobriedade, capacidade de análise e informação consistente não são produtos de amplo consumo. Vide Veja.

Não deixa de ser irônico – para não dizer trágico – que o único grito de protesto contra esse estado de coisas tenha partido do próprio Covas. "Estou para morrer. Pode publicar no jornal", afirmou o governador no dia 16. Mais do que um grito, um libelo.

Ainda há quem diga que Mário Covas deveria agora se licenciar para gozar de alguma privacidade naqueles que talvez sejam os derradeiros dias de uma longa vida de batalhas. Bobagem: seria apenas mais um capítulo de uma novela cujo final você já conhece.

(artigo escrito em 17/1/1)

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