Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A novela nossa de cada dia

TV E CLICHÊ

Fernando Torres (*)

Clichês. Qualquer reflexão feita a respeito da novela repetirá a mentalidade trivial de nossos antepassados; conduzirá aos lugares-comuns já defendidos ora por intelectuais rebuscados, ora por noveleiros apaixonados; indagará sucessivamente se "reflete ou influencia", "aliena ou conscientiza".

No entanto, um pouco de coerência ajudará a mostrar que não se pode exigir lances de ineditismo sobre esse assunto. Afinal, o clichê é a matéria-prima do gênero novelesco, o responsável por sua fórmula de sucesso. Dia após dia, repetitivamente.

Quando este escriba fala em novela não se refere exclusivamente às de televisão. O gênero é mais amplo ? e também mais antigo. Surgiu na Idade Média, na Espanha, quando os menestréis corriam o mundo para propagar as conquistas heróicas de seus governantes, a maioria sem qualquer compromisso com a verdade. À época, o estilo era conhecido por "canção de gesta" e continha início, meio e fim.

A novela só começou a ser contada em capítulos na França, em julho de 1836. Curiosamente, seus primórdios estão ligados ao jornalismo. Já naquela época, as pessoas não se interessavam muito pelo noticiário; preferiam o entretenimento. Foi quando o então editor do jornal francês La Presse, Émile de Girardin, decidiu utilizar o rodapé do jornal ? conhecido como folhetim ? para publicar obras da escola romântica, então emergente.

Dor de cotovelo?

O romance Lazarillo de Tormes (anônimo) foi o primeiro folhetim publicado. Seguiram-se A menina velha, de Honoré de Balzac, e O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Consta que, precocemente neste período, os leitores enviavam cartas aos autores a fim de pedir modificações nas histórias.

Mesmo tendo população predominantemente analfabeta, o Brasil importou a novidade. Destacaram-se os jornais O Ipiranga (pioneiro no segmento), Gazeta de Notícias e Jornal do Brasil e os romancistas José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo.

Curioso é verificar que nomes atualmente consagrados pela literatura universal figuravam nos jornalões, como Júlio Verne, Miguel Cervantes e Victor Hugo. Não se tratava de novela de elite, como se pode supor em princípio. A leitura constante dos folhetins era recriminada pelos intelectuais da época.

Machado de Assis era um desses intelectuais. Como sua estilística pouco combinava com a exigida pelos folhetins, o consagrado escritor não titubeou em desferir severas críticas aos que publicavam e consumiam as novelas literárias. Dor de cotovelo ou sincera repugnância? Mais uma questão a se somar às outras.

Controversa metamorfose

Mas deixemos a história um pouco de lado. Basta ao leitor conhecer os primórdios do gênero para entender a força que a novela concentra hoje. Se o folhetim já evidenciava o poder da ficção novelesca para a eficaz alienação das massas, imagine quando a imagem e o som substituem o não tão doce prazer da leitura.

É interessante observar a controversa metamorfose do folhetim, curiosa quando se contrapõe a mídia impressa à televisiva. A aceitação do público pelo folhetim decaiu quando este começou a dar espaço à literatura realista e naturalista. O romantismo barato coube às fotonovelas e radionovelas. Na TV, o efeito foi inverso. O melodrama da pioneira Sua vida me pertence (Tupi, 1951) cedeu lugar ao realismo de Beto Rockfeller (Tupi, 1968-1969). E em vez de afundar, a telenovela prosperou.

Na verdade, o público ainda é uma incógnita para os novelistas. Em 1998, a novela Torre de Babel (Globo) chocou os telespectadores por seu realismo obstinado. O autor, Sílvio de Abreu, foi obrigado a alterar a história a fim de recuperar a audiência. Excluiu, inclusive, personagens polêmicas da trama, como o casal de lésbicas Rafaela (Christiane Torloni) e Leila (Sílvia Pfeifer).

Barreiras tênues

Moralismo? Preconceito? Difícil diagnosticar. O fato é que a atual novela das oito, Mulheres apaixonadas, aborda o lesbianismo sem grandes reações de interferência do público. Manoel Carlos, novelista responsável pela trama, pensa até em explorar o beijo romântico entre as personagens Clara (Aline Moraes) e Rafaela (Paula Picarelli).

Janete Clair, autora de sucessos como Pecado capital (Globo, 1975-1976), em depoimento à série TV Ano 25 (programa transmitido pela Rede Globo em 1975), revela a fórmula para conquistar o público: "Uma emoção de alegria, uma emoção de tristeza, uma emoção de drama." (Citado por Mauro Alencar, em A Hollywood brasileira.)

A partir daí, delineiam-se as barreiras que separam ficção e realidade nas novelas. Tênues, por assim dizer. No mesmo caldeirão, acomodam-se as clássicas discussões: ao exibir dramalhões inverossímeis, a telenovela aliena ou simplesmente entretém? Em contrapartida, ao produzir realismo, ela reflete ou influencia?

Lentes da realidade

Ora, é indiscutível que as novelas transformam a realidade, sim. "Quem fica em frente à tela corre risco de contágio", decreta Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia, na obra já citada. Não se pretende aqui estabelecer a clássica behaviorista estímulo è reação; obviamente, o processo vai além disso.

Academicamente, a influência exercida no espectador é conhecida como teoria da modelagem ou como parte de uma teoria de aprendizagem social mais geral. Segundo Melvin DeFleur e Sandra Ball-Rokeach, em Teorias da comunicação de massa, "se uma pessoa vê outra usando determinada técnica para enfrentar com sucesso um problema com o qual o observador de vez em quando tem que se haver ela pode experimentar esse comportamento como uma solução pessoal".

Assim, rapazes que queiram ser "machos" procurariam homens viris na telinha para se espelhar; moças que desejam "namorar" imitariam as técnicas de sedução das heroínas da telenovela. Por vezes o modelo exibido não exerce contemplação e reprodução individual, mas quase todos os espectadores se posicionam sobre o tema.

A constatação não é boa ou ruim por si só. Afinal, se a novela concentra tamanho poder de influência no comportamento, que seja utilizada para transmitir valores morais, éticos e de cidadania. O problema é: quem define o que é bom?

Agenda política

Sob a ótica de um discurso religioso, por exemplo, Mulheres apaixonadas se caracterizaria como aberração completa, invenção diabólica em que valores eternos seriam desmoralizados: sexo antes do casamento, adultério, homossexualismo, violência, desrespeito familiar etc. Em contrapartida, sociólogos pós-modernos veriam os mesmos temas sob ângulos diferentes e importantes para a discussão social: virgindade, fidelidade matrimonial, preconceito, uso indiscriminado de armas, agressão contra a mulher e/ou idosos. Não mudam apenas as palavras; trocam-se também as lentes.

E nem é apenas na sociedade que as transformações se refletem. Por muitas vezes, a política nacional se altera em virtude da telenovela. Aliás, desde a redemocratização do país, em 1985, política e ficção andaram de mãos dadas. Tome-se como exemplo O salvador da pátria (Globo, 1989), Brasileiras e brasileiros (SBT, 1990-1991) e Pátria minha (Globo, 1994-1995).

Pode-se afirmar que nenhuma novela provocou tanta interferência quanto O rei do gado (Globo, 1996-1997). Por meio do senador Roberto Caxias (Carlos Vereza) e do líder sem-terra Regino (Jackson Antunes), a novela discutiu a reforma agrária promovendo debate político, tanto no cotidiano popular como no Congresso Nacional e mobilizando líderes a favor ou contra o Movimento dos Sem Terra. A trama chegou a incluir os senadores petistas Eduardo Suplicy (SP) e Benedita da Silva (RJ), que discursaram em prol da reforma agrária e da paz.

No artigo "Política e Novela", publicado no livro TV aos 50, a socióloga Esther Hamburger constata: "Ao propiciar publicidade inédita ao MST, a novela [O Rei do Gado] atuou sobre a agenda política do momento a partir de um ponto de vista que não coincide com o de nenhum dos agentes sociais e políticos envolvidos." Para o bem ou para o mal? Ninguém pode catalogar com certeza; depende do grau da lente utilizada.

A volta do clichê

A euforia em transformar a realidade faz com que os novelistas abandonem os ingredientes básicos do folhetim ? a saber, o maniqueísmo e a fantasia. Tendência óbvia, mas que não se constitui regra. Tramas açucaradas como Maria do Bairro (SBT, 1997) e A usurpadora (SBT, 1998) ainda vingam, apesar de consideradas cafonas.

Torça o nariz, mas ainda existem muitos traços folhetinescos nas novelas brasileiras. A ambígua babá Nice (Glória Pires) de Anjo mau (Globo, 1997-1998) se contrapunha às demais personagens da trama. Caricaturas como as da vilã Paula (Alessandra Negrini) e da viúva falida Elisinha Ferraz (Ariclê Perez) povoam o dramalhão. O mesmo pode ser dito a respeito das histórias de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares. A indomada (Globo, 1997), por exemplo, exibia passagens absurdas, como a do delegado Motinha (José de Abreu) que caía num profundo buraco e ia parar no Japão.

Consagra-se, assim, a eternização do clichê. Na verdade, ele nunca saiu de circulação. Por mais que as novelas pós-modernas trabalhem com temas pós-modernos, o lugar-comum do velho folhetim sempre irá se repetir.

No entanto, um pouco de coerência ajudará a mostrar que não se pode exigir lances de ineditismo sobre esse assunto. Afinal, o clichê é a matéria-prima do gênero novelesco, o responsável por sua fórmula de sucesso. Dia após dia, repetitivamente.

E você nem notou.

(*) Aluno de Jornalismo em Campinas