Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A princesa não morreu, e o show continua

* A internação de Vera Fischer numa clínica do Rio mereceu em Veja (n° 1.512) o dobro do espaço da morte de Madre Teresa. Os jornais cariocas continuam puxando para a primeira página todos os problemas pessoais e familiares da atriz. Se algo lhe acontecer a culpa será certamente jogada nos paparazzi, nas colunas mundanas ou nas celebridades que exploram a mídia em benefício da sua vaidade.
* A confirmação de que o motorista do Ritz estava alcoolizado e sob efeito de antidepressivos reanimou as consciências culpadas. Novinhas em folha para continuar a prática do jornalismo abusivo. Reparem que pertencem aos profissionais que recebem os mais altos salários. Para eles o Sistema precisa continuar – é a garantia de emprego.

* Segundo o médico francês que a assistiu no local do acidente as últimas palavras balbuciadas por Diana ainda no carro foram: “leave me alone”, deixem-me em paz. Esta matéria saiu sem o menor destaque nos jornalões brasileiros. * Shakespeare continua com a palavra: há algo de podre no reino da Dinamarca.

Amarelo e marrom: Hearst, Pulitzer e as cores do jornalismo
Argemiro Ferreira, de Nova York

Na mesma semana em que o New York Times deixou de lado a tradição para introduzir cores em suas edições diárias (ver Circo da Notícia), o debate em torno do acidente que matou a princesa Diana em Paris também contribuiu para reabrir tema sugestivo no Brasil. Por que a cor do jornalismo de escândalo, amarela ao nascer com Hearst e Pulitzer nos EUA, é marrom no Brasil?
A partir da própria idéia de se atribuir uma cor, qualquer que seja ela, a esse tipo de jornalismo – sensacionalista, sangrento, fofoqueiro, irresponsável – chegamos à vertente da notícia como mercadoria e da imprensa como negócio, um e outro consagrados no modelo atual de mídia nascido nos EUA e exportado para toda parte no pacote da globalização econômica.

É curioso observar a aparente relutância, quase vergonha, com que o austero New York Times, a velha dama cinzenta, rendeu-se afinal às cores vivas – armas com as quais Hearst e Pulitzer já esgrimiam no século passado e os tablóides de escândalo esbanjam hoje, a disputar leitores ao lado de cada caixa de supermercado americano, de costa a costa.

A primeira coisa difícil de entender em relação aos primeiros tempos do que os EUA batizaram de “yellow journalism” é por que, se nasceu nos dois lados da briga Hearst-Pulitzer, um desses personagens históricos que o viveu intensamente está condenado ao opróbrio e à execração pública, enquanto o outro é consagrado como prêmio de excelência no ofício. Porque Pulitzer jamais ganharia um Pulitzer.

Dificilmente alguém ousaria contestar que, se praticado em nossos dias, o jornalismo de Joseph Pulitzer (1847-1911) certamente não ganharia qualquer prêmio Pulitzer como os 74 arrebatados ao longo dos anos pelo New York Times – embora a responsabilidade pela escolha dos ganhadores seja da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia, criada por ele. O jornalismo do New York World de Pulitzer pouco diferia do rival New York Journal, de William Randolph Hearst (1863-1951) – cujos excessos o talento de Orson Welles, diretor e ator, perpetuou em Cidadão Kane, marco na história do cinema. Na guerra da circulação, os dois lados não hesitavam sequer em contratar quadrilhas de gângsteres para explodir os caminhões de distribuição do rival.

Na questão específica da cor amarela foi Pulitzer o pioneiro, ainda no século passado. Vamos aos fatos. Inventadas as máquinas de quatro cores na década de 1890, os desenhos e cartuns de humor tornaram-se extremamente populares (“The Funny Pages”, ou simplesmente “The Funnies”). E Hearst passou a superar o rival nesse campo, com presença forte da sátira política.

O desenhista Richard Felton Outcault, inicialmente um artista técnico, atraíra a atenção de Thomas Edison, que em 1889 o contratara para integrar o grupo dedicado à exposição itinerante sobre a luz elétrica. Quando a viagem se estendeu a Paris, Outcault aproveitou para passar alguns meses no Quartier Latin, alimentando o sonho de tornar-se pintor profissional.

De volta aos EUA, ganhou emprego na revista Electrical World e, atento aos “Funnies”, começou a enviar desenhos aos jornais. O World de Pulitzer publicou sua primeira colaboração em 1894. No ano seguinte, contratou-o para desenhar uma tira regular, para a qual a inspiração de Outcault eram os imigrantes estrangeiros que transformavam o panorama da cidade. Dos personagens criados então, o que conquistou o público foi um garoto que “falava” não na forma de balões como os quadrinhos de hoje, mas em textos (linguagem popular, deliberados erros de ortografia) colocados em sua camisola larga e comprida. Antes, em preto e branco. Depois, a camisola mudava de cor – do marrom claro ao azul, tons desbotados, pouco definidos.

Onde entram os quadrinhos e Orson Welles
Coube ao homem que controlava as cores na máquina impressora do World, Charles Saalberg, descontente com o que estava sendo feito, tentar uma cor amarela bem viva na camisola do menino. Foi um sucesso. O personagem – que, apesar de quase bebê tinha nome, Mickey Dugan – virou o “yellow kid” (garoto amarelo), a grande bandeira do jornal de Pulitzer.

Passou a simbolizar ainda os extremos a que chegavam Pulitzer e Hearst na guerra da circulação. E a cor tornou-se emblemática do jornalismo que os dois praticavam na obsessão de vender jornal e fazer dinheiro, inclusive pela ferocidade com que brigaram pelo personagem. O garoto virou até personagem de show da Broadway.

Restou a Hearst roubar Outcault do rival, com proposta irrecusável. “Why is de Sunday’s Journal colored supplement de greatest ting on earth?” (Porque o suplemento colorido do Journal de domingo é a maior coisa sobre a terra?), dizia uma legenda depois da troca. O desenhista só pediu registro do copyright em 1896. Ia de um lado para o outro até Pulitzer decidir publicar o garoto sem Outcault, apoiado no pretexto de que era o verdadeiro dono, por tê-lo publicado primeiro. A história do “yellow kid” não pára aí. Na esteira de Outcault vieram os “Katzenjammer Kids” de Rudolph Dirks – que, rebatizados como “The Captain and the Kids” (no Brasil, “Sobrinhos do Capitão”), chegaram aos nossos dias – e a própria revolução dos quadrinhos, exportada dos EUA para o mundo. Mas o jornalismo sensacionalista, na linha de Hearst e Pulitzer, conservou a cor.

Nada impede que alguém, como eu, tenha simpatia tanto pela trajetória de Outcault como pelo amarelo. Ambos me fascinam. Mas Hearst e Pulitzer foram longe demais. O feito maior deles foi fabricar a guerra com a Espanha, que a ficção de Orson Welles, pouco interessada nos detalhes, só atribui a Charles Foster Kane – ou seja, a Hearst.

A verdade histórica, no caso, está menos com Hollywood do que com o desenhista que à época perpetuou para as gerações seguintes um cartum eloqüente: dois garotos amarelos (com camisolas idênticas às do personagem de Outcault), um com a cara de Pulitzer, o outro com a de Hearst, a brincar com cubos de letras e a formar, juntos, a palavra W-A-R (guerra).

Na mutação cromática, a cruzada de Dines
Até aí, o jornalismo amarelo. A cor, temos de convir, entrou nessa história como Pilatos no credo. Discriminação e preconceito, tão comuns nos EUA, voltam-se até contra cores. Amarelo tem conotação de covarde. Os Beatles o reabilitaram no Submarino Amarelo, mas ali mesmo abraçaram outro preconceito – contra o azul. Pois “blue”, em inglês, é também melancolia. Não sei até onde tais conotações negativas passam de uma cultura a outra. No Brasil o verbo “amarelar” também significa “acovardar-se”. Intrigava-me, no entanto, a tradução de amarelo para marrom. Até conhecer melhor o que foi, em 1960, a cruzada do Diário da Noite do Rio, então sob a liderança de Alberto Dines, contra a imprensa de escândalos.

Ali deu-se a mutação cromática, conforme depoimento do próprio Dines, provocado por mim. É a história também de uma campanha corajosa, que culminou com o desaparecimento, sem choro nem vela, de um punhado de publicações de escândalo e chantagem (títulos como Confidencial, Escândalo, etc.), feitas pelas mesmas pessoas, entre elas um certo Fred Daltro. Segundo o relato de Dines, chegara à redação do jornal a informação de que um jovem aprendiz de cineasta (por enquanto, apenas assistente de produção) matara-se porque estava sendo chantageado por uma daquelas revistas de escândalo. Daltro era ligado à polícia e suas revistas viviam de extorquir dinheiro de pessoas que fotografava em bailes de Carnaval e outros lugares. Dines conta: “Decidimos que seria manchete. Comecei a preparar o título. Algo como ‘imprensa amarela leva cineasta ao suicídio’. Entrou na sala em que era desenhada a primeira página nosso chefe de reportagem, Calazans Fernandes. ‘Na minha terra amarelo é cor bonita’, berrou. “Tentei contar a história da yellow press. Não deu a mínima. ‘Põe marrom, é cor de merda'”. Era certamente argumento até mais convincente do que aquele que dera origem à expressão original norte-americana – em última instância, devida ao homem que controlava a tinta nas máquinas de Pulitzer. Calazans, grande jornalista, tornou-se mais tarde secretário de educação do Rio Grande do Norte, o primeiro a utilizar o método Paulo Freire, como lembra Dines. “Foi uma das decisões mais rápidas que já tomei”, explica ainda. “Tirei amarelo e coloquei marrom – com a vantagem de ter uma letra a menos. E o assunto virou cruzada. Fui ameaçado de morte, tive de andar com guarda-costas durante algumas semanas. Mas fechamos as revistas, com a ajuda decisiva de Carlos Lacerda, governador da Guanabara. Ele gostava muito do nosso tablóide e conhecia a história da ‘yelow press’ americana”.

As definições do dicionário – e a de Geisel
O nome pegou e hoje está dicionarizado. Imprensa Marrom, segundo a primeira edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é “a que explora o sensacionalismo, dando larga cobertura a crimes, fatos escabrosos e anomalias sociais”. Definição bem parecida com a usada no Webster americano para “yellow journalism”. Como o yellow americano, o marrom brasileiro é também xingamento – em especial quando alguém, quase sempre encarapitado no poder, não gosta das verdades incômodas saídas no jornal. Meu exemplo predileto é uma declaração do general Ernesto Geisel, ao tempo em que eu era editor-chefe do valente semanário Opinião. Cobraram dele a liberdade de imprensa prometida como parte da tal “abertura lenta, gradual e segura”.

E Geisel: “No Brasil, só imprensa marrom não tem liberdade”. O tom era imperial. Mesmo se não o fosse, nenhum dos jornais excluídos por ele do rótulo, por não sofrerem censura à época, ousaria contestá-lo.

O testamento de Diana
Dora Ribeiro, de Lisboa

O título deste artigo é o de uma crônica do jornalista português Miguel Sousa Tavares no jornal Público, de Lisboa, e resume com ironia o caráter abrangente e contraditório de tudo o que se tem dito e escrito em Portugal desde o dia 31 de agosto sobre a morte de Diana Spencer. Primeiro foi a avalanche de notícias e imagens, acompanhadas por críticas ferozes à atuação dos paparazi e jornalistas em geral; uma semana depois, com os ânimos mais calmos, começaram a surgir as primeiras reflexões na imprensa. Lições de todo o gênero e curas para muitos males ganharam relevo por causa dos paparazi. Houve mesmo quem se aproveitasse políticamente do acontecimento, como o embaixador de Angola em Lisboa, que, escrevendo no semanário da elite portuguesa, o Expresso, enalteceu a coragem da princesa pela sua campanha contra a utilização de minas terrestres e pediu a sua proibição por um adendo à Convenção de Genebra. Isso, quando se intensificam as notícias de um possível recrudescimento da guerra naquele país africano.

Entre os colunistas dos principais jornais de Lisboa as opiniões dividiram-se. Alguns preferiram fazer um mea culpa, disfarçando-o de um sentimento de culpa da sociedade ocidental, que se olhou ao espelho e não gostou do que viu. “Todos se sentiram culpados”, escreveu o mesmo Expresso em editorial. No Público, um jornalista preferiu acusar os fotógrafos, que “roubam imagens a qualquer pretexto e são fortemente recompensados.” E avisou: “É preciso clarificar melhor o interesse público que justifica os seus atos. Porque senão é a própria imprensa que, um dia, sucumbe ao veneno que vai inoculando nas próprias veias”.

Outros articulistas defenderam a imprensa, lembrando que a própria Diana tinha sido uma exímia manipuladora da mídia. A Princesa das Revistas do Povo, como a chamou Miguel Sousa Tavares, abalou a monarquia inglesa sem ter de tomar a Bastilha, nem assaltar o Palácio de Inverno. “Bastou ser capa de todas as revistas do mundo”, escreveu o jornalista. Interessante foram os artigos que analisaram sociologicamente o “regabofe mediático”. Para o escritor Vasco Graça Moura, o fenômeno Diana é inexplicável e mostra que, “a continuar com estes assutadores níveis comportamentais, entre o desvario dos media e a sentimentalidade fácil e descabida, a sociedade ocidental e os seus valores vão acabar por ter também um lindo enterro”. O intelectual Eduardo Prado Coelho foi por outro caminho e escreveu: “A verdade é que as fronteiras entre o público e o privado são flutuantes e indecisas.”

O melhor resumo analítico da imprensa portuguesa que vi foi o de Victor Cunha Rego, no Diário de Notícias. “Com as circunstâncias da morte de Lady Di e as manifestações que suscitou a sociedade destapou-se”. E concluiu: “O absurdo pode acontecer agora que todos somos adolescentes, encontramos numa top model a simbologia da vida e aceitamos que o ideal esteja entre Versace e Madre Teresa de Calcutá”.

Dianaland
Ivan Lessa, de Londres

Ainda não é Dianaland, mas falta pouco. Elvis que se cuide. Na segunda-feira, um deputado (é sempre um político primeiro) sugeriu, e foi seguido pela mídia, mudarem o nome do aeroporto de Heathrow para Diana, Princesa de Gales. Eles não pensaram nas possibilidades ? Diana sem teto. Fittipaldi cai e quebra duas costelas em Diana. Acidente em Diana provoca congestionamento.
Em algum canto das ilhas, um rapaz solitário (“He was always very quiet….”) azeita a arma clandestina e jura vingança. Pessoas pop preparam concerto beneficente (a promoção decorrente não vem ao caso, né mesmo ?). Os tablóides e broadsheets prometem discrição, inaugurar uma nova era (isso é nome de armarinho) em suas relações com a família real. O Sun, o Mirror, o Daily Star e o Daily Mail (aqueles que, ao contrário de nossa tradição de O Dia, você espremendo sai batom e esperma, e não sangue) juram nunca mais publicar foto disseram sobre os outros membros da Firma, tal como a família real (foi George VI, – ou 6o, né Frias ?, – quem apodou ) é conhecida. Na terça-feira, o Daily Express também jurou fidelidade à bandeira.

Bottom line, conforme se diz em Netspeak (George Orwell, você não sabia de nada), estão passando recibo de que foram canalhas no passado e, talvez pior, reagindo a um discurso carregado de vingança e mesquinharia feita por um conde playboy residente da África do Sul condenando não só toda a imprensa como também desafiando e tripudiando por sobre a Firma. Mais engraçado ainda: o Visconde Rothermere, dono da Associated Newspapers, por sua vez dona do Daily Mail, o Mail on Sunday e o Evening Standard, prometeu – o verbo é dele – não usar fotos de paparazzi a não ser aprovadas por ele próprio. Linha do botão de novo: só o dono do jornal tem o discernimento necessário para saber se uma foto é ou não publicável. Pergunta-se: tem que ser aristocrata também? Dono de jornal é dono de jornal, in accents yet unborn, para citar Guilherme Balancalanca, conforme é de praxe e Praxedes Porcalhão sempre que se estiver mandando dispatches da Inglaterra.

Drops. Rápidas e rasteiras. Pinga fogo. Ah, saudades dessas seções com esses nomes bobinhos…. Agora, óbvio, é a mesma coisa, só que mal dublado.

A imprensa britânica – broadsheet e tabloidal – driblou até a própria sombra, entre segunda 1 e sexta 5 de setembro. Ó, gozo de alivio poder tirar paparazzi da 1a. pg. e tacar velocidade e índice de álcool no sangue. Viu, foram eles! Além do mais, isso ficou apenas nas entrelinhas, fran-ce-ses, blast them! Depois, insuflada e insuflando os fleumáticos macumbeiros de flor na mão, deu o grito de lincha, lincha a família real, uma gente insensível como – digamos assim, um paparazzo – refugiada, tem cabimento? – num palácio na Escócia. Já se viu? “No mercy, show us you care, the Queen bows to her subjects”, foram algumas das manchetes. No meio de um lago oval – entre flores, muitas, mas muitas mesmo, flores -, repousa Diana, a mulher mais fotografada do mundo, o primeiro ícone a nascer e morrer em plena aldeia global. Era bonita, elegante, tinha o instinto sanguinolento de um toureiro de Hemingway para irritar e amansar o touro furioso, bufante e babante da mídia. Princesa do Povo, conforme alcunhou Tony Blair (novo Labour tão sem idéia do que fazer quanto velho Labour)? Mais para Musa Mediática. Tinha aquela piada: Ruy Barbosa? Diz um troço aí dele? Diz um troço aí da Diana. Mas sem esquecer das 100 caridades que ela mandou se roçar nas ostras quando resolveu se concentrar nas com mais Ibope. Ela dormiu com o homem que poderia vir a ser rei. Ela pariu o menino que poderá vir a ser rei. Ex-mulher de rei, mãe de rei, não morre em desastre de automóvel dirigido em alta velocidade por bêbado, ao lado de playboy em Paris.