Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A próxima vítima pode ser você

CÂMERAS OCULTAS

Antonio Brasil (*)

Eu bem que avisei: com títulos como "tráfico reage à câmera oculta", a nossa imprensa noticiou há alguns dias que um editor de imagens da Globo passou quase 48 horas seqüestrado. Traficantes da Rocinha queriam saber quem gravou as cenas que flagraram a venda de tóxicos nas favelas do Rio. Ou seja, mais uma vez, acabou sobrando para os pobres profissionais da imagem, editores e cinegrafistas, a responsabilidade por uma decisão perigosa e unilateral por parte dos responsáveis pelas nossas empresas jornalísticas.

Parece que, além da questão ética e legal, agora temos um problema sério de segurança profissional. Fazer jornalismo de televisão que busca sensacionalismo e audiência a qualquer preço está cada vez mais perigoso. A velha investigação jornalística toma um atalho muito mais fácil e conveniente pelas novas trilhas abertas por mais uma tecnologia poderosa: a câmera oculta. Por uma módica quantia, qualquer pessoa hoje pode começar uma brilhante carreira de "jornalista dedo-duro"!

Mas, afinal, quem decide a utilização dessas câmeras e quem opera esses equipamentos? Como jornalista, tenho o direito de recusar? Será que para manter o emprego tenho mesmo que virar agente secreto ou policial? Tudo é justificável para conseguir um flagrante que os profissionais da nossa segurança sequer ousariam tentar?

Por várias razões, sempre fui contra a utilização de câmeras ocultas por jornalistas sem a devida autorização judicial. Assim como grampear telefones, é ilegal. A decisão de entrar na minha casa ou em qualquer lugar com uma câmera oculta não deveria estar limitada a uma decisão unilateral de qualquer editor baseada em um suposto "faro jornalístico" ou em "denúncia" muitas vezes anônima.

Desculpa irresponsável

A desculpa de que práticas como essa são necessárias e inevitáveis, que são a essência do jornalismo, sempre me pareceu, no mínimo, irresponsável. É muito poder para um mero jornalista decidir o que deve ou o que não deve ser pauta de uma equipe de TV armada de um instrumento tão perigoso.

As limitações impostas pelas leis para a investigação policial e jornalística visam proteger, antes de tudo, inocentes. Mas parece que o importante mesmo é uma boa história. Os fins justificam os meios e jornalismo é isso aí!

Tempos atrás, após um desses seminários sobre telejornalismo, tive uma discussão acalorada com um dos principais editores da TV Globo sobre o tema. Demonstrei minha preocupação não só pelo ponto de vista ético e legal, mas também em relação à questão de segurança profissional e mesmo pessoal. Disse, então, que era contra, achava perigoso e afirmei que jamais utilizaria esse tipo de equipamento. A resposta veio de forma fulminante. "Então eu te demitiria". Nunca esqueci esta frase.

Na verdade, isso me fez lembrar de outras épocas, da história recente do nosso telejornalismo. Épocas que nos esforçamos tanto para esquecer e muitas vezes omitir. Anos atrás, durante a ditadura, equipes de televisão também obedeciam ordens de seus editores. Profissionais que precisavam de seus empregos participavam de outro tipo de "entrevistas" (sic) com os prisioneiros secretos do regime. Eram pobres coitados que inocentemente acreditavam estarem falando para o grande público da televisão brasileira. A câmera não era oculta, mas a má fé jornalística era! O resultado dessas gravações secretas acabavam sempre em poder dos órgãos de segurança com a conivência envergonhada de tantos profissionais. Eram tempos difíceis para a prática jornalística. Mas parece que hoje, aqueles tempos nos ameaçam mais do que nunca.

É óbvio que câmera oculta pode denunciar tráfico de drogas, prática médica duvidosa, policiais corruptos ou até mesmo clínicas de aborto tão bem freqüentadas por nossas próprias esposas, filhas ou amigas. Mas, dependendo da época e da perspectiva, também podem revelar as estratégias e os sonhos loucos ou subversivos de jovens apaixonados que só queriam mudar o Brasil. Na época, é bom lembrar aos mais jovens, isso era tão ou mais ilegal do que tráfico de drogas.

Tecnologia não é o problema

O problema, obviamente, também não é da tecnologia. A imaginação do homem é sempre maior do que as expectativas modestas e seguras dos seus criadores. Cabe sempre ao homem decidir como ele vai utilizar tecnologias como as câmeras ocultas no telejornalismo ou o antraz nas pesquisas científicas em guerras bacteriológicas nos laboratórios oficiais americanos. O problema é quando elas saem do nosso controle. Num país como o Brasil, onde centenas de "arapongas" ainda trabalham para órgãos de segurança do governo ou para jornalistas ambiciosos, parece que podemos estar diante de um grande problema.

Em clima da histeria coletiva, após os últimos atentados contra os Estados Unidos e as ameaças de guerras bacteriológica e guerra contra o terrorismo mundial, vivemos novamente a possibilidade de perdermos direitos constitucionais que foram arduamente conquistados após muitos anos de lutas. A cada dia que passa, lemos na mídia sobre a aprovação em tempo recorde de mais uma medida legal dando ainda maiores poderes ao poder estabelecido. Por enquanto, é nos Estados Unidos. E amanhã?

A história, muitas vezes, tende a se repetir sem a mínima consideração ou imaginação. Todas as mudanças e toda a oposição crítica, as duas tão necessárias e urgentes, se tornam mais difíceis. Em todos os cantos, a uniformização das idéias marcha orgulhosa. Cabe novamente à mídia independente conquistar os corações e mentes, principalmente dos tímidos e indecisos.

Bom jornalismo investigativo dá trabalho, requer tempo, bons profissionais e pode custar muito dinheiro. Câmeras, ocultas ou não, são instrumentos poderosos na mão de bons jornalistas. Mas considerando a nossa realidade de grande poder hegemônico na televisão e a nossa história recente, permitir a utilização de tecnologias tão poderosas como a câmera oculta sem qualquer tipo de controle pode provocar suas primeiras vítimas em breve. O problema é que essas vítimas podem não ser necessariamente bandidos e corruptos. A próxima vítima pode ser você!

(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de vídeo e professor de telejornalismo da UERJ e doutorando em Ciência da Informação na UFRJ.

    
                   
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