Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A queda de um dogma

LIBERDADE DE IMPRENSA

Carlos Eduardo Pestana Magalhães (*)

Não é só a imprensa norte-americana que está falseando informações na invasão do Iraque. Parte da mídia britânica vai na mesma direção. A "jornalista" Christina Lamb, do Sunday Times, na matéria "Na Basra dos fedayn" (O Estado de S. Paulo, 8/4/03, página A 20, caderno 2? Guerra do Golfo) tenta fazer a ligação entre a situação política no Iraque e a cidade de Basra, com a resistência armada que as tropas inglesas estão enfrentando. Ela escreve o seguinte sobre os fedayn: "…era possível ver pequenos grupos de homens vestidos com macacões pretos, montando guarda. Mesmo a distância se podia sentir sua malignidade. Esses eram os temidos fedayn de Saddam Hussein, os paramilitares criados pelo filho mais velho do ditador, Uday, para eliminar todos aqueles que ousassem opor-se a ele e que estavam à espera das forças britânicas que entraram em Basra, a segunda cidade do Iraque".

Ela arriscou a vida, entrando na cidade sitiada dentro de um táxi, para escrever o óbvio sobre a situação política iraquiana. Como qualquer ditadura, a iraquiana também criou instrumentos próprios de manutenção do seu poder. Os fedayns fazem parte desta estrutura e são conhecidos pela sua ação repressiva há anos. Qual a novidade nesta informação? Pelo texto é possível inferir que as tropas britânicas, invasoras do Iraque, não deveriam sofrer nenhum tipo de resistência por parte de ninguém, visto que a "principal missão" deles é a de salvar o povo iraquiano de Basra do destino cruel do regime ditatorial de Saddam Hussein e ajudar na instalação de um regime democrático no país.

Mais à frente, Christina escreve que "parece não haver dúvidas de que a maioria das pessoas de Basra odeia Saddam. As forças britânicas pensaram que os moradores se rebelariam novamente, mas isso não ocorreu. Os britânicos despejavam folhetos com os dizeres: ?Desta vez, nós não abandonaremos vocês?". Finalizando o texto, ela insiste em que "quando o povo de Basra ficasse sabendo da entrada das forças aliadas em Bagdá, as forças britânicas esperavam que, mais uma vez, tivessem a coragem de rebelar-se". Que oportunismo barato. Quer dizer que só assim os valorosos soldados da rainha conseguirão controlar a cidade?

Imprensa controlada

Será que para Christina a coragem do povo de Basra é avaliada pela ação de se rebelar contra Saddam, e não de defender seu território, seu país, de uma invasão militar? A luta em Basra, apesar da enorme diferença de material bélico entre as duas forças combatentes ? de um lado o moderno e bem equipado exército inglês e do outro os fedayns e o exército regular iraquiano, ambos mal equipados ? continua dura e sangrenta. Os malignos fedayns ainda estão impedindo que os democráticos e, provavelmente, bonzinhos tommys britânicos dominem totalmente a cidade de Basra. É claro que os ingleses ocuparão totalmente a cidade, mais tempo, menos tempo, em função da superioridade do equipamento militar. Mas isso deverá acontecer à custa de muita luta e de muitas vidas.

O que causa algum espanto para dizer o mínimo é que, salvo por opção ideológica, como é possível que jornalistas ianques e ingleses aceitem esse papel de desinformar os leitores, escrevendo falsidades, fazendo propaganda política e militar, aceitando uma censura escrachante das forças militares? Os jornalistas que estão cobrindo esta invasão ao Iraque sabem o real motivo dela.

Nada obriga Christina, uma cidadã inglesa e jornalista, a ver e informar o que está acontecendo nesta invasão somente pela ótica dos governantes do seu país. Se fosse assim, outros jornalistas britânicos ? e alguns ianques, também ? não estariam fazendo o que se espera de um jornalista: contar o que está acontecendo de fato e a razão disso tudo. Não é para isso que existem jornalistas e veículos de comunicação? Esta situação de parcialidade nas informações dos jornalistas embedded (incorporados) aos exércitos ianques e britânicos abre séria discussão sobre o real papel dos jornalistas, principalmente em nações democráticos como os EUA e a Inglaterra.

Uma coisa é a imprensa controlada, censurada em países totalitários, ditatoriais ? como no Iraque e em muitos outros da região e fora dela ?, onde o trabalho de jornalistas na prática é de propagandistas do regime político opressor. É de se esperar que algo assim ocorra nas divulgações oficiais e oficiosas nesses países. Os veículos de mídia passam a ser meras extensões dos governos e toda informação é controlada. Normal, nada de novo no front.

Conceito fragilizado

Agora, mesmo que as forças armadas dos EUA e da Inglaterra considerem esta ou aquela informação classificada, é inadmissível que veículos e/ou jornalistas, por vontade própria ou por pressão, acabem se autocensurando. Patriotismo, covardia, falta de profissionalismo, medo, ordens, não importa qual a justificativa, esse comportamento de falsear a informação vai de encontro a valores como ética e responsabilidade social do jornalista e dos veículos de informação, de reter, mascarar, modificar, inventar, mentir ou subtrair qualquer informação do público.

Diante desta situação real, qual a moral que a mídia destas duas nações invasoras ? EUA e Inglaterra ? têm, de agora em diante, em julgar esta ou aquela situação de falta de liberdade de imprensa, neste ou naquele país? Abriu-se um precedente grave nos dois países em que a liberdade de imprensa sempre foi quase um dogma. Pior ainda, nos EUA, onde a maioria dos veículos aceitou o controle das informações. Vários jornalistas conhecidos no país deixaram claro que esta opção custaria caro à credibilidade dos veículos, mas é a nação que está em guerra, "são os nossos soldados que estão lá", disseram. Positivamente, não "remariam contra a maré" patriótica da população.

Mesmo que esta invasão custe a vida de muitos jornalistas, como de fato está custando. Mesmo que o exército americano deliberadamente dispare contra jornalistas ? caso do Hotel Palestine, em Bagdá, onde morreram três profissionais ? ou contra veículos que divulguem a guerra com enfoque diferente, caso da TV al-Jazira, do Catar.

Além das vítimas civis ? os militares são profissionais, estão nesta guerra por opção e sabem dos riscos ?, o conceito de liberdade de imprensa, tão caro e tão duramente conquistado ao longo de décadas na história, corre o risco de sair chamuscado e mais fragilizado neste episódio. Nem por isso a luta deixa de ser válida e, cada vez mais, fundamental para o aperfeiçoamento da democracia no mundo todo. Qualquer democracia verdadeira necessita de uma imprensa livre, responsável e ética. Afinal, não há pessoas burras, e sim sem informação.

(*) Jornalista