Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A quem interessa formar senso crítico?

DOMINGO ILEGAL

Sylvia Moretzsohn (*)

A oportuna lembrança de recentes episódios que misturam ficção e realidade envolvendo a trama da (e o noticiário sobre a) novela das oito ajuda a redirecionar a discussão em torno do escândalo promovido pelo programa do Gugu. Mas parece que o professor Muniz Sodré esquece um de seus principais argumentos, ao afirmar que esse "claro sintoma histórico de resvalamento do real para o imaginário" é "vigiado apenas pela imprensa": justamente, no caso da novela, a imprensa ? ou pelo menos a parte dela vinculada às Organizações Globo ? é cúmplice desse processo.

Talvez faltasse destacar um detalhe nada insignificante: o de que esse "curto-circuito entre imaginário e real" seja condenado apenas quando assume ares agressivos, contra a "cultura da paz". Pois, nesses tempos em que o Estado oferece como imagem-símbolo de seu projeto de desarmamento a cena da destruição de armas de brinquedo, a mistura entre realidade e ficção é sempre saudada quando voltada para o "bem". Chega a ser uma expressão de civismo, com direito à integra do Hino Nacional fechando a cena.

E o grave efeito disso tudo ? a debilitação da capacidade do senso comum de "fazer a distinção (…) entre o que efetivamente acontece e as simulações do acontecimento", isto é, o enfraquecimento da possibilidade de formação de um senso crítico ? continua a produzir seus estragos mais profundos.

Mas a quem interessaria a formação de um senso crítico, não é mesmo?

Mídia e sistema penal

Se puxarmos um pouco pela memória, veremos que esse enorme iceberg já mostrou suas pontas inúmeras vezes, fornecendo pautas extensas para as capas dos cadernos autodenominados de "cultura", que se espantam com o festival de baixarias produzido na briga pelo Ibope. Depois tudo retorna ao seu leito "natural", isto é, o leito do mercado, que é onde se forjam esses escândalos.

Ocorre que os programas sensacionalistas não são autônomos, não existem apenas pela vontade de seus apresentadores e patrocinadores. Fazem parte do modo predominante de conduta da televisão comercial. Por isso, não creio que devamos "acompanhar mais de perto" apenas esses programas, mas a programação ela mesma, de modo abrangente. Talvez aí identifiquemos os vínculos que unem os programas de escândalo a outros ? inclusive jornalísticos ? aparentemente inocentes e até elogiados como porta-vozes dos direitos do cidadão.

É importante lembrar também que, no campo da comunicação, existem vários estudos a respeito de programas policiais e das relações mais gerais entre mídia e sistema penal, que podem fornecer argumentos importantes para esse necessário acompanhamento.

(*) Jornalista e professora de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense