Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A receita desandou

ARGENTINA

Jorge Marcelo Burnik, de Buenos Aires (*)

Com certo estupor, alguns argentinos assistem ao Jornal Nacional (da Globo Internacional), uma espécie de pregão geral, onde a voz do FMI diz a toda hora que na economia o Brasil está "fazendo a coisa certa". Mesmo diagnóstico que há quatro ou cinco anos podia ser ouvido na mídia argentina, do mesmo emissor, até o fim do governo de Menem. Na língua do FMI, a Argentina estava fazendo a coisa certa, até se falava que a Argentina era o "aluno exemplar". E o povo acreditou e o povo se enganou. Ou será que eles falavam a verdade e nós não entendíamos? A economia e a mídia argentina, sem saber, foram cúmplices de uma "meia-verdade", pois a economia argentina dos últimos anos fez as coisas certas, sim, mas para o FMI, não para o povo. "Só vê quem entende".

De outro lado e mais perto no tempo, a mídia refletiu uma realidade fortemente pré-assinalada: a saída do time argentino do Mundial de Futebol chegou cedo para muitos. O esperado efeito "anestesiante" do entretenimento acabou na primeira rodada, acima do qual a comissão do FMI vinda à Argentina manifestou que os esforços feitos até agora não são suficientes. Estas declarações foram condenadas pela mídia e pelo povo, mas não pelos políticos argentinos que, alheios ao valor e à crueza da sugestão da comissão internacional, ainda acreditam que se o povo se reprime mais o FMI vai abrir mão de novos empréstimos. Mais uma prova de que o povo e os seus representantes não sintonizam o mesmo canal…

Também, e como uma piada surrealista destes tempos, a mídia apresentou a notícia de mais de uma centena de vacas e cavalos mutilados nas pampas argentinas. Animais dos quais foram extraídos órgãos não-comestíveis e cujas feridas foram cauterizadas macabramente. Alguns meios sensacionalistas o apresentaram como a ação de alguma seita (jornal Crónica), outros mais bem-humorados sugeriram que pela desvalorização da moeda até os extraterrestres decidiram vir experimentar a cotada carne argentina (Canal 13). Entre brincadeiras, o verdadeiramente sério é que o setor da produção primária está quase falido, e a chacina não melhora as coisas: as perdas já atingiram os 50 mil pesos (TN, 20/6/02). Como para extinguir o ceticismo de que "nada poderia ser pior", na terça-feira 18/6 um sismo fez tremer boa parte da Argentina, sem provocar mortes.

Para a maioria da mídia (senão toda), um verdadeiro terremoto é a intenção das Forças Armadas do país de tomar posições de controle social que já se pensavam perimidas. Nas últimas semanas a Marinha pediu para voltar a tomar conta da segurança interior, o que foi traduzido pela mídia como a reencenação da idéia do "inimigo interno", que custou a vida de mais de 30 mil pessoas durante a ditadura militar dos anos 70, segundo o jornalista Horacio Verbitsky em <www.pagina12.com>, em 16/6/02. Parece que como há suspeita de vários setores sociais de acefalia do poder governamental, cada organização (neste caso a militar) começou a negociar prerrogativas, mas desta vez os sinais de alarme não aguardaram, e vieram da mídia como a única memória perdurável num tempo onde tudo muda rápido.

O anúncio do governo de Duhalde de entregar ao povo bônus pelo dinheiro do curralito foi condenado pela mídia como um verdadeiro "calote coletivo", porém sem o uso diretamente desta palavra, e sim um jogo discursivo bastante astucioso. Só o povo, na voz de um poupador afetado pelas decisões da equipe econômica, ilustrou com clareza o sentir de muitas pessoas ao dizer: "O governo já decidiu que a alternativa é o calote, agora propõe que o povo escolha a forma de legitimar a ação que prejudicará a muitos, em prol do bom negócio de poucos" (America TV).

Lier, go home!

Outra matéria manchete dos jornais foi o "escracho" a Menem durante palestra na Universidade Jesuítica de Fordham, em Manhattan (EUA). Na ocasião, o ex-presidente foi esculachado quando falava a estudantes e ao público em geral. A repórter de uma rádio portenha relatou que, quando Menem expôs que "seu governo foi um dos que mais lutaram para combater a corrupção", ouviram-se gargalhadas da platéia. Na saída, cerca de 40 argentinos residentes e alguns americanos lhe gritaram "ladrão", "corrupto", "lier" (mentiroso). Na mídia, o ex-presidente minimizou o escândalo, mas dentro do contexto de descrédito de políticos e ex-funcionários, a posição do ex-líder do peronismo passou despercebida para muitos, e ganhou destaque um processo contra Menem por sonegação de impostos por imóveis da sua propriedade (Canal 13, 21/6/02).

Para contestar a degradação da imagem pública do ex-presidente, "pulou" às paginas dos jornais Maria Julia Alsogaray, ex-funcionária de Menem, que tentou criticar aos caceroleros (paneleiros) ao dizer que as pessoas que esculhambam o ex- presidente "prejudicam a imagem da Argentina no exterior". Imediatamente a mídia contra-atacou com o discurso de que a imagem nociva do país não tem a ver com os "caceroleros", e sim com os fatos de corrupção precisamente incrementados nos últimos governos (Martín Granovsky, Página 12, 19/ 6/). Também lembrou a mídia que a ex-ministra de Ecologia e Meio Ambiente M. J. Alzogaray está sendo investigada por "locupletamento" na sua passagem pela função pública, com muitos outros da "ineptocracia" argentina dos anos ?90.

Aliás, o já conhecido efeito tango estaria adquirindo características novas, segundo a mídia argentina e os analistas macroeconômicos que nela se exibem, pois a precarização do mercado brasileiro poderia implicar maior incerteza na já minguada economia argentina, por ser o Brasil um dos maiores compradores de produtos de origem argentina. O efeito nos países "menores" já começou a ser sentido: no Uruguai o peso uruguaio regrediu marcadamente em relação ao dólar; no Paraguai, o Banco Velox anunciou que iria embora, e no Chile também saíram a pedir o auxílio do Banco Mundial e desvalorizaram sua moeda, diante do escuro horizonte <www.infobae.com>.

E para piorar ainda mais o ânimo dos argentinos, o presidente Duhalde saiu a dizer que "o pior da crise já passou" (Radio Nacional), o que foi interpretado com preocupação pelo povo, pois, no passado, a cada declaração deste tipo sucedeu um trambolhão na situação sociopolítica do país. Já soa como um eco da mídia uma poética e popular frase, que não perde atualidade: "Hoje, mais do que nunca, os argentinos estão se unindo não tanto por amor, e sim pelo horror dos dias por vir…"

(*) Jornalista graduado na Universidade Nacional de Misiones, Argentina