Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A ressurreição da "lei da mordaça"

MÍDIA CERCEADA

Hugo Nigro Mazzilli (*)

A imprensa, nas últimas semanas, tem-se ocupado com os desdobramentos políticos decorrentes do episódio da busca e apreensão de dinheiro e documentos na empresa Lunus, da qual é acionista Roseana Sarney. Nesta última semana, os jornais noticiaram que, em retaliação às investigações do Ministério Público que levaram à busca e apreensão, alguns setores do Congresso resolveram retomar projetos de lei antes adormecidos?

Sob o pretexto de que é preciso evitar abusos de autoridades, os projetos de Lei da Câmara, n? 65, e do Senado, n? 536, de 1999, contêm dispositivos que não podem passar sem registro. Em especial, três deles preocupam, o primeiro porque visa inviabilizar a prestação de contas das autoridades à população por meio dos órgãos da imprensa:

1?) A inclusão da letra "j" ao art. 4? da Lei 4.898/65, que passa a considerar abuso de autoridade do magistrado, membro do Ministério Público (MP), membro do Tribunal de Contas, autoridade policial ou administrativa que revele ou permita, indevidamente, que cheguem ao conhecimento de terceiro ou aos meios de comunicação fatos ou informações de que tenham ciência em razão do cargo, e que violem o sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra das pessoas.

A "Lei da Mordaça" merece repúdio:


a) Por certo não se admite, indevidamente, a quebra do sigilo legal ou a exposição da intimidade, vida privada, imagem e honra das pessoas, que se presumem inocentes até condenação judicial definitiva. A divulgação de informações pela imprensa, ainda que de dados fornecidos pelas autoridades, está sujeita a limites éticos e legais, justamente para evitar abusos;

b) A quebra do sigilo legal já é hoje crime (art. 325 do Código. Penal ? "revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação");

c) Essa quebra já é hoje ato de improbidade administrativa (art. 11, III, da Lei 8.429/92 ? "revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo");

d) A mesma conduta já enseja sanção pecuniária, inclusive por danos morais;

e) Salvo quando a própria lei imponha sigilo, a regra da Administração é a publicidade (art. 37 caput da Constituição). Lógico que, se um ministro de Tribunal, um procurador ou um promotor de Justiça, um delegado de polícia ou mesmo o presidente da República divulgarem pela mídia fatos sigilosos, ou violarem indevidamente a intimidade alheia, já serão responsáveis em face da lei vigente;

f) Mas, criar uma mordaça será dar a farta e desfavorável visão de que se tenta esconder algo, com o gravíssimo risco das investigações, inquéritos e procedimentos secretos, que podem ser guardados em gavetas para ser brandidos contra adversários somente nos momentos de conveniência, o que é inadmissível no Estado de Direito;

g) E, ao contrário do que ocorre hoje, em que a autoridade que presta uma informação à imprensa ou à população identifica-se e responde por eventuais abusos daí conseqüentes, o que vai acontecer, se aprovado o dispositivo, é que muito certamente as mesmas informações continuarão a ser passadas à imprensa, mas só em off, mantendo os jornalistas o sigilo de fonte. Haverá acusações irresponsáveis, sendo o remédio pior do que a doença.


2?) A inclusão de um ? 5? do art. 17 da Lei 8.429/92, segundo o qual a ação de improbidade será ajuizada diretamente no tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou a autoridade.

A solução não merece endosso porque:


a) Viola o princípio da igualdade, criando um favorecimento processual odioso, pois os demais brasileiros não têm foro privilegiado para as ações civis ordinárias;

b) Fere a tradição de nosso Direito nas ações cíveis ordinárias, subtraindo o juiz natural da ação popular e outras ações de responsabilidade civil;

c) O dispositivo confunde conceitos, pois a ação de civil improbidade não tem cunho penal;

d) O dispositivo ainda contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que repudia o foro especial nos casos de ação civil pública.


3?) A instituição de um recurso administrativo com efeito suspensivo contra a instauração de inquérito civil, mediante a inserção de um ? 3? ao art. 8? da Lei 7.347/85.

A proposta também não é adequada porque:


a) O inquérito civil, como todo procedimento pré-processual meramente investigatório, não cria direitos nem obrigações. É apenas uma preparação para que o MP reúna elementos para saber se há base ou não para propor uma ação civil pública que, esta sim, será ajuizada perante o Poder Judiciário. Tanto assim que a grande maioria dos inquéritos civis é arquivada;

b) Se no inquérito civil faltar justa causa para a instauração, já há meios processuais para trancá-lo, como o mandado de segurança;

c) Um recurso com efeito suspensivo pode paralisar as investigações, com prejuízo à sociedade e ao investigado;

d) A proposta é inútil, pois que o MP não é o único legitimado para agir em matéria cível em defesa do patrimônio público (ao seu lado temos o cidadão, pela ação popular, e a própria Fazenda), que não estariam alcançados pela suspensão do inquérito civil.


Enfim, se o Congresso quer mesmo aperfeiçoar os instrumentos legislativos do país deve cuidar para que não haja retrocesso.

Os formadores de opinião devem alertar a população sobre os verdadeiros efeitos desses projetos, que visam inviabilizar o acesso à informação, quando não inviabilizar as próprias investigações em si mesmas.

(*) Advogado e consultor jurídico; ex-presidente da Associação Paulista do MP de São Paulo

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