Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A revista e o escritor

CARTACAPITAL

Paulo Lima (*)

Em sua edição 229, de 26/02/03, a revista CartaCapital noticiava mais um imbróglio envolvendo o político baiano Antonio Carlos Magalhães. A manchete de capa, uma óbvia alusão ao título homônimo do romance de Gabriel García Márquez, anunciava que o “outono do patriarca” chegava enfim ao seu ocaso. A reportagem propriamente dita, esmiuçando o episódio dos grampos, pode ser lida à página 20 e tem como título uma referência a outro romance do escritor colombiano, Ninguém Escreve ao Coronel. O título utilizado pela CartaCapital, “Ninguém telefona ao coronel”, foi assim justificado no início da matéria:


“Essa corruptela do título do livro Ninguém Escreve ao Coronel, de Gabriel García Márquez, resume bem o momento pelo qual passa o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA)”.


Essa não foi a primeira vez em que o autor de Cem Anos de Solidão marcou presença indireta nas páginas daquele semanário, emprestando seu rico simbolismo aos redatores da CartaCapital. Em sua edição 176, de 13/02/02, a revista de Mino Carta veiculava a notícia do seqüestro do publicitário Washington Olivetto sob a seguinte manchete: “Notícias de um seqüestro”, uma leve corruptela do romance Notícia de um Seqüestro, de García Márquez.

Já em sua edição 227, de 12/02/03, Carta uma vez mais evoca García Márquez, ou, mais exatamente, o estilo que lhe consagrou. À página 6, a matéria estampava o título “Realismo fantástico”, ao se referir às forças ocultas que levaram Alexandre Alvarenga a arremessar seu filho de 1 ano contra o pára-brisa do carro em movimento e bater a cabeça da filha, de 6 anos, numa árvore.

Na edição 228, de 19/02/03, tem-se mais uma pitada do ganhador do prêmio Nobel. Na ocasião, CartaCapital noticiava o fim das Ligas das Nações, ao final da Segunda Guerra Mundial. O título da matéria: “Crônica de uma morte anunciada”, que não é outro senão um dos celebrados títulos de García Márquez.

Essa farta referência a um grande escritor latino-americano poderia se confundir com uma homenagem que a CartaCapital lhe estaria prestando. Afinal, foi de García Márquez que partiu a definição mais otimista de jornalismo, credenciando-o como “a melhor profissão do mundo”. Na bancarrota em que está, a nossa mídia bem precisaria de uma injeção de ânimo assim. Mas receio não ser esse o caso.

No jornalismo, metáforas e figuras de linguagem são recursos crescentemente utilizados para traduzir uma realidade complexa e cada vez mais difícil de mediar. No nosso periodismo, os exemplos se sucedem. Num determinado jornal, o mercado assusta-se com o “nervosismo” do dólar. Noutro, a polícia “computa” os feridos numa ação de traficantes. Já numa revista semanal, a procura pela proteção da segurança privada no Brasil é produto da “fermentação” combinada de fatores.

Pode-se argumentar que essa é uma tentativa de traduzir em miúdos assuntos complicados, e que esse seria um apanágio do jornalismo. Neste sentido, CartaCapital estaria aplicando em seus títulos uma representação já conhecida (os romances do colombiano) para tornar suas matérias mais didáticas e os fatos mais compreensíveis.

Pode ser, mas não é somente isso.

Esse apelo à metaforização reflete mais uma limitação discursiva do próprio jornalismo, ante uma realidade vertiginosa e difícil de apreender, do que pretensões pedagógicas que visem aproximar a versão do fato. Este mesmo raciocínio pode ser aplicado aos exemplos aqui analisados da CartaCapital. Ao pinçar da literatura imagens prontas e acabadas para intitular suas matérias, a revista corre o risco de igualar realidades com peculiaridades históricas distintas, embora aparentes em sua essência. Afinal, até onde podemos entender, a Colômbia de García Márquez não é o Brasil, apesar de estarem ambos os países vivendo momentos perigosos de degradação social.

A recorrência ao universo de García Márquez não deixaria de indicar, também, um certo laxismo em escarafunchar um título à altura dos assuntos abordados. Pelo menos assim deveria ser no caso de ACM. Tratá-lo como “patriarca” soaria como uma mesura despropositada ante o estrago causado por esse capo à vida nacional.

(*) Estudante de jornalismo, webjornal em <http://www.sergipe.com/balaiodenoticias>