Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A saga de um colunista

ACÁCIO & CATÃO

Lycio de Faria (*)

Acácio não gostava de seu nome e amaldiçoava a escolha que seus pais haviam feito. Não entendia como era possível alguém batizar um filho com um nome ridículo como aquele. Quando criança não tivera problemas, pois Acácio era um nome como qualquer outro. Além disso, a maioria de seus amiguinhos nem sabia que as crianças tinham, cada uma, um nome próprio. O que valia eram os apelidos Bolão, Zeca, Xuxa etc. Foi na adolescência que as dificuldades começaram. Em uma aula de português, havia um texto em que o personagem se referia a uma sentença acaciana. Um dos alunos perguntou o que significava aquilo e o professor explicou a origem da expressão. Foi o quanto bastou para que Acácio passasse a ser conhecido como "Conselheiro" Acácio.

Aquilo o mortificava terrivelmente e é possível que tenha sido a origem da tendência que Acácio passou a ter de criticar, ferozmente, a tudo e a todos. Tão grande era a intensidade dessa faceta de seu caráter, que, quando ele estava cursando a Faculdade de Comunicação, o apelido de Conselheiro acabou esquecido, sendo substituído pelo de Catão. Desse Acácio até se orgulhava. Tanto que passou a usá-lo como pseudônimo nos trabalhos que escrevia para o jornalzinho do Centro Acadêmico.

Mais tarde, quando começou a escrever crônicas para o maior jornal da cidade, era como Catão que as assinava. Com o tempo, o que acabou sendo quase esquecido foi o seu nome real. Ninguém saberia informar quem era o senhor Acácio da Silveira Torres. Catão todo mundo conhecia e sabia quem era.

Sua pena era temida, pois nada lhe escapava. Fazendo jus a seu novo nome, achava que nenhum homem público tinha qualidades, somente defeitos. Os quais ele expunha à execração pública, impiedosamente. Os congressistas eram, de modo geral, relapsos, mais preocupados com os seus próprios interesses do que com os dos contribuintes que o sustentavam. Só trabalhavam de terça a quinta feira, embora recebessem remuneração por todo o mês e mais ainda pelas sessões extraordinárias. A estas Catão só se referia como sessões hiper-ordinárias. Considerava as comissões de inquérito como uma farsa, verdadeiras fábricas de pizza. Para ele, a sigla CPI significava Corporação dos Pizzaiolos Insuperáveis. Os projetos de lei eram, além de mal escritos, mal intencionados, voltados mais para as conveniências dos lobistas do que para as do povo. Periodicamente, escolhia um deputado ou um senador para Cristo e o crucificava em sua coluna. Dissecava meticulosamente sua vida e, segundo suas próprias palavras, "não deixava pedra sobre pedra". O direito à privacidade não existia para ele. Uma de suas tiradas preferidas era um primor de grosseria, mas, para ele, era muito expressiva: "O homem público não tem direito nem de ir à privada sem dar satisfações ao povo".

O Judiciário também se constituía em alvo freqüente de suas catilinárias. Se é que é possível um Catão produzir catilinárias. Soa um pouco como "samba do crioulo doido", mas indica bem a virulência de seus ataques. A Justiça era como se fosse uma guilda medieval, voltada exclusivamente para a defesa dos interesses de seus integrantes. Os juízes eram absolutamente insensíveis às angustias do povo, decorrentes da lendária morosidade de sua atuação. Apesar disso, não se envergonhavam de desfrutar de sessenta dias de férias, o dobro do que a lei defere ao comum dos mortais, além dos recessos que lhes são exclusivos. Quando não eram corruptos eram coniventes com a corrupção de seus pares e mantenedores da notória corrupção dos cartórios.

Nada se comparava, porém, à sua fúria contra o presidente da República. Este, como dirigente máximo da nação, era responsável por todos os males de que ela padece. Era apresentado como um sádico, que se comprazia com a desgraça do povo. Nada fazia para minorar-lhe o sofrimento, por pura malvadeza. Segundo Catão o presidente tinha poderes suficientes para resolver tudo num piscar de olhos. Não atuava desse modo porque era um egoísta, preocupado apenas com o seu próprio bem estar. Se viajava ao exterior, estava esbanjando os recursos públicos para fazer turismo. Se não viajava, era porque não tinha a menor preocupação com a imagem internacional do Brasil. Quando falava, era tachado de boquirroto, parlapatão: "Fala, fala e não faz nada". Quando calava era acusado de displicente: "O país está à beira do abismo e ele não diz coisa alguma". As medidas provisórias eram a expressão de seu autoritarismo imperial. A ausência delas, prova insofismável de sua incorrigível omissão. "Se o presidente ouvisse a voz do povo, que esta coluna não se cansa de lhe transmitir, o Brasil não teria mais problemas. Mas ele só ouve a palavra dos bajuladores…"

Catão era implacável com qualquer falha humana. Até contra seus próprios companheiros da mídia ele tentou investir. Lamentava, porém, não ter encontrado um só defeito no setor. Nem um caso sequer de improbidade, de mau uso do imenso poder de que a imprensa desfruta. Nem mesmo uma simples leviandade suas aprofundadas pesquisas conseguiram localizar. Houve um episódio em que parecia insofismável a ocorrência de, pelo menos, açodamento do repórter que acusou um professor, da capital de um estado vizinho, de abusar sexualmente das crianças de sua escola. Catão debruçou-se sobre o processo, na busca de algo que lhe permitisse criticar um companheiro. Todos os seus esforços, entretanto, foram em vão. Ele ouviu cada um dos envolvidos no escândalo e analisou cuidadosamente suas declarações. Ao final teve de render-se à evidência: embora involuntária, a culpa havia sido exclusivamente do próprio professor, ou melhor, dos pais dele, pois se ele não tivesse nascido, nada daquilo teria acontecido…

Um dia, Catão descobriu um filão maravilhoso, que ele não havia ainda explorado devidamente: a violência urbana. Iniciou então uma campanha "que só terminará quando eu conseguir extirpar esse verdadeiro câncer, que está corroendo o tecido social, com velocidade apavorante". Sua tática consistia em fustigar incessantemente, os policiais. Bala perdida nunca era de algum bandido. Era sempre de algum policial irresponsável. Quando um policial atirou num assaltante que, em plena luz do dia, de arma em punho, saqueava um ancião indefeso, Catão deu a seu artigo, no dia seguinte, o título: "Assassinado" [o bandido] "em plena luz do dia". As incursões policiais nas favelas, para combate a traficantes de drogas ou a quadrilhas do crime organizado, eram taxadas de "violência inominável contra pacatos habitantes dos morros". A prisão, em flagrante, de um policial corrupto era tratada não como demonstração do interesse em expurgar os maus elementos, mas apresentada como "a ponta do iceberg da corrupção crônica da corporação". Certa vez, os companheiros de um policial, assassinado em uma emboscada de bandidos, quase lincharam Catão porque ele o apresentara a seus leitores como "vítima de seu próprio desleixo".

Nada, porém, intimidava Catão em sua "guerra santa contra a violência urbana". Não havia dia em que não insistisse naquilo que se tornara sua idéia fixa. Qualquer que fosse o assunto de sua crônica, ao final constava, invariavelmente: "Delenda polícia". Ficou furioso, quando um colega lhe perguntou:

? Ô, Catão, que negócio é esse de delenda? É alguma prima da lengalenga?

? Vá para o diabo! Vá estudar história. Eu não tenho paciência com a ignorância. Se você repetir uma idiotice desse tipo, eu juro que escrevo uma crônica a seu respeito, expondo ao público todas as tuas "qualidades". Você vai ver como dói ficar nu em letra de forma. E em letras virtuais, porque a crônica estará também na Internet.

Sua campanha chegou ao clímax quando um marginal qualquer assaltou um ônibus e tomou uma porção de passageiros como reféns. O anjo protetor dos paparazzi avisou a uma estação de televisão e aquele show, caído do céu, passou a ser transmitido ao vivo, durante horas, para o Brasil e para o mundo.

No dia seguinte, a crônica do Catão tinha o título: "A culpa é da sociedade". Essa postura era um escárnio em relação aos pobres que, sem se degradarem, sofrem as injustiças decorrentes da monstruosa concentração de renda que hoje se observa. Mas isso nem passava pela cabeça de Catão, que estava inteiramente lotada com os inebriantes números do Ibope que sua coluna alcançava. Nas crônicas que se seguiram, em cascata, era dissecada a ação da polícia, da qual resultara a morte de uma passageira inocente e de um inocente seqüestrador. "Os policiais são uns incompetentes. Certamente nunca leram minhas crônicas, que sempre ensinam como os outros devem proceder."

O tema foi explorado ao máximo e Catão aproveitou a oportunidade para relembrar, em palavras candentes, todas as falhas de procedimento, todas as agressões policiais aos sagrados direitos humanos dos bandidos, que ele havia cuidadosamente catalogado. Catão só lamentou que o espaço de que dispunha não lhe permitia arrolar as ações positivas (algumas até heróicas) de policiais, que ele também tinha registrado na memória de seu computador. "Uma lástima, mas o que se há de fazer? O cronista está, inevitavelmente, sujeito a esse tipo de "escolha de Sofia" (a do filme famoso). Eu não tenho o drama de consciência de Sofia, entre o bem e o mal eu sempre escolho o bem…"

Dias mais tarde, quando saía da redação, dirigindo o possante Alfa Romeu que acabara de importar, Catão foi abordado por um grupo de vítimas da sociedade, embora estivessem todos muito bem vestidos:

? Salta daí, ô panaca. Nós queremos tua carroça para dar uma voltinha pelaí.

O cano da reluzente submetralhadora, também importada, que estava apontado para a cabeça de Catão, não lhe deixava qualquer alternativa senão borrar-se todo e sair do carro. Ele já se dispunha a correr, quando o senhor assaltante o segurou:

? Onde é que a boneca pensa que vai? Tu vai com a gente, só que na mala.

Por sorte a mala era ampla, como costumam ser as dos carrões de luxo, e Catão ficou razoavelmente bem-acomodado. Começou a agradecer a Deus o milagre de ainda estar vivo, quando percebeu, maravilhado, que sua maleta de mão estava ali, a seus pés. Os ladrões não a haviam percebido, porque era preta, como o tapete que forrava a mala. Catão pensou: "E eu que não gostava de preto! Obrigado, São Benedito". Sua imensa alegria era devida à lembrança de que seu telefone celular ficara dentro da maleta, por esquecimento. "Bendito esquecimento, ou melhor, benedito esquecimento". Havia um problema, porém: ele não sabia o número da polícia e aqui não existia o famoso 911 dos filmes americanos. O jeito foi ligar para o 102 e explicar o que estava acontecendo.

? Fica frio, meu irmão, eu vou lhe dar o número do Batalhão de Operações Especiais e eles logo, logo, vão livrá-lo dessa fria.

Catão estava com o coração aos pulos, apavorado com a possibilidade de os seqüestradores ouvirem sua voz. Depois sorriu, pensando: "Bendita concentração de renda, que me permite comprar um carro importado, no qual até a mala tem isolamento de som". Quando atenderam, explicou novamente o que ocorria. Ouviu, aliviado, a reação do policial:

? Guenta aí, companheiro, que num segundo estaremos na rua. Já anotei o número da placa e vou dar o alarme. Só preciso do seu nome.

? O meu nome não lhe dirá nada. Eu sou o Catão, que escreve no jornal Tribuna da Impertinência.

? Peraí, tu é que é o Catão?

? Eu mesmo, anda logo com isso que eu estou sufocando…

? Ah, companheiro, tu vai tê que se virá sozinho. Nós aqui somos todos uns incompetentes e estamos de castigo. Só poderemos sair depois de terminarmos a leitura de todas as tuas crônicas, para aprendermos a trabalhar…

(*) Escritor, funcionário público aposentado