Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A salvação está na leitura

BIENAL DO LIVRO

Deonísio da Silva (*)

Espantosa a práxis da violência e desconcertantes os seus desdobramentos. O Rio não é uma das cidades mais violentas do mundo? Pois é, como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. A imprensa não tem a obrigação de dizer toda a verdade e não apenas as costumeiras notícias alarmantes?

Este modesto dublê de escritor e professor lembrou-se do célebre bordão do antigo e extinto Repórter Esso e foi "testemunha ocular da História" em dois momentos que a seguir relata.

Rio de Janeiro, quinta-feira, 15 de maio do ano do Senhor de 2003. A orla atlântica lotada de gente em toda a sua extensão para contemplar o eclipse. Populares e transeuntes perambulavam nas calçadas ou, pés fincados na areia, com binóculos ou lunetas assestados junto ao rosto, vasculhavam o céu noturno em busca do mundo da lua, cuja parte dali a pouco se ocultaria. Cansado da desordem em terra, do caos em que vive em sua cidade maravilhosa, o carioca buscava a ordem perfeita do espaço sideral, onde o eclipse, imemorialmente programado por mente divina e, claro, privilegiada, aconteceria em todo o seu esplendor e perfeição, sem atraso e sem nenhuma desculpa? O trânsito universal estava congestionado e a lua atrasaria, por exemplo?

E agora o segundo sinal, que vinha de outra galáxia, a de Gutenberg. A imprensa escreveu com obsessão sobre Salman Rushdie, proclamando-o "a grande estrela da Bienal do Livro". Mas os livros indispensáveis à Humanidade, somados aos importantes ou apenas curiosos, não obtiveram seus nichos e consagração por terem sido obras de quem foram e, sim, por seu conteúdo! Foi o que foi escrito que deu autoridade a quem o escreveu. Ou não, como dizem os mineiros, mas a referência é sempre o livro, não o seu autor.

Rica e complexa

Alguns dos livros mais importantes de nossa vida são anônimos. De outros, desconhecemos quem foram seus autores. Sobre outros, igualmente fascinantes, pairam dúvidas eternas sobre a autoria. Salman Rushdie não se tornou um grande escritor pelos livros que escreveu, mas, sim, pelas circunstâncias da perseguição de que foi vítima, recebendo a pena de morte da intolerância religiosa, a pior de todas, pois executada sob alegações divinas.

Meu Deus! Por que nos abandonastes? A Bienal Internacional do Livro, no Rio, com todo o seu esplendor, eficiente organização, cafés literários, palestras, conferências, eventos literários e muito mais coisas, não pode ser reduzida na imprensa a uma obsessão por um escritor que um dia foi perseguido. Aliás, é compreensível que tenha sido registrada a presença do censurado na Bienal do Livro, mas por que tantas exclusões em seu nome? Dá-se nas Bienais, não apenas nessa, mas em quase todos os eventos internacionais que envolvem o livro e de que o Brasil participa, uma atlântica perplexidade: nossos editores voltam anunciando os livros estrangeiros cujos direitos autorais, a peso de dólares, compraram. Louvados sejam!

Mas por que apenas esse caminho? Por que tão poucos editores brasileiros oferecem ao mundo a verdadeira mina que é a literatura brasileira, tida por respeitados juízes, avaliadores e críticos como a quarta mais importante do mundo? Ora pro nobis, pobres autores brasileiros, meu caro leitor! No dia 13 de maio de 1888 foi emancipado o trabalhador escravo, mas não o trabalhador intelectual, a quem ofendem gravemente com esse tipo de comportamento. Será que são tão poucos assim os interessados em nossas letras? Há indícios de que se passa algo muito diferente no mundo e no Brasil, mas a imprensa continua omitindo certas verdades gritantes.

No primeiro mundo, os autores podem escrever sobre o que bem lhes der na telha. Nós, autores brasileiros, não temos o mesmo direito, o da liberdade de criação. Temos que escrever sobre temas previamente aprovados pelo Deus Mercado, pela conveniência epocal. Se todos os autores do mundo escrevessem nesses estreitos parâmetros, não haveria literatura.

Os autores nacionais não estão dispostos a ser clones de Jorge Amado, Graciliano Ramos ou qualquer outro autor do passado, tão bom como os dois citados. Eles escrevem para serem lidos sem a terrível barreira da língua portuguesa, rica e complexa, poderosa em seu recursos expressivos, mas um dialeto na Galáxia Gutenberg. E nenhuma fatwa nos salvará! Quem vai nos salvar, ou não, serão os leitores que sabem e podem apreciar um bom livro, independentemente de sua procedência ou da língua em que foi originalmente escrito.

(*) Escritor, professor, escreve semanalmente neste espaço; seus livros mais recentes são A vida íntima das palavras, A melhor amiga do lobo e Os segredos do baú