Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A sustentável leveza do Pasquim21

JORNALISMO & HUMOR

Paulo Lima (*)

Em sua coluna de 12 de julho, "O bacalhau e as modelos", publicada na Folha de S. Paulo, Carlos Heitor Cony comparou as estratégias de diagramação dos jornais de ontem e de hoje. Sobre os de ontem, ele escreveu:


"Houve tempo em que os jornais, sobretudo os pequenos, sem recursos de fotografia e de clicheria, usavam aquele pescador que trazia nas costas um enorme bacalhau, anunciando o óleo de fígado, não do pescador, mas do bacalhau. (…) A publicidade era grátis, servia apenas para compor a diagramação da página, ventilando a pesada massa de texto, geralmente composto com tipos irregulares."


E sobre os de hoje:


"A computação gráfica aposentou o pescador e o bacalhau ? acho até que ninguém mais apela para o miraculoso fígado do bacalhau e para o seu tonificante óleo.

Mesmo assim, com todos os recursos da eletrônica, os jornais continuam apelando para um outro tipo de clichê a fim de amenizar a feiúra dos governantes, a aridez dos economistas, a violência das cenas no Oriente Médio e nas ruas de nossas cidades. São as modelos, que aparecem em trajes que o lugar-comum chamaria de íntimos, mas que se tornaram públicos."


É verdade que a maré não está mais para bacalhau, muito menos para peixe. Basta dar uma espiada na torrente de informações que brota das tintas diárias da nossa imprensa escrita. Aridez é o que não falta.

Sucede que, como mediadora dessa realidade ingrata, a imprensa, ao traduzi-la ipsis litteris e enquadrá-la em clichês editoriais e redacionais, vulgo leads da vida, finda por incorrer num grande pecado (como se pecados já não lhe bastassem): a falta de leveza, ou, o que dá no mesmo, o excesso de sisudez.

Aliás, como é sisudo e grave o jornalismo contemporâneo. Inútil pensar que tal gravidade advém da própria natureza da informação jornalística, que, por definição, deve abster-se de qualquer tipo de flerte com hiper-realidades, cabendo estas à literatura. Não sem razão, essa ruptura levou um híbrido do jornalismo e da literatura, o escritor mineiro Roberto Drummond, a formular cáustica observação: o jornalismo é o túmulo da literatura.

É como se, salvo as honrosas exceções de praxe, o quesito leveza passe ao largo do jornalismo. E leveza aqui deve ser evocada no sentido que lhe atribuiu Ítalo Calvino, em suas Seis propostas para o próximo milênio, prescrita como antídoto às vicissitudes pessoais descobertas por aquele escritor:


"Logo me dei conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade de superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo ? qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas."


A panacéia, se assim podemos designá-la, contra o "pesadume", a "inércia", a "opacidade do mundo", é indicada pelo próprio Calvino:


"Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos…"


Não se sabe quando o jornalismo contemporâneo galgará esse novo patamar de observação, mudando, por conseqüência, o approach na maneira de mediar a informação. Mister frisar que as propostas de Calvino visavam não somente o universo da Literatura, mas se ofereciam como horizontes éticos para o milênio que se aproximava (a obra é de 1984), a serem perseguidos em qualquer área do conhecimento. Arvorando-se na presunçosa ? melhor dizer, enganosa ? condição de neutralidade e objetividade, é até possível que o jornalismo tenha querido atingir, à sombra dessas duas premissas, seu grau máximo de leveza. Uma coisa, contudo, não é a outra.

Se assim caminha o jornalismo contemporâneo, sob o inefável peso da crise e náufrago da mesmice e do espetáculo, falemos então de uma outra experiência, por assim dizer, menos oficiosa e mais próxima da leveza calviniana, o Pasquim21.

Em tudo ? ou quase ? o Pasquim21 se contrapõe ao jornalismo sisudo que é cometido no cotidiano dos jornalões e das revistas de grande circulação. Ora, direis, não é aquele jornal de Ziraldo? Mas não acabou? Sim, acabou, por obra e graça da censura do regime militar, mas o Pasquim de então era uma outra experiência. Essa distinção é fundamental, pois há ainda quem não conheça o Pasquim21 ou, conhecendo-o, confunda-o com uma continuação do velho Pasquim.

O Pasquim21, para começo de conversa, é um jornalão no formato, mas se autodenomina revista, "uma revista semanal". A contradição é hilária e faz parte da boa verve humorística da publicação. O cabeçalho em si já é uma boa sátira ao jornal tradicional. A periodização, assim como o número de cada edição, é divulgada no cabeçalho da primeira página, em letras garrafais, lançando por terra as convenções editoriais. O preço jamais é exato, como manda o figurino de jornalões e similares. A atual edição custa inexatos R$ 3,4725. Como traduzir esses intrusos e inexplicáveis 25 quebrados e incorporados ao preço principal? Claro, puro chiste.

Entre uma risada e outra

A capa é em tudo hiperbólica, desmesurada, bombástica, a começar pela caricatura que normalmente preenche todo o frontispício de cada edição. Essa moldura não faria sentido, contudo, se o recheio a seguir não lhe fizesse justiça em graça e humor. O Pasquim21 conta com um time de primeira. E não somente os craques do humor de sempre (Paulo Caruso, Aroeira e o próprio Ziraldo). Há também craques incontestes do jornalismo cultural, como Sérgio Augusto, da MPB, como Aldir Blanc, e de outros tão bons quanto, como Mauro Santayanna, Fausto Wolf e Milton Temer, para ficar nos nomes mais conhecidos.

Aliás, é bom ressaltar que a leveza do Pasquim21, e sua importância, não advém do fato de que o seu mote é o humor. Leiam, por exemplo, o entrevistão semanal. Por lá já desfilaram desde atores até juízes experts em patologias brasileiras, passando por políticos etc. A entrevista da edição 69, por exemplo, traz o juiz Walter Maierovitch, mostrando as fichas da criminalidade no Brasil. Para ler e guardar.

O Pasquim21 não abdicou da realidade circundante ? penso que os delírios criativos de Ziraldo não chegaram ainda a essa perfeição. Mas consegue tratar de temas candentes da atualidade sem o costumeiro "pesadume" de que falou Calvino. Só nas páginas do 21 poderíamos encontrar neologismos tão saborosos como "riolência", referindo-se à onda de violência que assola o Rio de Janeiro. Ou uma menção à língua presa do presidente Lula da Silva, já devidamente satirizada na seção "O reino encantado de Dom Ináfio da Filva", pelas tiras do cartunista Ota.

Por suas dimensões, o Pasquim21 não deixa de ser um jornalão ? que, contudo, pode ser degustado entre uma e outra risada, entre uma e outra análise séria, sem que nada disso venha a parecer demasiado "opaco", "inerte" ou "pesado" para o leitor.

(*) Estudante de Jornalismo e editor do Balaio
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