Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A ética como etiqueta

MÍDIA REGIONAL

Allan de Abreu (*)

"Ética ou etiqueta? Às vezes o comportamento da imprensa parece se reduzir a um receituário de boas maneiras." Nunca a frase do jornalista Eugenio Bucci, que está no livro Sobre ética e imprensa, coube tão bem a uma boa parte da imprensa do interior do país.

Nas faculdades de Jornalismo, convencionou-se afirmar que o jornalismo tal como hoje o conhecemos surgiu dos ideais da Revolução Francesa, resumidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Nasceu como instrumento de cidadania, uma espécie de serviço de utilidade pública delegado pela sociedade, para sua informação e formação. Esse conceito de jornalismo obviamente representou uma evolução às práticas da imprensa anteriores ao fim do século 18 na Europa, quando os jornais eram simplesmente uma extensão das vontades do poder e o jornalismo era o instrumento da oficialidade.

Predominava então não o conceito atual de ética (princípios e valores morais, deontológicos), mas a visão da ética como etiqueta: os bons costumes, a educação, a empolação como mandamento maior. Bem ao gosto da aristocracia, já que se trata de uma ética não-questionadora, que não problematiza a realidade, que não critica o status quo.

Volto a Bucci: "A etiqueta cria um balé de sorrisos e saudações que celebram a autoridade posta, traduzindo-se numa singular estética da conduta; extrai sua beleza dos meneios em glória da hierarquia e do silêncio sobre o que se esconde nas alcovas. Ela não se pergunta do poder. Ela não inquire ? nem se deixa inquirir. Não por acaso, a etiqueta era o orgasmo social da aristocracia."

Hoje, pensa-se que essa situação é ultrapassada, e que o próprio conceito de jornalismo se modernizou. Mas a afirmação é verdadeira só pela metade. Não vale para muitas cidades do interior do país, onde há mais promiscuidade na relação entre imprensa e poder do que se pode imaginar.

O significado do jornalismo

A começar pela estranha lei federal que permite que as prefeituras utilizem jornais particulares para circular o Diário Oficial do município. Um método inequívoco de atrelar a imprensa aos interesses do prefeito de plantão: manipula-se a licitação para que o principal jornal da cidade a vença, e está armada a teia de chantagem para calar o maior veículo de expressão da comunidade local.

Mas existem outros negócios nem tão às claras assim, como dinheiro vivo jogado no jornal para calá-lo. Para o repórter, que na maioria das vezes não tem nada a ver com as tais mutretas, é uma humilhação profissional sem tamanho. E às favas a integridade moral do jornalismo, talvez o princípio mor da profissão, que é calcada permanentemente na credibilidade com o público.

O resultado imediato é a prática de um jornalismo oficialesco, preguiçoso, acostumado a ouvir o prefeito ou o secretário, mas que poucas vezes ouviu alguma reclamação de um popular. E que jamais se daria ao trabalho de fazer uma reportagem investigativa. Com o tempo, o repórter se embrutece intelectualmente, porque perde o entusiasmo pela profissão e porque, quase sempre, ganha muito mal.

É esse jornalismo "bem-educado", com jornais que são autarquia das prefeituras, o que tem vicejado no interior e a que se tem dado muito pouca ou nenhuma importância nas faculdades de Comunicação. Um jornalismo que nunca desperta respeito no poder constituído (porque sabe que a imprensa é uma extensão dos seus caprichos), que é "educado" ? e aqui retornamos à noção de etiqueta ? não com a opinião pública, a quem deve sempre satisfações, mas ao poder.

Essa falta de independência, obviamente, gera conseqüências sérias do ponto de vista da fiscalização do poder pela sociedade e da própria democracia enquanto transparência nas ações de governos e elites. Uma imprensa que pouco fiscaliza e uma sociedade ignorante dos atos de seus governantes geram lacunas facilmente preenchíveis pela corrupção e pelo autoritarismo.

A bola de neve não pára nunca. Até alguém, em algum momento, se lembrar do que significa realmente o jornalismo. E quebrar o ciclo. Fiquemos nessa esperança, os jornalistas interioranos.

(*) Jornalista em São Carlos, SP