Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A ética no microondas

CASO KAMEL

Na edição anterior (n? 178, 26/6/02), este Observatório relatou a pendenga envolvendo um grupo de jornalistas do Rio e o diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo, Ali Kamel. Um abaixo-assinado pedia o enquadramento de Kamel no Código de Ética dos Jornalistas, em razão de críticas desabonadoras que teria feito à também jornalista Cristina Guimarães, em manifestações públicas a propósito da tragédia do caso Tim Lopes. As remissões às matérias que trataram do assunto estão no pé desta nota.

A seguir, e ainda a esse respeito, os desdobramentos do caso: primeiro, comunicado assinado pelo presidente do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro, cujo original traz o título "À luz da ética"; em seguida, matéria de três do signatários do abaixo-assinado contestando os termos da nota "Estão esquecendo o Elias Maluco", de Alberto Dines, publicada na edição anterior [link abaixo]; e, por fim, uma nota do OI sobre o que lhe diz respeito nessa desinteligência.(Luiz Egypto)

 

A Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro analisou a representação encaminhada no dia 18/06/02, assinada por quatro jornalistas contra Ali Kamel, diretor de Jornalismo da TV Globo.

Diante dos fatos relatados no documento e, de testemunhos de colegas, inclusive diretores do Sindicato, que estiveram presentes à manifestação sobre o assassinato do jornalista Tim Lopes, na Cinelândia, e que também viram e ouviram a entrevista do jornalista Ali Kamel no programa Observatório da Imprensa [terça, 11/6/02], assim como seu testemunho sobre o caso, em debate aberto no auditório do Sindicato, com a presença de diversos colegas, tanto de Tim Lopes quanto de Cristina Guimarães, a Comissão de Ética do Sindicato não encontrou nenhum pronunciamento do acusado que desabonasse o comportamento profissional da jornalista Cristina Guimarães.

Ali Kamel participou da reunião da comissão, que está acompanhando as investigações do caso Tim Lopes, na sede do Sindicato, no dia 17/06/02, na qual o assunto voltou a ser abordado. Na presença de inúmeros colegas, questionado, Ali Kamel fez uma exposição sobre os fatos relacionados ao caso Cristina Guimarães, e não foi contestado em nenhum momento por qualquer dos presentes, entre outros, o autor da denúncia feita na reunião do Conselho Administrativo da ABI, no dia 17/06/02, jornalista Oswaldo Maneschy, cujo nome não consta na representação formulada à Comissão de Ética do Sindicato.

Contudo, vale lembrar os procedimentos que constam do Código de Ética. [De acordo com] O Cap. IV ? Aplicação do Código de Ética ? [no referente a] Aplicação de penalidades, prevê advertência pública, suspensão e exclusão definitiva do acusado do quadro social do Sindicato. Para os não associados ao Sindicato são aplicadas as mesmas penalidades. O Art. 20 do Código de Ética diz ainda ser de iniciativa do cidadão, jornalista ou não, ou instituição atingida dirigir representação à Comissão de Ética para que seja apurada a transgressão ética.

A vítima, no caso, é a jornalista Cristina Guimarães que não se manifestou até o presente momento junto à Comissão de Ética sobre o assunto. E os subscritores da representação não apresentaram nenhum documento que os autorizassem a representá-la.

É dever da Comissão de Ética ouvir as partes envolvidas. Sendo assim, à luz do Código de Ética, a Comissão de Ética aguarda o pronunciamento da jornalista Cristina Guimarães, que até agora não foi localizada, nem, reiteramos, procurou sua entidade de classe. Nacif Elias, Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro

 

 

Mário Augusto Jakobskind, Oséas de Carvalho e Sérgio Caldieri

Nós, signatários do abaixo-assinado encaminhado à Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro solicitando o exame do comportamento, que consideramos aético, do jornalista Ali Kamel, diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo, no caso Cristina Guimarães, queremos lamentar o comentário de Alberto Dines sobre o episódio Tim Lopes, que saiu na semana passada neste Observatório da Imprensa, sob o título "Estão esquecendo o Elias Maluco".

Caro Dines, inicialmente, é necessário repudiar os seus conceitos, de "cizânia", "exploração política do luto" e "espírito das trevas", totalmente sem sentido. O pedido para que a Comissão de Ética de um Sindicato aprecie um caso não significa, necessariamente, condenação de antemão. Você se engana e revela total desconhecimento do que seja o sindicalismo. Uma Assembléia Geral da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em 1987, decidiu pela criação de Comissões de Éticas, cujos representantes são eleitos para decidirem sobre eventuais solicitações e para analisar determinados casos. Os solicitantes pedem a convocação dos integrantes da Comissão para analisar o que julgam necessário ser apreciado, no caso o comportamento de um diretor da TV Globo, até porque a própria emissora não poderia ser analisada nesta instância. Então, qual o problema de acionar a Comissão de Ética? Não é para isso que ela existe? Não é um mecanismo perfeitamente transparente e democrático, que garante o direito de defesa? Não entendemos o seu posicionamento, Dines.

No caso em questão, achamos que o diretor-executivo da TV Globo não se comportou devidamente em relação a uma profissional de imprensa, a jornalista Cristina Guimarães. É um direito democrático que assiste a qualquer jornalista questionar. Se a Comissão de Ética decidir apreciar o caso, vale repetir, o acusado terá todo o direito de defesa. Ali Kamel, por sinal, já se adiantou e apresentou sua defesa neste Observatório da Imprensa, da qual continuamos a discordar. Comissão de Ética, Dines, não é nenhum auto-de-fé, como você equivocadamente imagina.

Caro Dines, na verdade, quem está em questão não é nem Ali Kamel, mas a TV Globo, que cinicamente se coloca como "defensora da comunidade" e age como ditadora de verdades absolutas, aproveitando a justa indignação que o bestial assassinado de Tim Lopes provocou, para tergiversar e divulgar meias verdades em matéria de cobertura sobre a violência. A TV Globo pouco se importa com outros seres humanos, que como Tim Lopes, estão sendo vítimas da violência urbana. Sabe por que, Dines? Porque não dá Ibope. A emissora se ligou no caso Tim Lopes, como não poderia deixar de ser, porque o repórter era da casa. Na Bahia, por exemplo, pelo menos 10 jornalistas foram assassinados nos últimos tempos. E o que fez a TV Globo? Absolutamente nada. Mas aí é uma outra discussão. Kamel, como diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo, assume as dores da emissora que está mais preocupada com o faturamento do que com a comunidade propriamente dita. Isto, caro Dines, não é, como você afirma, "desvio de teorização e exploração política do luto". Muito pelo contrário. É uma realidade que não pode deixar de ser discutida. É, sim, chamar a atenção da categoria e dos telespectadores de um modo geral sobre o perigo que representa para os valores democráticos a manipulação da informação.

Além do mais, Dines, Cristina só está viva porque não foi mais cumprir as pautas do jornalismo sensacionalista, que faz show com a desgraça das comunidades pobres sem nunca vincular que o exército do narcotráfico só cresce porque o Estado foi destruído, inclusive em sua política de segurança pública, destruição do Estado, diga-se de passagem, que a TV Globo sempre defendeu editorialmente. E dela se beneficiou, não podemos esquecer. Isso, absolutamente, não é teorizar, é a pura realidade. E qual o mal apontar erros em que a mídia não está isenta? Isso é, por acaso, "politizar o luto?" Não entendemos assim.

Nenhum dos signatários tem vocação de julgador de "auto-de-fé", como você, Dines, afirma. Para nós, a democracia ? um termo meio gasto por ser utilizado indevidamente, até por aqueles que nos tempos do autoritarismo contribuíram com o arbítrio, como a própria TV Globo ? deve ser defendida para início de qualquer conversa. E você pode observar, Dines, que a maioria dos signatários do abaixo assinado (cujos nomes foram suprimidos pelo Observatório da Imprensa) foram, em maior ou menor grau, vítimas dos tempos dos verdadeiros autos de fé do período da ditadura militar.

E, para finalizar, Alberto Dines, cabem ainda algumas perguntas. Se Cristina tivesse voltado a subir o morro com Tim Lopes, estaria viva agora? E o que temos de concreto? Um jornalista foi enviado por determinação administrativa de uma emissora a uma área de altíssima periculosidade, mesmo depois de o show da Globo ter provocado a ira dos delinqüentes em matéria anteriormente divulgada. Será que era tão difícil imaginar o risco que a equipe da Globo passou a correr depois do fato? Por que não falar sobre isso? Por que desagrada a diretoria da emissora do Jardim Botânico? Ou será que isso é cizânia e não revolta justa?

De uma forma ou de outra, acreditamos ter cumprido com o objetivo, o de debater e não aceitar verdades impostas. Nenhum dos signatários se pretende dono da verdade. O que nos move, antes de mais nada, é a solidariedade com uma colega que foi vítima da arrogância da TV Globo, que a deixou sem proteção em um momento que necessitava, por estar sendo vítima de ameaças dos narcotraficantes. E proteção, diga-se de passagem, não significa necessariamente colocar policiais na porta de casa, como deu a entender a TV Globo, ainda mais policiais que estavam sob o comando de um coronel da PM que serviu no DOI-CODI, de triste memória. Proteção é muito mais do que isso. É, muitas vezes, tendo o veículo de comunicação condição e estrutura, retirar quem está ameaçada do local de trabalho, deslocando-a para outra área, no exterior inclusive. A Globo não agiu assim com Cristina Guimarães. Kamel mentiu, e isso todos amigos de Cristina sabem, quando afirmou, maldosamente, que a Globo só teve conhecimento que ela estava sofrendo ameaças depois da revelação feita pela repórter a partir do escritório de seu advogado (ela está processando o ex-patrão, a TV Globo, um direito que assiste a qualquer trabalhador).

Desgraçadamente o nosso querido Tim foi cumprir a pauta do perigo e não voltou, Cristina rebelou-se contra a orientação da empresa e está ameaçada . Sem proteção da empresa, tomou providências própria para salvar a pele . Merece ser criticada pela direção da empresa e pelos jornalistas ou merece ser ouvida atentamente sobre o que ocorreu. O que teria ocorrido se as revelações de Cristina sobre as ameaças que passou a sofrer depois da primeira matéria fossem divulgadas e consideradas antes de se decidir por uma nova reportagem? O próprio Observatório da Imprensa poderia ter colocado em pauta ouvir a jornalista depois de ter dado espaço para Ali Kamel acusar a repórter em uma de suas edições da TV. Afinal, ouvir os dois lados é salutar para a democracia. E cabe ao Observatório da Imprensa o espaço para o contraditório.

Perguntam ainda: Não seria o caso da TV Globo rever a linha de jornalismo sensacionalista, na corrida por audiência, feito a custo e risco dos profissionais que não têm condições de questionar e recusar essa orientação de reportagem pois podem perder o emprego? Falar sobre essa questão de interesse de todos os profissionais da imprensa e dos brasileiros que ainda acreditam no humanismo é "cizânia" ou "espírito das trevas?" Não é não. Grave, no nosso entender, caro Dines, é a omissão.

Queremos, como todos os brasileiros querem, o fim da violência e dos Elias Malucos. Um passo nesse sentido seria remover a causa principal: o injusto (e violento por natureza, por ser responsável pela exclusão social de milhões e milhões de brasileiros) modelo econômico vigente no País, que sempre teve o total apoio da TV Globo. Queremos também que não se repitam novos casos Tim Lopes, mas a prática que levou o repórter à morte persiste, porque vários veículos de comunicação, não apenas a Globo, diga-se de passagem, lutam com todas as suas forças pela audiência e estão interessados no faturamento acima de tudo. Isso não é "auto-de-fé", mas, sim, defender a categoria, algo que o Observatório da Imprensa não deveria deixar de fazer. Caro Dines, o caso Tim Lopes e o que está acontecendo com a repórter Cristina Guimarães, claro, também remete à velha discussão segundo a qual a notícia não é uma mercadoria, tema que, esperamos, o Observatório da Imprensa não deve se cansar de discutir, em todas as suas edições.

É o que todos nós esperamos, da mesma forma que reveja o seu posicionamento de crítica descabida aos signatários do abaixo assinado.

Subscreveram inicialmente o abaixo assinado: Ana Arruda Callado (retirou o nome posteriormente), Antonio Castigliola, Antonio Libório, Arthur Poerner, Cicero Sandroni, Conrado Pereira, Fernando Paulino, Fritz Utzeri, Glauco de Oliveira, Jesus Antunes, Jose Alves Pinheiro, Jose Gomes Talarico, Luis Antonio dos Santos, Mario Augusto Jakobskind, Milton Temer (retirou o nome posteriormente), Nilo Braga, Oséas de Carvalho, Amaro Prado, Procópio Mineiro da Silva, Roberto Assaf, Sergio Caldieri, Silvio Paixão. Sonia Benevides, Zilda Ferreira, Arthur Cantalice, Adail de Paula.

Após a retirada dos dois signatários mencionados, fizeram questão de subscrever Álvaro Queiróz e Carlos Newton Leitão de Azevedo.

O abaixo assinado continua em aberto, à medida em que a Comissão de Ética do Sindicato ainda não respondeu ao pleito, embora o presidente da entidade, Nacif Elias, atropelando os estatutos (a diretoria não pode passar por cima da Comissão, que é autônoma), já avisou que "somos terrivelmente contra o abaixo assinado" .

 

Na edição anterior [remissão abaixo], este Observatório não suprimiu nomes do abaixo-assinado. "Suprimir", na primeira acepção do Aurélio, é "impedir que apareça; impedir a publicação". Nada disso. Diante de novas confirmações de retirada de assinaturas e, em concomitância, informações não confirmadas de outras desistências (difíceis de checar porque o OI não tem reportagem), optou-se, então, em nome da prudência, por não divulgar os 24 nomes do documento original ? agora reproduzidos pelos autores da nota acima. Na sexta-feira (28/6), o sindicato do Rio informava a Ali Kamel a existência de 4 assinaturas no documento (SJPMRJ [mailto:sindicato-rio@jornalistas.org.br] Enviada em: sexta-feira, 28 de junho de 2002 18:56 Para:ali.kamel Assunto: Carta ABI, Comissão de Ética, etc).

Outro ponto: afirmar que o OI não ouviu a jornalista Cristina Guimarães é esconder os fatos, o que não condiz com o jornalismo. Cristina, como se sabe, evita aparecer publicamente em razão das ameaças que sofreu de narcotraficantes. Ainda assim, no dia seguinte ao da confirmação do desaparecimento de Tim Lopes (terça-feira, 4/6), Cristina Guimarães foi entrevistada Alberto Dines, ao vivo, por telefone, no programa Observatório da Imprensa na TV, conversa da qual participou também Luis Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação. Na edição seguinte da versão televisiva do OI (terça, 11/6, rede pública de TV, 22h30), que tratou exclusivamente do caso Tim Lopes, Cristina concedeu nova entrevista e gravou um depoimento exibido no programa daquela noite, no qual sua imagem apareceu disfarçada com o recurso de uma sombra. Portanto, o OI ouviu, sim, Cristina Guimarães. Por duas vezes. [O resumo dos programas de TV estão disponíveis no hotsite "5? Bloco"; clique no alto, à direita, na página principal do OI.]

O artigo acima publicado e objeto desta nota foi recebido na caixa postal do redator-chefe do OI no domingo, 30/6, às 15h03, quando Alberto Dines embarcava para cumprir agenda profissional em Lisboa, com estada prevista de seis dias. O texto foi-lhe lido ao celular, a caminho do aeroporto. Seu comentário: "Se querem crucificar alguém, que o façam praticando bom jornalismo". (Luiz Egypto)

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