Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A tragédia do real

Nahum Sirotsky – De Telaviv

 

Acompanhando a trajetória do real tenho, obviamente, motivos particulares. Ao deixar o Brasil, para ser correspondente no exterior, fiz todos os meus acordos em moeda nacional. Imaginem, então, o que me acontece agora. Mas também o faço, no mesmo nível de importância, por nunca deixar de acompanhar o que ai acontece. Ignorar como vai o Flamengo ou a Loto é perder o contato com a nossa realidade e ficar escrevendo de fora para um mundo anônimo. Não dá.

No caso do real, desde os primeiros segundos tenho lido os nossos mais conceituados e respeitados analistas, além do noticiário nacional e estrangeiro. Vou ao noticiário de bancos, corretoras. Quero saber dos fatos e dos palpites. Depois do fracasso dos chamados “modelos econométricos” em prever o desenvolvimento da economia e da intuição de economistas premiados, sempre parto da premissa de que comentários e análises incluirão palpites, e as notícias, os preconceitos ou interesses das fontes.

O mínimo que se aprende em dezenas de anos de jornalismo é que é muito difícil resistir “às fontes bem informadas”, com seus interesses e preconceitos, que entre o que escreveremos e procuramos dizer e o que será entendido há sempre o que o leitor sabe, em outras palavras, que se compreende com o que se sabe e não o que se informa. E que McLuhan teve razão quando disse que “a media é a mensagem” no sentido de que cada media exige sua própria linguagem, e errou, como todos até agora, quando, diante do imediatismo da transmissão da informação, e dos meios para isso, falou em aldeia global. O certo seria dizer que cada um quer viver na sua própria aldeia, como se tem visto acontecer, encarando o mundo segundo seus mitos e tradições. Em outras palavras: cada um entende como entende e não o que acontece.

Real foi uma reforma monetária que, explicada em seus termos mais simples, implicou começar a reforma de uma economia pelo fim. Fixa-se uma meta, que é o valor da nova moeda, e, então, adotam-se medidas e ações fundamentais (para que a moeda venha a ser, de fato, uma expressão econômica. Reforma monetária é, portanto, um processo que implica uma combinação de uma série de medidas previsíveis e imprevisíveis. Como numa guerra, sabe-se como se começa e o objetivo, a estratégia, mas, sempre se parte com suficiente flexibilidade tática. O processo da transformação da nova moeda em moeda sólida depende de inúmeras reformas como, equilíbrio orçamentário, purificação do sistema bancário com a eliminação dos bancos intrinsecamente falidos, balança de pagamentos favorável e inúmeras outras. E, obviamente, ela não se completou no primeiro mandato de Fernando Henrique. Sem ter tido tempo para chegar a ser moeda sólida de uma economia sólida, o real caiu vítima da onda de desconfiança que se iniciara na Tailândia, chegou a outros países asiáticos e, no nosso caso, tornou-se decisiva quando da crise da moeda russa.

E, obviamente, como se confirmou, as famosas reservas de dezenas de bilhões de que dispúnhamos não poderiam jamais ser suficientes para defenderem a moeda, como se viu, diante do irresistível poderio do “dólar abutre”, o trilhão e oitocentos bilhões de dólares que flutuam livremente no mercado internacional em busca de lucro rápido e fácil. Errou o Banco Central e errou o Fundo Monetário Internacional na tática inicialmente adotada. Claro que estou dando uma explicação propositadamente simplista. Linguagem de economista só eles compreendem, e aqui falamos ao leigo.

Desculpem a extensão. Aristóteles, o da Grécia, aconselhava em seu Poética que a dimensão de um texto nunca deve ultrapassar a nossa capacidade de compreendê-lo do começo ao fim sem voltarmos para releituras. E estou me estendendo. Mas é que tinha de prefaciar as minha crítica. Nas leituras que venho fazendo sobre a tragédia do real não encontro em lugar algum, no Brasil e fora, explicação a partir da premissa de que o processo de reforma da economia brasileira, iniciado com a reforma monetária, o real, é que sofreu um tremendo choque, que atrasou a caminhada para a modernidade de um sistema econômico mais desenvolvido para uma sociedade mais democratizada. A tragédia do real é a confirmação da histórica tremenda desigualdade da sociedade brasileira e, talvez, a perda da oportunidade de torná-la menos injusta no médio prazo. Não leio que reforma monetária é um processo. Não houve mágica, como nunca pode haver. Seria tão simples, se possível, decidir que a moeda vale tanto e tanto e compra isto e aquilo partir do dia tal e hora tal. A reforma monetária equivale a chegar ao pico da montanha de helicóptero e, a partir dele, começar a construir a passagem para os que vêm a pé. As reformas que FH tentou foram rejeitadas, deixando a moeda sem suficientes resistências, do que se aproveitaram as hienas do mercado internacional de capitais que têm liberdade de movimento no novo contexto mundial e informação. Eles não atacaram o dólar, cuja economia continua crescendo e prosperando. O que me pergunto é: por que não explicam tudo isto em miúdos para que se entenda e se forme no país um consenso em torno de uma tática realista de defesa e recuperação? A media nada disse, pelo que tenho lido. Também não os “cobras” da economia.