Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A "tribo" da mídia e o novo Deus

GUERRA AO VIVO, POR ESCRITO

Hugo R. C. Souza (*)


A guerra ao vivo, de Carlos Fino, 270 pp., Editora Verbo, São Paulo, 2003; preço R$ 42


Uma das reflexões mais recorrentes ao longo das 270 páginas de A guerra ao vivo, de Carlos Fino, diz respeito à influência da lógica da concorrência no trabalho do profissional. Uma lógica ditada pelas grandes empresas de comunicação ? afinal de contas, são empresas… ? que, em maior ou menor grau absorvida pelos jornalistas, permeia o trabalho cotidiano em geral, e a correspondência de guerra em particular, calcada no pressuposto de que a melhor verdade é aquela dada em primeira mão.

Peter Arnett chegou na frente e anunciou ao mundo o estourar da primeira Guerra do Golfo. Virou popstar! Carlos Fino, pelo videofone, reportou aos portugueses o início do bombardeio anglo-americano a Bagdá, e o fez em primeira mão, em tempo real. Chegou na frente, virou vedeta, transformou a RTP em referência internacional e proporcionou ao mundo o acompanhamento de seu excelente trabalho jornalístico.

E como falamos a mesma língua ? como disse o próprio Fino em sua visita ao Brasil no mês de maio ? seu relato desta e de outras guerras vividas ganha uma edição simultânea em Portugal, Brasil e Angola. Em Portugal, o livro já está na quarta edição, com mais de 10 mil exemplares vendidos em 10 dias.

Uma faca recurvada

É um notável relato de suas experiências como correspondente de guerra, dividido em três partes: a invasão americana do Afeganistão, no rufar dos tambores do pós-11de setembro; os confrontos sangrentos entre israelenses e palestinos na pós-visita provocadora de Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas; e os bombardeios e a ocupação do Iraque, a Segunda Guerra do Golfo, na pós-inspeção de armas não concluída…

Talvez tentando impor à narrativa sua dinâmica de trabalho, Fino entrecorta as grandes reportagens com ponderações políticas, impressionantes relatos das condições de trabalho quase sempre a um passo do insuportável, descrições da rotina de interação com a "tribo da mídia" ("sempre os mesmos olhos a ver a guerra"), e reflexões críticas ? entre uma "cigarrilha" e outra ? das limitações, implicações e papéis do trabalho dos correspondentes de guerra diante das exigências profissionais e da "guerra de informações" promovida pelos governos.

Impressiona especialmente o relato do cotidiano no conflito que lhe daria notoriedade. No Iraque, Fino viu e reportou as primeiras imagens da invasão anglo-americana, enfrentou a angústia de esperar quatro longos minutos de comerciais na TV pública de Portugal para entrar ao vivo com o ataque ao hotel onde estavam os jornalistas e sofreu quatro longas horas de agressões e tortura psicológica nas mãos de iraquianos enlouquecidos com a guerra ? e com Bush! Com direito a ter presenciado a visão anacrônica de um velho senhor "com longa faca recurvada em riste", prestes a lhe dar fim.

Talento, dignidade e mérito

Não lhe falta maestria e percepção para sintetizar as reflexões sobre sua própria profissão na cena da jornalista com uma vela na mão, afastando-se no corredor do hotel às escuras, "iluminando as trevas e ao mesmo tempo sendo devorada por elas". Uma bela imagem da tensão entre trabalhar criticamente dentro do "sistema" e meramente alimentá-lo ? o trabalho de transmitir informações relevantes dentro da lógica reinante do espetáculo.

Uma imagem ela própria a contestar algumas dualidades sobre a profissão postas ao longo do livro, que culminam no questionamento "missionários da verdade ou peregrinos sem fé?". Contraposições como esta acabam por esbarrar na própria dinâmica do desenrolar dos fatos, que revelam mais entrelaçamentos movediços do que propriamente dois lados irreconciliáveis de uma questão. O Fino que identifica "o culto a este novo Deus que é a informação em tempo real" na mistificação da transmissão ao vivo, mesmo quando não há nada de novo no front, que se refere ao hotel dos jornalistas como "santo" e não vê com bons olhos a idéia de "quarto poder", é o mesmo lembrado por aquela mesma jornalista ? musa inspiradora da imagem da vela ? de que está ali cumprindo o que ele próprio considera sua "missão".

Uma das maneiras de apreciar o magnífico relato de Carlos Fino é observar como as relações por ele apresentadas de forma demasiadamente duais ? talvez por se acirrarem em ambientes de guerra ? se desenvolvem dialeticamente no próprio exercício de seu talento, dignidade e mérito de pensar criticamente sobre seu papel e obstinação por um trabalho bem feito, muito bem feito.

(*) Estudante de Jornalismo da UFF

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