Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A verdade cortada em bifes

GUERRA & ANTROPOFAGIA

Nilson Lage (*)

Se buscarmos um personagem-símbolo do legado trágico do século 20, este poderá ser o tranqüilo e cordial Arwin Meiwes. Aos 42 anos, Herr Meiwes, alemão de profissão tipicamente contemporânea ? analista de sistemas ? e vocação manifesta para auxiliar companheiros de trabalho em seus apuros, convidou para jantar um amigo engenheiro e o comeu. Embriagado por 20 frascos de xarope contra a tosse e duas dúzias pílulas para dormir, mas ainda desperto, o convidado foi cortado em bifes, nos pontos mais saborosos, e lentamente mastigado entre gritos de desespero e goles de vinho chileno.

Horror? Mas, se nos parece assim, e nos dá arrepios o hábito antigo de queimar vivas as bruxas e os hereges na praça central das cidades medievais, como pensarão os homens do futuro quando verem nos registros digitais de nosso tempo que hoje faz sentido lançar mísseis de aviões supersônicos para matar supostos inimigos ? tática cujo inconveniente é que, independentemente da pontaria, resulta em dezenas de outras mortes, consideradas "danos colaterais"? Poderão constatar que, ao contrário do que ocorre com Herr Meiwes, não se trata de delírio de algum insano, mas de decisão tomada por burocracias tranqüilas e executada por sujeitos de alta competência técnica, que escondem o assassínio de massa com a desculpa trivial da "defesa da pátria".

A questão ética é simples: merecerá ser defendida a pátria que faz isso?

O século 20 entorpeceu nossas almas, como o xarope de ópio servido ao convidado de Herr Meiwes. Estamos confundindo tudo. Por exemplo: uma pessoa que entra em um restaurante ou supermercado e se faz explodir, ou que invade uma escola e dá tiros contra crianças, eventualmente culminando por atirar em si mesmo, é por certo, além de suicida, terrorista e facínora ? dependendo da motivação do ato. No entanto, uma pessoa que consegue penetrar no quartel de tropas que invadiram seu país e se faz explodir levando consigo um tanto de inimigos, que atira contra espiões, lança granadas em esbirros da polícia do invasor ? este é apenas suicida ou combatente. Não diz nosso Hino Nacional que "verás que um filho teu não foge à luta /nem teme, quem te adora, a própria morte"?

Pimentão maduro

Soldado de exército irregular (irlandês), guerrilheiro (latino-americano), terrorista (muçulmano): a violência contra a verdade começa com a distorção do sentido das palavras. Se um líder histórico como Fidel Castro é "ditador", ditadores são xeiques, príncipes e emires do Oriente Médio ? excrescências sustentadas não pela cultura árabe, mas pelos imperialismos europeus ?, sem falar nos títeres do Afeganistão e do Iraque. E será efetivamente a eleição o que valida um governo democrático? Hitler foi eleito chanceler do Reich com votação maciça entre os operários alemães. Agora, José Maria Aznar e Silvio Berlusconi governam, legitimamente escolhidos, embora tanto nos evoquem os fantasmas de Francisco Franco e Benito Mussolini.

O observador independente que contabiliza a fração de votantes que compareceu à eleição de George W. Bush; lembra a sordidez da propaganda que cercou o caso Monica Lewinsky no período pré-eleitoral; compara a personalidade do atual governante americano com a elegância de espírito de seu antecessor (há sobre isso um texto interessante de Gabriel García Márquez); recorda a mutreta da contagem de votos na Flórida, estado governado pelo "mano" Jeb ? esse juiz imparcial terá muitas dúvidas sobre a validade do processo que, por mera tradição rançosa, conduziu ao poder aquele que teve menor número de votos.

Pouca importância teria isso para o resto do mundo, não fosse a linha direta que une o nível mais profundo do nazismo ? a filosofia de Martin Heidegger, figura máxima do nacional-idealismo germânico ? e os estrategistas lúcidos do núcleo duro da era Bush, de Paul Wolfovitz a John Ashcroft. O fio condutor que une esses momentos trágicos da História é, como se sabe, Eric Strauss, autor de The Man and the City, o erudito que, de Berlim a Londres e a Chicago, entre as décadas de 1920 e 1970, filtrou o negativismo de Thomas Hobbes (The Human Nature) a partir da ótica heideggeriana.

Cometemos erros na apreciação imediata do fenômeno nazista. Foi errado concentrar o foco em Adolf Hitler e sua corte ? isso nos impediu de criticar a essência dos valores nos quais se apoiava o simbolismo extremado e delirante que empolgou a Alemanha. É possível que a tragédia do povo judeu nos tenha obscurecido para algo ainda mais terrível: o viés pérfido de eleger para o sacrifício qualquer grupo humano sobre o qual se possam atirar culpas imaginárias. Também pecamos por ignorar que a mais alta expressão filosófica do século pode cultivar a mais perigosa das doutrinas, ainda quando se proteja ao longo do tempo por uma estudada cortina de silêncio..

Quem se lembra daquela frase atribuída a Joseph Goebbels ? "mentiras infinitamente repetidas tornam-se verdade" ? ou daquela outra constatação da mesma época ? "não importam os fatos, importam as versões"? Pensei nisso, outro dia, lendo documento do Fundo Monetário Internacional em que se chama de "ricos" os brasileiros que têm renda familiar mensal equivalente ou superior a 700 dólares (cerca de 2 mil reais), aplicando critérios africanos a este país, segundo maior produtor de grãos do mundo, maior exportador mundial de carne e de frangos, fabricante dos melhores aviões médios de passageiros, detentor da melhor tecnologia agrícola em solos tropicais secos, parceiro acatado nas pesquisas de genoma, descobridor do processo mais eficiente de enriquecimento de urânio, grande produtor de aço, de automóveis, de frutas, de petróleo em águas profundas …

Agora mesmo, leio que as universidades públicas brasileiras servem apenas aos ricos. Se é assim, pecam pela usura esses meninos e meninas que formam fila imensa, de mais de meia hora, para entrar no restaurante da Universidade Federal de Santa Catarina, onde se serve comida bem razoável para o preço ? 1,50 real. Certamente, eles, no estado de melhor distribuição de renda do país, incorporam a modéstia, a valorização do trabalho, a frugalidade descritas em "A ética protestante e o espírito do capitalismo", de Max Weber ? que, aliás, o capitalismo contemporâneo, com sua economia de consumo, já perdeu há muito tempo. E será certamente cínico meu brilhante bolsista de iniciação científica, filho de mãe de sobrenome alemão e pai de sobrenome japonês (oh, Brasil, lugar único no mundo onde algo assim acontece; e ninguém se espanta, porque a maioria de nós acha que temos aqui uma única raça, a raça humana), quando, vermelho como pimentão maduro, me pediu ajuda para ir a um congresso em Belo Horizonte. Não dispunha dos fundos necessários ? 60 reais.

Onde a mentira, no que me dizem ou no que testemunho?

Interesse próprios

O século 20 reescreveu muitos princípios. Leio alguns deles, em sua forma original, no texto "Quando o amor à ciência ainda basta …", de Maria das Graças Targino, Roberta Targino Pinto Correia e Cristiane Portela de Carvalho, que abre o livro Comunicação para a Ciência, editado por Jorge Duarte e Antônio Teixeira de Barros (Embrapa Tecnológica, 2003). Cito os critérios de Merton para os padrões de comportamento da comunidade científica ? por exemplo, o compartilhamento, communism, e o desapego material, desinterestedness, segundo os quais os resultados da pesquisa não pertencem ao cientista nem lhe devem trazer lucro material, mas à humanidade e em benefício dela.

Sobreviverão esses princípios ao culto das patentes, no qual se privilegiam não só tecnologias inovadoras, mas meras idéias, desde que possam eventualmente dar lucro, doa a quem doer, morra quem morrer? Ou, para dar outro exemplo em Merton, o ceticismo sistemático, organized skepticism, contra o qual se movimentam grupos de crentes financiados por grandes corporações ? radicais ecológicos, racistas revolucionários, homossexualistas exaltados, naturebas, ufologistas… ? todos se afirmando ungidos pela ciência?

Estamos falando da mesma ciência?

Leio na internet que prenderam Saddam Hussein. O Globo Online, com a falta de senso crítico que é padrão nas editorias internacionais brasileiras, o chama de "ditador" e "tirano". Pode ter sido. No entanto, pondero que Slobodan Milosevic, último governante iugoslavo, a quem se atribuíram muitos crimes, está sendo julgado há anos pelo Tribunal de Haia, na Holanda, e até agora, apesar dos interesses envolvidos, não foi possível condená-lo. Há, pelo contrário, muita protelação e forte torcida para que, doente, ele termine morrendo e assim o processo se extinga, sem o ônus político da absolvição. Daí, preferiria chamar Saddam de "presidente deposto", "líder do partido Baath" ou, talvez, de "antigo líder iraquiano".

Vão, naturalmente, submetê-lo a toda humilhação possível; podem vesti-lo de macacão laranja, como os torturados em Guantánamo, ou mostrá-lo numa jaula com pijama listrado, como Fujimori fez com seus prisioneiros, antes de ser desmascarado. Podem, mesmo, colocá-lo naquela máquina descrita por Franz Kafka em A Colônia Penal, que corta suavemente as carnes do prisioneiro regando-a com soros e perfumes para que o sofrimento se prolongue ? esse é o espírito da era Meiwes. Tudo farão (interromperam até um surto de declínio da economia) para reeleger Bush e assim manter a destinação de mais de 50% do orçamento dos Estados Unidos para os preparativos de guerras futuras.

Ao negar aos países que não se envolveram na agressão ao Iraque a participação em verbas para a "reconstrução" do país ? que, naturalmente, terá que pagar cada centavo com o petróleo de seus poços ?, Wolfowitz, secretário adjunto de defesa, anunciou que isso desencorajará recusa similar em "próximas empreitadas".

É. Uma coisa que caracterizava o nazismo alemão e parece renascer agora é a necessidade de manter a mobilização, criando sempre novas metas, cada vez mais ousadas e destrutivas, na senda do Reich de Mil Anos.

Diante de tudo isso, proponho um anti-lead ou close-lead. Não seria melhor, enquanto há tempo, ensinar nossos estudantes (os de jornalismo, sim, mas não só eles) a pensar e a traduzir, não as palavras, mas o sentido contextualizado delas? Não é esse procedimento preferível à atual imposição de um discurso arcaico, que critica o todo e, portanto, nada defende? Ou de uma exaltação de valores (a universalidade da ciência, a soberania dos povos, o primado da justiça, a livre competição, a solidariedade humana) como se existissem além do universo dos desejos? Mostrar-lhes que, por trás de rótulos e personagens ? de Alexandre o Grande, Gengis Khan, Hilter, Stalin, Napoleão, De Gaulle, Lula ou Bush ? há, na verdade, instâncias ideológicas, econômicas e grupos de poder que eventualmente sobrevivem, reagrupam-se e refinam seus discursos? Que somos um povo e uma pátria, não um rebanho ou uma ficção geográfica, e temos nossos próprios interesses, não certamente esses que se apregoam?

(*) Jornalista, professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina