Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A vida como ela é?

Lira Neto, ombudsman de O Povo

“Só os mortos não traem”

Nelson Rodrigues (1912-1980), escritor e jornalista

 

M

ais parecia história de Nelson Rodrigues. Na terça-feira passada, O Povo estampava em primeira página o drama de Francisco Alves de Oliveira, o Chico da Sucata. O homem que dorme sobre o túmulo da esposa, morta precocemente por um câncer. A matéria detalhava que Chico ainda guarda os cabelos da mulher, os perfumes, as calcinhas. Guarda também, com mórbido carinho, fitas de vídeo gravadas durante o velório: ele, debruçado sobre o caixão, último beijo na boca de Eliete. Na matéria, Chico promete qualquer dia abrir o túmulo. “Para ver como ela ficou”.

Em comentário interno enviado à Redação, questionei o destaque dado à história de Chico da Sucata, que ocupava toda a metade da primeira página daquela edição do O Povo. Quase nossa manchete do dia. Afirmei que o jornal parecia ter sido contagiado por uma distorção ética e estética, que, infelizmente, mostra-se quase hegemônica na mídia brasileira: o reforço a um imaginário escatológico, em que histórias são oferecidas ao apetite mórbido do público como signos do excepcional, do exótico, do incomum, do sensacional.

Tomei o cuidado de lembrar que o grotesco pode ser utilizado em uma dimensão crítica, a exemplo do que ocorre na literatura de Nelson Rodrigues. Mas essa dimensão crítica é abolida quando o fascínio pelo extraordinário e pela aberração é posto em evidência por si mesmo, com o simples intuito de sublinhar a diferença e o estranhamento de uma suposta anormalidade alheia. Era o que fazia, penso eu, aquela primeira página do O Povo de terça-feira.

Era o que pensavam, também, seis leitores que ligaram para o Ombudsman sobre o assunto. Um sétimo leitor, por e-mail, discordava. Parabenizava o jornal por aquela primeira página.

Para “quebrar a rotina”

Aprender a criticar é um processo tão doloroso quanto o de aprender a ser criticado. (….) Pois, dois dias após aquele meu comentário interno sobre o tratamento editorial dado na primeira página à história do Chico da Sucata, a Redação provocava o ombudsman a aprofundar o diálogo. Recebi um documento enviado por nada menos de 34 colegas do O Povo. Uma espécie de “abaixo-assinado”, em que os colegas tratavam de rebater minhas argumentações.

O “abaixo-assinado” queria justificar a superexposição do drama de Chico da Sucata, com o argumento de que aquela era “uma oportunidade rara do jornal quebrar a rotina”. Logo em seguida, os colegas afirmavam: “Obviamente que situações semelhantes não devem ser exploradas com freqüência por um jornal como O Povo, porque o recurso desfiguraria sua linha editorial e sua própria imagem”.

Terríveis palavras

O documento incluía assinaturas de colegas de inegável competência e de comprovada sensibilidade jornalística. O que me leva a crer que muitos deles talvez não tenham se dado o trabalho de ler, com mais vagar, o significado daquelas terríveis palavras. Então, apenas para “quebrar a rotina”, concordamos em lançar mão de um “recurso” que nós próprios admitimos provocar uma “desfiguração” de nossa imagem e de nossos princípios editoriais e, por extensão, de nossos princípios éticos e profissionais? E fazemos isso pelo simples fato de ter sido uma única vez, uma vez perdida na vida?

Senti-me na obrigação de devolver algumas perguntas incômodas aos colegas: quantas vezes então nos permitiremos usar novamente o mesmo “recurso”? Uma vez por mês? Uma vez por ano? Uma vez a cada dez anos? Ou será que – dos males o menor – só teríamos coragem suficiente para cometer atos assim uma única vez em toda a nossa carreira de jornalistas? Ou, em breve, um belo dia, acharemos de novo que estará na hora de “quebrar a rotina” ?- Quem será, então, nosso próximo Chico da Sucata?

Misérias íntimas

O “abaixo-assinado” dos colegas lembrava ainda que “pequenas notícias de jornal, pelo drama humano que contêm, já inspiraram os melhores cronistas deste País, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos ou Drummond, sem que tenham resvalado para o grotesco nem para o escatológico”. De fato.

Mas fiz ver que o problema é que não somos Drummond, não somos Rubem Braga. Somos jornalistas, historiógrafos do cotidiano. Continuemos pois a fazer “notícias de jornal” – o que não é pouco – e deixemos para que os artistas transfigurem a realidade a partir de seu talento singular. A eles cabe conferir uma leitura estética aos dramas humanos que, na verdade, devemos noticiar todos os dias.

Quando o jornalista tenta dar atributos estéticos à notícia, deve ficar atento ao risco de estar apenas transformando a vida em mercadoria, produzindo uma cruel espetacularização do real. Risco fatal de sensacionalizar as misérias íntimas de pessoas de carne e osso. De transformar o patético da existência humana em um drama superficial, que até pode render “a foto da semana” e, talvez, uma boa história para a capa do jornal. No entanto, é bom prestar atenção: as pessoas não são feitas só de carne e osso.

As pessoas têm entranhas, nervos, fígado e coração. Às vezes têm também fantasmas e assombros. Lutam com eles por toda a vida. É o caso do nosso Chico da Sucata. Não nos cabe usar sua ingenuidade e pesadelo, em tamanho destaque na primeira página, apenas para “quebrar a rotina” de nossas edições diárias. Chico da Sucata não tem culpa nenhuma de nossas próprias limitações criativas. E isso não é, de modo algum, “humanizar o jornalismo”. É tornarmo-nos, ainda mais, rotineiramente desumanos. Sem, talvez, sequer nos darmos conta disso.

Copyright O Povo, 1/6/98.