Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A voz do povo e o voto

PESQUISAS DE OPINIÃO

Deonísio da Silva (*)

A voz das pesquisas é a voz do povo? A voz do povo é a voz de Deus, como diz provérbio? A expressão veio do latim vox populi, vox Dei, traduzida quase literalmente. Há milênios o povo simples considera que o julgamento popular é a voz de Deus. Tal crença tem raízes na cultura das mais diversas procedências. Tudo começou em Acaia, no Peloponeso, onde o deus Hermes se manifestava em seu templo do seguinte modo: o consulente entrava, fazia a pergunta ao oráculo, depois do que tapava orelhas e ouvidos com as mãos e saía do recinto.

Uma vez na rua, as palavras errantes ditas pelos primeiros transeuntes seriam as respostas divinas. Perguntava-se a um deus, mas era o povo quem respondia. No Brasil, o Vox Populi foi um dos primeiros institutos de pesquisa de opinião a prever a vitória de Fernando Collor de Melo nas eleições presidências de 1989 por larga margem. Curiosamente, não previu seu afastamento, em 1992. Teria faltado a vox Dei?

Agora estão aí os institutos de pesquisa fazendo o que mais sabem fazer, pesquisar. Quando o Vox Populi previu a vitória de Collor, outros institutos de pesquisa colocavam o rapaz em terceiro lugar e davam como fatal a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. E até foi insinuado que era manipulação. Em artigo tão curto, não quero cometer a irresponsabilidade da análise, mas deixo a conclusão para os leitores e eleitores: a pesquisa disse uma coisa; as urnas, outra. E aquela não foi a única vez que erraram.

Fiquei deveras estarrecido com as verbas dessas pesquisas que visam descobrir a voz do povo. E se nesse ritmo em que vamos, com o FMI exigindo que economizemos cada vez mais, daqui a pouco a classe política decidir, em nosso nome, que as eleições não são necessárias, que bastam as pesquisas?

Como farsa

Outro provérbio muito citado em tempos de eleição diz que cada povo tem o governo que merece. Esta frase é proferida quando se quer falar mal do governo, atribuindo-se ao povo a má escolha. É de autoria do filósofo francês Joseph De Maistre (1753-1821), crítico da Revolução Francesa, inimigo das repúblicas e defensor das monarquias e do papa. Apesar de a frase ter servido sempre para vituperar todos os governos, os alvos preferidos são aqueles escolhidos por voto popular. Porém, nada se diz quando os eleitores mostram sabedoria nas votações. Assim, contrariando a máxima popular, que diz que filho bonito tem muitos pais, mas que filho feio não tem pai e nem mãe, é sempre órfão, às vezes até sem avós e filho da outra, na política o pai do patinho feito é sempre o povo. Pois no fundo a frase "cada povo tem o governo que merece" faz uma crítica, não aos maus governos, mas aos responsáveis por sua elevação aos cargos. Que nas democracias é o povo.

Por isso, quem reclama de Fernando Henrique Cardoso não pode esquecer de que foi o povo quem o elegeu e reelegeu. E o presidente Getúlio Vargas, que reinou como ditador de 1930 a 1945, voltou nos braços do povo, eleito, e ficou no poder de 1950 a 1954. E só saiu dali por suicídio. Se o depusessem, iriam logo ver o que era bom para tosse.

O povo. Quem é mesmo o povo? Canta em seus versos o Affonso Romano de Sant?Anna, "uma coisa é um país,/ outra, um ajuntamento;/ Uma coisa é um país,/ Outra, um regimento". O Brasil tem 170 milhões de habitantes e mais de 100 milhões de leitores. Pesquisam a opinião de duas mil pessoas! É verdade que para saber se uma sopa está boa de sal, a cozinheira não toma a panela toda, mas será que as pesquisas não estão exagerando para menos na amostragem da voz do povo? A voz do povo é a voz das urnas. Será ela a voz de Deus? Só se no sentido do que dizia um célebre alemão: com efeito, a História vai para a frente, e só se repete como farsa.

(*) Escritor e professor universitário, publica semanalmente
neste espaço; seus livros mais recentes são De Onde Vêm
As Palavras
e Os Guerreiros do Campo