Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Abacalula e Lulacaxi

JORNALISMO & GOVERNO

José Antonio Palhano (*)

Há quantos dias consecutivos floresce o abacaxi do cartunista boa-praça Chico Caruso na primeira página do Globo? E, por tabela, no maior telejornal do país, em pleno e disputadíssimo horário nobre, aqui em versão animada e sonorizada?

Não importa uma contagem exata, matemática, dessas impressões-inserções bromeliáceas. Basta um cálculo ligeiro e sincero para deduzir que a coisa bem pegou o jeitão de um seriado.

Fosse pela fruta, tudo ótimo. Saborosa que só, irrompe da terra com a generosidade ímpar da mãe-natureza, eclética e democrática ao limite de se apresentar em versões que agradem tanto aos comensais que apreciam o doce mais derramado quanto aqueles que optam por uma acidez mais acentuada. Quase um símbolo do nosso tropicalismo e da nossa exuberância, alçou vôo às alturas mais nobres ao pousar e se eternizar sobre a cabeça de Carmem Miranda ? este sim batizado, homologado e sacrossanto símbolo verde e amarelo.

No mais, em pátria tão amada, salve, salve, sangrada e parasitada pelo sempiterno e insaciável mercado financeiro, nada mais auspicioso que exaltar a secular reza do em-se-plantando-tudo-dá, afinal a tal balança comercial bem anda dando um ibope típico das mulheres apaixonadas e também globais. Toda força ao abacaxi, portanto. Ainda mais que há tempos se faz merecedor de alforria que o livre em definitivo do estigma segundo o qual nossas atribulações tornam-se mais graves e complexas se comparadas ao prosaico e nativo gesto de desnudá-lo e expor seus encantos.

Salvaguardas hipócritas

O diabo é o protagonista a quem foi concedida a suprema honra de fazer par com o ilustríssimo abacaxi do Chico. Ninguém menos que o presidente da República, que lá bate ponto rigorosamente todos os dias, seja montando seu parceiro e subindo aos ares, descascando-o, esquartejando-o, chupando-o ou ofertando-o a outrem. Nada contra tal performance. Frutos, sejam bromeliáceos ou não, estão aí para isso mesmo. Serem colhidos, lavados, descascados quando necessários, fatiados e comidos. Ainda mais em tempos de Fome Zero.

O bicho pega é quando a gente se pergunta porque cargas d?água nossos presidentes da República, e mais tudo aquilo que deles emana, desde primórdios nos quais provavelmente ainda nem existiam abacaxis, pousam nas primeiras páginas dos jornais com a mesma determinação com que um hematófago e guloso carrapato finca suas ventosas sugadoras no couro exemplarmente vascularizado, ali nas vizinhanças do úbere, de uma vaca, seja ou não premiada.

Uma interpretação mais acurada e honesta dispensaria, de cara, estereótipos que revelem, aos berros, intenções e cacoetes chapas-brancas por trás do abacaxizal lulista. De um lado, Chico Caruso se consagrou tanto pelo seu incomparável traço artístico quanto pelas suas posições políticas. Insuspeito, portanto. O Globo, por sua vez, há muito sofreu providencial e definitiva muda, capaz de livrá-lo por toda a eternidade de pechas e apelidos ruins, tanto que hospeda em sua página 7 gentes de todo o arco ideológico, sejam vegetarianas convictas ou carnívoras recalcitrantes. À guisa de chancela definitiva, o que mais se sobressaiu nas gloriosas despedidas de Roberto Marinho foi justo a lembrança da sua intransigente e fidalga defesa dos seus comunistas nos tempos em que eram caçados e abatidos feito marrecos selvagens. O jornal se assume como é e ponto final.

O problema, assim, é mais sério. Definitivamente, ainda não fomos capazes de nos livrar do governo e do poder, sejamos fazedores de jornal, leitores ou eleitores. Não interessa se a favor ou contra, o certo é que sorvemos o poder ávida e pecaminosamente em nossas primeiras páginas. E daí sobrevêm graves e indigestas distorções, das quais não nos livramos por mais que invoquemos salvaguardas hipócritas como, por exemplo, fantasiar que o cruel destino de embrulhadoras de peixe, reservado às folhas mal elas completem 12 horas, faria as vezes de providencial arrefecedor de escrúpulos e de consciências cívicas e críticas.

Juros estratosféricos

Observe-se a galopante e mórbida atração que nutrimos pelas audiências, sinetes, brasões, documentos e papiros oficiais. A cada anúncio de uma reunião do chamado Copom a respeito dos juros, espraia-se pela mídia nacional um frisson digno do anúncio anual das notas das escolas de samba, mania esquisita e exclusivíssima do país da jabuticaba (e do abacaxi, com perdão do Chico) e do jabuti trepado em árvore abordar a economia. Não bastasse semelhante e imoral carnavalização da política monetária (vai ver, tamanha alienação é a responsável pela escancarada e vergonhosa usura vigente, virulenta o suficiente para livrar os bancos do imposto de renda), virou moda interpretar, uma semana depois, a ata do mesmo Copom com a solenidade e a reverência reservadas a uma bula papal. Não demora, pipocam por aí, no embalo industrial das nossas faculdades particulares, cursos de MBA específicos para a correta interpretação das ditas atas.

Outra distorção é essa tendência atual de atribuir à charge um papel exclusivamente lúdico. É o caso em questão. Como o presidente Lula não é objeto de nenhum escândalo bíblico, tampouco logrou a multiplicação dos peixes, também bíblica, sobra-lhe o papel, secundário, de figurar diuturnamente em charges na conta de um artista mambembe e de baixa consistência. Algo como uma caricatura oficial usada e abusada, apenas e tão-somente para divertir, mas incapaz de ocultar frondoso e resistente cordão umbilical. Maior desgaste impossível, mesmo que a intenção primeira fosse esta. Se não falha a memória, foi mestre Ziraldo, nos áureos tempos do Jornal do Brasil, quem definiu, com rara felicidade, a charge como um editorial sem palavras. Na mosca.

Assimilada como tal, lhe seria obrigatório fazer a crônica de acontecimentos e costumes que ditam o nosso doloroso calvário de mazelas, por mais que isto choque e doa. Fica a cargo do artista, ou do editorialista, trabalhar os pincéis de maneira a não permitir que a empreitada se confunda com arroubos de escatologia, deboche, vulgaridade ou humor negro. Temas não faltam.

Exemplo portentoso pode ser dado pela onda avassaladora de abuso sexual contra crianças praticado por autoridades. Porto Ferreira, interior de São Paulo, uma cidade do Maranhão e Campo Grande (MS) foram palcos recentes da mixórdia. Nesta última, a Justiça, com rara agilidade, despachou às masmorras dois nobres vereadores que se revezavam numa menina de 13 anos, cuja mãe recebia uma mesada em troca para, além de suportar tudo calada, ainda acompanhar as incursões dos tarados e da criança ao motel. Seu arrependimento propiciou a eclosão da monstruosidade.

Mas nem pensar que fatos como esses façam contraponto ao oficialismo das capas, mesmo que ao custo de martelar Lula ao extremo, seja ao lado de frutas, seja embaixo do boné da hora. Andamos tão reféns do poder, e conseqüentemente do financismo que o desmoraliza e o faz exangue, que ultimamente escrevemos (e engolimos) na maior descontração teses esdrúxulas que tratam os juros estratosféricos como uma indecifrável e abismal pane existencialista tupiniquim.

Carunchos frugívoros

Bastou que o guru Pérsio Arida reconhecesse uma situação de absoluta ignorância quanto à gênese do custo do dinheiro, coisa inédita no planeta, para que nos deixássemos, guardadas as exceções de praxe, devorar passivamente pela esfinge. Um catatau de explicações técnicas e elucubrações inspiradas na matemática financeira encharca os diários e colunas dia após dia, faça chuva ou faça sol. Nenhuma palavrinha a respeito de aspectos morais e éticos. Enquanto isto, os banqueiros se esbaldam de rir e de encher as burras.

A fim de desqualificar qualquer tentação de detectar impressões digitais de chapas-brancas no processo, vale registrar que a escravidão midiática relativa ao poder se apresenta também escoltada por um oposicionismo repetitivo, monocórdico e inepto. Trata-se de acordar e escrever contra o governo antes mesmo de escovar os dentes. Ocorre com freqüência entre alguns colunistas da Folha de S.Paulo. Reféns irrecuperáveis dos tempos do hay gobierno, soy contra, insistem pateticamente em bater primeiro e perguntar depois, como se a patetice os livrasse da dependência oficial. Mal sabem que apenas perpetuam nocivo e extemporâneo maniqueísmo, pelo qual seria possível erguer entre nós um Tratado de Tordesilhas do jornalismo, velho e carcomido, onde os "do Bem" se separam dos "do Mal". E assim seguem grudados feito craca ao Palácio e adjacências.

Jornalismo, com todo respeito, vai muito além disso, mormente em país tão carente de informação, reflexão e formação de opinião. Num Brasil onde quase tudo está por fazer, se o propósito e alçá-lo à digna instância de nação, denunciar, criticar, elogiar, assim como detectar e propor soluções para os problemas, não deveria constranger e inibir o bom jornalista. Assim como fazem, quase solitários, colegas como Luís Nassif e Márcio Moreira Alves.

O negócio é torcer para sejam bem imitados. Não é pecado. Enquanto isso, que uma boa tropa de carunchos frugívoros derrube, ao menos temporariamente, os abacaxis do Chico.

(*) Médico e jornalista