Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Abortos e abutres

Sidney Garambone

 

A

mim coube o destino de estar dentro da delegacia. Sexta-feira, dia 20 de novembro. De manhã, em Botafogo, no Rio, uma clínica de aborto famosa foi estourada pela quarta vez. Porém, com a presença maciça da mídia, previamente avisada por policiais ávidos pelos holofotes. Não fiz aborto. Nem minha esposa. Minha presença na 10a DP era furtiva. Testemunha de uma briga de vizinhos, ocorrida em abril. Lá estava, aguardando o inspetor Alduíno me chamar. Meia hora olhando o teto. Súbito, várias meninas entram na delegacia, alguns rapazes as acompanham. Junto, policiais fortemente armados.

– Tem repórter aí dentro? – pergunta assustada uma menina.

Meu primeiro pensamento foi o de que socialites tinham sido pegas fumando maconha no café da manhã. Uma rápida apuração mostrou a verdade. Sete meninas e uma senhora casada, recém-saídas de cirurgias abortivas, rodavam feito zumbis, atônitas, nervosas, com o sentimento de culpa martelando a cabeça. Repórter, dentro, só tinha um. Eu. Os outros faziam plantão na portaria, à espera de notícias. Com eles, fotógrafos.

Numa conversa rápida com uma das garotas, soube da operação policial cinematográfica. Polícia! Polícia! Arrombam a porta, entram gritando e os funcionários da clínica, já treinados, encaminham as pacientes para uma sala secreta. A polícia vai atrás e ameaça explodir a porta blindada. Finalmente, os de branco capitulam e todo mundo vai preso. Na saída da clínica, fotos e imagens das criminosas, com as cabeças improvisadamente cobertas por revistas ou lençóis.

Hora do almoço, na delegacia. As meninas ainda não prestaram depoimento, nem almoçaram. Já combinaram que mentirão. O aborto virou consulta ginecológica e o preço caiu de R$ 850 para R$ 150. Reina a hipocrisia. De repente, um fotógrafo de prestígio de um jornal de prestígio sobe num banco e, pelo basculante, começa a disparar na direção do pátio da delegacia, onde estão as garotas. Pânico. Desespero. Correria. Algumas, ainda convalescendo, se arrastam para dentro de um banheiro. Nem mesmo a casada, com seu marido ao lado, queria expor o rosto. Menos ainda as outras, fazendo aborto sem o conhecimento da família.

Me identifiquei como jornalista e tentei argumentar que os repórteres lá fora não eram abutres nem ratos, como foram acusados por elas, aos prantos. Disse também que o bom senso e o respeito predominam nas redações. Nenhuma foto daquela seria publicada. Como não foi, para que fotografar? O constrangimento do ato não faz parte da ética? Fui saber isso com os fotógrafos e cinegrafistas que estavam lá trabalhando. Foram unânimes. “Eu faço a foto. É meu trabalho. Na redação decidem. Até acho que não vão publicar”. Respeito a opinião. Mas discordo. É a lei da selva? E se uma garota tropeça, bate com a cabeça e morre? Certamente um exagero. Mas estaríamos criando um fato. Para que expor a cara de uma mulher que acaba de passar por uma situação constrangedora e delicada? Não interessa a concorrência. Na Europa, fotógrafos boicotaram Sharon Stone durante uma cerimônia, depositando suas câmeras no chão e evitando fotografá-la. Isso, aqui, pelo jeito, seria impossível. Grande jornalista, meu ícone, Carlos Lemos me refuta. “Fotógrafo está lá para fotografar!”

O jornalismo não precisa de ética nem moral. Precisa de reflexão. Senão terminará no limbo da sociedade, onde já estão os advogados, devidamente crucificados na literatura e no cinema. Basta contar os filmes recentes que detonam a mídia. Com o aval do público.

As meninas do aborto acordaram cedo naquela sexta-feira para resolver um problema. Arrumaram um problemão. Os jornalistas.

 

Afonso Júnior (*)

O

Apocalipse falava da besta que seria uma espécie de profeta do imperador anti-Cristo, se bem me lembro. Bill Clinton esta longe de ser o Malvado Senhor das Trevas, talvez apenas na lascívia, mas as bestas estão prontas a defender seu império. Pelo menos na CNN. É claro que ninguém suporta mais a vida privada de Clinton e a fome de vender da imprensa americana. Gostaríamos, é claro, de poder encerrar essa história absurda e jogá- la no rol das irracionalidades humanas. Mas o problema não é fechar ou não, é apenas como fechar.

É quase ridículo que os quatro comentadores do programa Choque de Opiniões da CNN em espanhol tenham feito a mesma análise de segundo grau que 68% do povo americano fez. Dois deles decididamente pareciam entre o adolescente nacionalista exaltado e o reacionário estudado, um nazista defendendo o direito ao “espaço vital” americano. O governo é um representante do povo que tudo faz para preservar a honra nacional. Inclusive bombardear países pobres e sujos, e além disso, árabes, que ninguém sabe ao certo como são, além de que tem terroristas. É no Outro que projetamos todos os nossos medos e desejos inconscientes. Pobres diferentes! O mercado não os suporta!

Dá a impressão de que ou estes jornalistas são muito mal preparados (como de resto se vê na imprensa brasileira, em que as criaturas ficam estudando edição de imagem e dão opiniões totalmente descontextualizadas, com exceção talvez de Marília Gabriela e mais uns três) ou Noam Chomsky está certo ao dizer que a imprensa é um dos grupos de elite preocupados com o mero controle de mentes (Marx caiu de moda, mas a realidade ainda não!).

Clinton, o carismático midiado que, abandonado até pelos membros de seu partido, passou a ser o defensor da soberania americana (vou começar a jogar bombas em todos aqueles que no primário riram quando eu caí de nariz no chão!). Dispararam polianismos como “Os Estados Unidos não precisam pedir permissão de ninguém para preservar sua honra!”, “Todos criticam Tio Sam, mas quando há problemas todos eles pedem ajuda”. Esqueceram de dizer que muitas vezes eles nem pedem ajuda, como foi o caso da Nicarágua e do Vietnam, onde um aparelho militar foi levado para forçar os habitantes a aceitar o capitalismo de base americana, uma ditadura impopular (não vamos esquecer que o Brasil teve sua ditadura patrocinada pelas forças do Brother Sam!).

Mas não, agora os tempos são outros! Havia uma certa controvérsia (ufa! finalmente) no debate da CNN, e um deles disse que os Estados Unidos não podem agir sempre que acham devido e isoladamente, mas o tom geral acabou com este mesmo crítico apoiando o presidente pela “luta pela sua vida privada” (ele pode c… a mocréia que quiser desde que não fume maconha sem tragar e não diga que sexo oral não é bem sexo – há uma diferença entre a atitude e a retórica, e é isso que me interessa como sintoma de falta de valores reais).

O direito internacional, a necessidade de aceitar a diplomacia, a necessidade de tentar resolver por outros meios o terrorismo, por exemplo resolvendo a questão do Oriente Médio e desenvolvendo zonas periféricas (o restaurante Planet Hollywood foi explodido depois das bombas de Clinton), as conseqüências legais de um perjúrio (que é mais do que mentir na Justiça, é mostrar que o que vale é a imagem pessoal, e não a Constituição) foram temas apenas levantados que se perderam numa fofoca que nada acrescentou ao telespectador.

Bill Clinton, que durante sete meses se fez de marido caluniado, e Hillary Clinton, que passou por Bela Adormecida, apareceram com a maior cara de pau como ofendidos pela invasão de privacidade. O malandro que fugiu do serviço militar (um escândalo lá) sabe jogar com o sentimentalismo do povo. Conseguiu transformar um provável impeachment por causa de um vestido (a prova de sua desonestidade para com a Justiça) numa fofoca boba que todos desprezam. E de quebra tornou-se o defensor da intimidade familiar e dos problemas de segurança da nação (pobre Hillary, o único orgasmo que já teve foi lendo O Príncipe!).

Depois desse vexame dos analistas, fica-se pensando no que o americano médio com seu celular na mão e com férias planejadas para o Caribe pode debater e compreender do poder. O poder não conhece mais o povo? A democracia deixou de ser assunto do povo? Além do que, se eu fosse terrorista, dava um jeito de explodir mais 30 embaixadas nem que fosse nos próximos 2 anos (as criancinhas que lerem este texto por favor não façam isso em casa sem ajuda de seu pai).

(*) Dramaturgo e artista plástico