Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Acordes dissonantes da propaganda cognitiva

MÍDIA & MASSA

Moacyr Francisco (*)

O termo empregado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para explicar a atual instabilidade do mercado financeiro me fez divagar sobre o que andei lendo, vendo e ouvindo nos últimos dias.

Nunca, como no momento presente, fomos tão forte e covardemente bombardeados com tanto lixo em estado bruto. O arsenal de baixarias e "dissonâncias" tem munição de sobra para qualquer assunto. Desde bombinhas caseiras de efeito imoral aos poderosíssimos mísseis de empulhação política, passando, é claro, pelas metralhadoras da imbecilidade artística e intelectual ? essa, uma tropa de elite ? treinada especificamente para exterminar o Q.I. da face da Terra. E tudo isso é despejado diariamente sobre nossas cabeças pelos veículos de comunicação de massa, docilmente, entre sorrisos de celebridades, opiniões de "especialistas", noticiários e muita "interatividade". Parece de graça. Mas na verdade pagamos um preço muito alto por tanta "interação".

Esse fenômeno é capaz de transformar um cérebro sadio numa massa amorfa e parasitada pela estupidez. Há quem diga que os veículos se pautam pelos nossos desejos e gostos, mas é inegável que o nível vem descendo em progressão geométrica. Estariam ? mais notadamente as TVs abertas ? pautando sua programação de acordo com nosso nível cognitivo? Como chegamos a esse ponto, senão pela decadência cultural endêmica no Brasil, somada à conivência perversa dos próprios meios de comunicação?

Os "ataques" não reconhecem limites nem "campos de atuação". A futilidade se propaga no vácuo das cabeças ocas, onde a ignorância é auto-alimentada pelo próprio excremento. É um regurgitar sem fim.

Vivemos a era dos apelos fáceis enfiados goela abaixo daqueles que não têm ? porque lhes fora vetado a priori ? qualquer poder de discernimento ou raciocínio lógico que lhes permita objetar sobre o que quer que seja; um tempo em que "parecer" conta mais do que "ser" de fato.

A saúde mental do brasileiro médio, na acepção da palavra, está péssima. Seu cérebro, vítima das incessantes investidas da "ignorantzia" falante brasileira, e cansado de reagir inutilmente, já assimila os golpes com um sorrisinho abobalhado, resignado; já jogou a toalha…

Mergulhado nesse torpor, sua percepção oscila entre o que lhe é impingido como "anestésico" ou "estimulante". Seus miolos de geléia não distinguem mais vigarice e boa-fé. Tanto num discurso político quanto numa mensagem comercial, basta um "meio-caminho" entre o que se pode compreender e o que fica no ar. Com alguma vantagem para aquilo que fica subentendido ou o que se permite supor do enunciado.

Dependendo do "produto" que se queira empurrar, talvez seja melhor que a "mensagem" não se complete, dando ao receptor a sensação da "sacada", de uma perspicácia nele inexistente, oferecendo assim a este "potencial cliente" apenas uma fraude cognitiva, levando-o a se supor possuidor de uma "inteligência" que nunca teve.

Boa sintaxe é preciosidade?

Após esse nhenhenhém inicial ? mas obrigatório ? volto às divagações: imaginava o que estariam sentindo alguns dos "marqueteiros" dos candidatos nessas eleições. Sim, pois, antes publicitários, agora tratados como "meros" marqueteiros, ainda que com status de mentores intelectuais (e comportamentais) dos respectivos pupilos…

(Cabe aqui uma breve interrupção para pedir desculpas antecipadas pelo excessivo uso de aspas, travessões e parênteses que já usei e vou usar; já vi que não será possível um "texto liso" nesse assunto, para o bem de sua própria "cognição". Viu?, já começou.)

Partindo da "dissonância cognitiva" como abstração, tentando compreender a expressão "marqueteiro político", acho difícil escapar da "assonância" da primeira palavra com "marreteiro". Já a segunda palavra dispensa "cognições". Isso me soa como um "rebaixamento" de cargo. Pior ainda àquele que for o menos votado (olha aí as coisas se misturando; estaria eu me referindo agora ao candidato ou ao seu marqueteiro?).

Mas, nesse ninho de baratas (e aqui deixo claro que falo dos candidatos, ok?), o "nó no cérebro" está apenas começando. O inteligível e o "supostamente" vêm costurados com a mesma linha, num esforço desesperado(r) de se beneficiar das dúvidas e distrações da "platéia". Quando um partido proclama que "quem bate cartão não vota em patrão" estaria querendo dizer o que, exatamente? Deseja ? ou lutará por (visto que todos os candidatos vão "lutar por", e só) um país sem patrões, todinho formado por proletários? Sem patrão, quem bate cartão trabalharia para quem? Para eles mesmos? Logo, todos se transformariam em patrões de si mesmos! Ou não?

Escravizados pelo conceito de que nada é mais marcante do que uma idéia "de impacto", eles (candidatos ou marqueteiros?) cometem enormes sandices, não imaginando sequer o que se pode desdobrar de um mínimo questionamento mais inoportuno. Segundo um provérbio russo, um único idiota é capaz de fazer perguntas que dezenas de sábios juntos não conseguem responder.

Como admitir sem questionar as promessas de alguns partidos, como redução da carga horária de trabalho sem redução salarial (ou, pelo contrário, com seu significativo aumento), sem perguntar onde ? e como ? irão esses senhores buscar recursos para tal? Na mesma linha "incógnita" seguem aqueles do bordão "contra burguês, vote 16"; esta, um belíssimo exemplo da propaganda "meio-caminho" acima referida, aproveitando-se da enorme carga negativa de uma palavra que apenas identifica uma classe social ? até aí, nada demais ?, porém, já há muito subvertida e "trabalhada" para identificar "inimigos"; cabalar a concordância imediata e acéfala dos nossos eternos "explorados", inexoravelmente vítimas dos odiosos e fedorentos burgueses (incluí esse "fedorentos" porque lembrei-me de Cazuza ? um "roqueiro" elevado mágica e imediatamente ao olimpo dos "grandes poetas" pelas mãos de guardiães da correção política de algumas "militâncias" aos primeiros sintomas de sua doença ?, dizia: "a burguesia fede / a burguesia quer ficar rica / enquanto houver burguesia / não vai haver poesia". Ele mesmo, que ao se admitir burguês deixa no mesmo ato implícita a sua não-condição de poeta, já tinha pronta nessa mesma letra/música, a ressalva: "eu sou burguês, mas eu sou artista / estou do lado do povo" (sic), isentando-se antecipadamente da incômoda "dissonância" de criticar a classe a que ele mesmo pertencia. Deu para "cognitar"?)

Divagando um pouco mais, como não reconhecer o esforço de um grupo que se une em torno de uma causa (mais do que nobre) de melhorar as próprias condições de vida, pela certeza de estarem abandonados e sem mecanismos mobilizantes de classe, fundam o Partido dos Aposentados da Nação, dissonante de todos os demais. A pergunta óbvia é: quantos "maiores de 70 anos" ? target prioritário do referido partido ? estarão dispostos a comparecer e votar, já que esta idade os desobriga desse "fardo"?

Há uma candidata que, em sua propaganda radiofônica, a certa altura afirma: "Nossos direitos não podem ficar no papel"… É, parece que ela omitiu a palavra "só"; talvez tenha esquecido; talvez tenha sido proposital. Mas a que direitos se referiria essa senhora? Os das mulheres? Os de todos? Ou será que em sua opinião nenhum direito deve "ficar" em papel nenhum?

Criticá-los pelo (mau) uso da sintaxe seria preciosismo de minha parte?

Miolos de geléia

Ora, ainda nem falei sobre candidatos com tempo exíguo, que apelam à "sub propaganda", ou sub-sei-lá-o-quê. Na prática, uma elipse que consiste em simplesmente vociferar contra esse ou aquele desmando do governo atual para em seguida dizer seu número de candidato. E mais nada. Isso nem é novidade, mas me remete ao célebre comercial de TV feito há uns 15 anos(!) pela (então) "recém-nascida" W/Brasil para a Folha de S.Paulo: o locutor, em off, narrando feitos dignos de um herói, enquanto, de um único ponto, a câmera abria distância juntando a retícula da imagem até que a figura de Adolf Hitler, com a força de um soco na cara, ficasse nítida, deixando claro que os feitos ali descritos eram obra dele. Quem assistiu a esse comercial uma única vez não esquece. O impacto da imagem (que vale por mil palavras) obscurece o ponto central ? não aquele da imagem ?, mas o elo entre o que vemos e o que ouvimos. Ocorre aí uma "cognição" intuitiva, explicável desde o "conceito" mais que patente sobre a índole do líder nazista. A locução final, que afirma ser "possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade", cumpre sua função, mas é mera frase de efeito, pois embora seja ela mesma uma verdade não pode ser admitida como ratificação de "mentiras" contadas durante o próprio comercial, porque ele mesmo não encerra em si nenhuma mentira.

Sim, "dissonâncias cognitivas" abundam também na publicidade. Num recente spot de rádio, um locutor no papel de "chefe" pede à sua secretária que datilografe uma carta, mas, ao ditá-la, fala tão rápido que ela não consegue acompanhá-lo (no áudio, teclado da datilógrafa), então uma outra voz masculina se sobrepõe, advertindo que para "escrever" tão rápido (sic, de novo) só mesmo as impressoras "Tal"… De tão estúpido chega a ser… "incognitável"!

Esse assunto é inesgotável. Mas convém separar o mau anúncio do anúncio de mau gosto. Sobre esses, há até um site bem divertido: <www.juroquevi.com.br.>

O mau anúncio é o que nos causa um mal-estar mental. Um esgar incomodado, uma espécie de angústia inexplicável. Tentamos imaginar os passos que levaram à sua concepção. Às vezes também imaginar por onde andava a mente do anunciante que, além de aprovar, pagará pela idéia e pela vergonha, digo, veiculação da(s) peça(s).

A imensa massa populacional portadora dos miolos de geléia sequer percebe "dissonâncias". Mas aqueles que ainda ficam perplexos diante de alguém lendo um jornal de cabeça para baixo podem concluir, sem errar, que o jornal está na posição correta… Já para quem vacila diante das mensagens cifradas, dissonantes ou incognitivas paira a sinistra dúvida de ainda poder ou não "escolher" estar no grupo dos que não querem, ou no dos que não podem, entender mais nada.

(*) Publicitário, São Paulo

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