Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Adriana Del Ré

11 DE SETEMBRO

"Repórter vê NY antes e após atentados", copyright O Estado de S. Paulo, 16/09/02

"O repórter Sérgio Dávila participa hoje da noite de autógrafos de seu livro Nova York – Antes e Depois do Atentado, editado pela Geração Editoral, na Livraria Siciliano do Shopping Pátio Higienópolis. O livro, que faz parte da coleção ?Vida de Repórter?, é uma coletânea de textos escritos por Dávila, a maior parte para sua coluna virtual Pop, Pop, Pop.

São artigos que têm como divisor de águas o fatídico 11 de setembro de 2001. Antes do ataque às torres do World Trade Center, Dávila traçava panoramas do ?american way of life?. Mais especificamente, do estado de espírito da população de Nova York, cidade onde mora desde 2000. Depois das ações terroristas, entretanto, seus textos se voltaram para o clima de terrorismo e alerta que imperam hoje entre os americanos.

Instaurou-se uma nova temporada de caça às bruxas. ?Antes, Nova York era a melhor cidade do mundo. Depois, continuou a ser a melhor cidade do mundo, com ressalvas: Nova York, que deixou de ser norte-americana nos anos 50, voltou a pertencer aos Estados Unidos, mesmo que por alguns meses, com tudo de bom e ruim que isso tem?, descreve.

No exato momento dos ataques, o repórter estava dormindo e acordou quando o telefone tocou. Em minutos, estava na rua, indo a pé para World Trade Center, porque o metrô, os ônibus e os táxis não estavam funcionando. ?Saí de casa ainda com as primeiras informações das emissoras sobre um monomotor que havia batido por engano numa das torres do WTC.? Segundo ele, nos dias que se seguiram ao atentado e mesmo atualmente, não é recomendável ter nomes e sobrenomes com muitas consoantes, olhos amendoados ou traços do Oriente Médio. ?Agora, tanto faz você ser da Índia ou do Iraque, vai ser olhado com desconfiança.?

No artigo ?A Broadway o espera, desde que você seja americano?, Dávila mostra até que ponto pode chegar a fobia ianque. O repórter relata um episódio vivenciado pelo consultor tecnológico indiano Uday Menon, que resolveu atender aos apelos do prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, e retomar a vida normal. Reservou ingressos para a peça Kiss Me Kate, na Broadway, por telefone. Ao chegar ao local com a mulher, o caixa orientou Menon a retirar os tíquetes numa área especial. Enquanto se dirigia à tal área, foi rendido por quatro policiais e três agentes do FBI, que o jogaram no chão e algemaram. A atendente do Ticketmaster o havia confundido com um árabe, por causa de seu forte sotaque indiano.

Para o autor, os americanos nunca mais serão os mesmos. ?Estou convencido de que o milênio começou com o 11 de setembro de 2001 e que, no futuro, os historiadores vão apontar esse como o marco zero de uma nova era.? (Nova York – Antes e Depois do Ataque. De Sérgio Dávila, Geração Editorial. 256 páginas. R$ 25,00. Hoje, a partir das 19 horas. Siciliano Livros & Música/Shopping Pátio Higienópolis. Avenida Higienópolis, 618, tel. 3823-2669)"

 

"O tempo congelado (e quente)", copyright Folha de S. Paulo, 15/09/02

"Logo na véspera de 11 de setembro, as imagens começaram a desabar em avalanche. Outra vez, como há um ano, as torres do World Trade Center ruíram sob o cerrado bombardeio dos aviões de carreira. Em videoteipe, o passado foi (e é) presentificado. As torres foram imortalizadas assim, em movimento, num desmoronamento sem fim. Os bombeiros de Nova York entraram outra vez em gozo de heroísmo. Um deles apareceu no ?Jornal da Globo? para dizer que odeia os inimigos. Um outro se locomoveu até o Brasil para dar uma entrevista a Jô Soares, que até ganhou um boné com a inscrição ?11 de setembro, nunca esqueceremos?. E, a toda hora, em todos os canais, as torres, sempre. A nuvem densa, escura e monstruosa que engoliu o sul de Manhattan naquela manhã de sol nunca mais se desfez. Aliás, o sol daquela manhã nunca mais se pôs. O estrondo persiste, os gritos dos transeuntes não se calam, a poeira sobre os rostos em pânico, as lágrimas, tudo permanece: desde 11 de setembro de 2001, o tempo histórico está interrompido. Mas não está silencioso: ele ruge. O tempo está congelado. Mas não está enregelado: ele arde a uma temperatura escaldante.

É o que a TV nos traz. Um quadro estranho, ilógico. O movimento é intenso. E, no entanto, não se vai a lugar algum. As coisas não avançam e nem recuam. E, no entanto, não param. Difícil explicar exatamente. Talvez o tempo histórico esteja assumindo em todos os sentidos o aspecto de um televisor no meio da sala de estar: dentro dele, as imagens velozes vão e vêm, incessantes, mas ele mesmo, televisor, está ali, parado, feito um rádio de válvulas, que não sai do lugar.

Bin Laden, o próprio, é um que vai e vem, feito um fantasma na tela da TV. Está morto e está vivo. Está sumido e está presente. Seu turbante e sua barba entram e saem de foco, como um prenúncio ou um resíduo, um dom Sebastião às avessas, que a qualquer momento voltará de uma guerra santa como num truque de efeito especial. Bin Laden tem um quê de místico, do outro mundo, do além.

Quanto a George Walker Bush, este é um ser do aquém. Estava aquém do momento e, mesmo assim, usurpou a cena. Seus cabelos branquearam, é verdade, como que a sinalizar que os anos teriam passado e que a maturidade lhe teria vindo em socorro. Mas até aí Bush surge como simulacro, um personagem de novela, um Moisés de Charlton Heston que acaba de descer do Monte Sinai com aquela peruca alva esculpida em laquê. A despeito da cabeleira que ele usa como quem carrega uma coroa, tudo está como antes: o império busca vingança, como buscava há um ano, e não consegue consumá-la. Bush é um personagem que erra o endereço do alvo em busca de um alvo que não mude de endereço. Na falta de um Bin Laden, que se desmaterializou, quer alvejar Saddam Hussein.

Enquanto isso, as torres gêmeas caem e caem e caem, em rede mundial de TV. O tempo parou ali, no 11 de setembro de 2001. Os coadjuvantes estão se cansando (os estadistas europeus hesitam em apoiá-lo em mais uma operação militar), a platéia está dando sinais de enfado (nos Estados Unidos e no resto do mundo, o furor beligerante das massas anda arrefecido), mas não adianta: ainda estamos vivendo o 11 de setembro de 2001.

Agora é assim, a história acontece segundo esse tempo totalizante da TV, um tempo que aprisiona o passado em videoclipes (o que não pode ser esquecido vira presente constante, como Elvis, que não morreu, e os edifícios do World Trade Center, que jamais terminaram de afundar no chão) e que retarda o futuro para depois dos intervalos comerciais (agora monopolizados pelos interesses da indústria bélica). O tempo na TV não evolui linearmente, mas se sucede em grandes bolhas. O problema é que, às vezes, as bolhas, aparentemente congeladas, acabam explodindo."

 

PORNOGRAFIA & GUERRA

"A fuga do pornógrafo", copyright Jornal do Brasil, 12/09/02

"Voam mísseis nos céus do Hemisfério Norte. Ou quase voam. Aviões de carreira são mísseis. Ou quase são. O Iraque está em chamas – em sentido figurado, por enquanto. O cérebro duvidoso de Bush está em contagem regressiva. Ou quase regressiva: às vezes, suspeita-se, Bush erra a seqüência numérica e não consegue saber qual é o dígito seguinte – o que sempre representa uma chance para a paz. Fora isso, a paz está por um triz. Está por um quase.

Quanto a mim, eu faço a minha parte. Ando atrás de mulheres peladas na internet. Eu quero mudar de assunto, aproveitar a vida, o sexo, eu quero fugir da guerra. Chega de notícia. Chega de Bush.

Árdua missão, essa que fui inventar. Não consigo ser bem-sucedido. Esbarro, entre um clique e outro, na cotação do dólar. Barril de petróleo. Risco-país. Isso me desconcentra. Esbarro em seguida na confissão de Bin Laden, veiculada pela TV Al-Jazira, do Catar. Uma voz atribuída ao terrorista chama para si a responsabilidade pelos atentados de um ano atrás nos Estados Unidos. Árdua missão: quem é que consegue pensar em mulheres nuas com um barulho bélico desses?

Insisto. Anima-me uma hipótese de que a pornografia é diretamente proporcional às asperezas dos espaços públicos. Se a hipótese estiver certa, ofertas pornográficas não faltarão. É lógico: se o mundo lá fora é inóspito e destruidor, o sujeito se acalma vivenciando seus prazeres de alcova. Em outras palavras, se não há mais a perspectiva de um futuro coletivo, pacífico e duradouro, o cidadão se entrega ao gozo dos sentidos. E isso com volúpia, com pressa, antes que os sentidos acabem, antes que o corpo envelheça – ou antes que Bush se lembre, num desses milagres neurológicos, como é que se conta de trás para frente.

Admito que essa minha hipótese é conservadora. É mais confortável, mais ?moderno?, a gente pensar no gozo dos sentidos como quem pensa na expansão do ser, num exercício legítimo de prazer, saudável e libertador. É mais politicamente correto pensar que a libertinagem é uma das dimensões da liberdade, e não uma degeneração da liberdade. A liberdade sexual, todos sabemos, é uma conquista da democracia e dos direitos individuais. Palmas, portanto, para toda forma de liberdade sexual.

A questão complicadora é que a liberdade sexual foi convertida em indústria. Aí, deixou de ser liberdade. Nem libertinagem ela é mais. A indústria pornográfica é impositiva, não deixa saídas, não deixa escolhas. Numa palavra, é opressora. O escancaramento das ofertas eróticas, em escala industrial, reprime. O sujeito pode recorrer a ela para fugir ao mundo violento lá de fora mas não pode fugir à extrema violência que está contida na própria pornografia industrializada. (Herbert Marcuse se ocupou disso ainda nos anos 60, alguém há de dizer, mas a gente nunca se lembra de Marcuse nessas horas. Ou quase não se lembra.)

Mesmo assim, eu continuo atrás das mulheres peladas. Vou encontrando e colecionando muitas delas. Muitas. Sinto uma quase felicidade me percorrendo o corpo. Eu mal penso em Bin Laden. Mas penso na indústria…

É possível estabelecer uma vinculação entre a falência cada vez mais acentuada da vida em sociedade e o crescimento exponencial da indústria pornográfica. Não só dessa indústria específica, mas de toda a indústria do lazer que convida ao individualismo. A tendência é se trancar em casa, nos motéis, nos shoppings. Como quem se fecha num casulo. A era dos cocooners, como dizem. Cuidar do próprio jardim (torná-lo como o jardim da revista que se compra na banca), da própria cozinha (para copiar as receitas da televisão), do home theater (que exibe os filmes de Hollywood), da cerca eletrificada, do vidro blindado, da pornografia secreta, personalizadíssima e, não obstante, industrializada. Curioso esse nosso individualismo. Ele é narcísico e, ao mesmo tempo, padronizado.

Eu não gostaria de ser conservador mas acho que sou. Essa pornografia de que a internet anda abarrotada, e que consumimos em privado, não é outra coisa senão o avesso do terror que sentimos diante da dimensão pública de nós mesmos. Em privado, somos tarados. Em público, cavaleiros do apocalipse, ativos ou passivos. Em público, das duas uma: ou declaramos guerra ao Iraque ou, no nosso silêncio omisso, torcemos para que o Iraque desapareça logo de uma vez. Em privado, deixamo-nos embotar desse arsenal de fantasias eróticas pré-fabricadas, deixamo-nos devorar pelo desejo confeccionado pelo capital em forma de mulher pelada em estúdio, cultivamos esse desejo prêt-à-porter como se fosse o nosso desejo, como se fosse a nossa própria liberdade individual.

Não importa. Eu quero um gozo que me faça esquecer, que me sacie e, mais que isso, que me aplaque os sentidos. Sigo a minha procura e quero parar de pensar. Ah, quantas mulheres peladas existem à espera da minha solidão. Eu posso escutar a voz delas. Eu ouço a língua que elas falam, uma língua estranha e familiar ao mesmo tempo, de lubricidade e de mercado de uma vez só. A fala de todas elas é muito íntima e também muito genérica: serve para mim e para todos os demais. Mais ou menos como as bombas que desejam ardentemente derramar-se sobre o Iraque. Para cada um e para ninguém.

A indústria da pornografia me excita e me frustra. Desconfio que não possa haver liberdade individual onde não existe paz pública. A indústria da pornografia é a outra face da indústria da guerra. E eu fico sem ter por onde fugir. Todos morreremos em Bagdá."