Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Agora a mídia não precisou inventar um grande homem

Foi necessário que um ato terrorista em Bagdá matasse o Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, Sérgio Vieira de Mello, para que incontáveis milhões de brasileiros ou tomassem conhecimento do seu nome ou fossem apresentados à trajetória e aos atributos dessa admirável figura.

Foi também uma raríssima ocasião em que a mídia não precisou exagerar as qualidades nem esconder os defeitos do morto, nesse país em que, como os militares promovidos a um degrau acima do que se encontravam, ao se aposentar, os falecidos ilustres ? cadaveri eccelenti, dizem os italianos ? são mostrados de modo a subir no conceito dos vivos.

O que se leu, viu e ouviu agora há pouco sobre o finado dono do império Globo, Roberto Marinho, é um parâmetro que se não existisse deveria ser inventado para a forma como são alçados os mortos poderosos por uma imprensa que não faz idéia do que signifique o substantivo iconoclastia e, nessas horas, costuma manter uma prudente distância de certos fatos chamados públicos e notórios.

É claro que os notáveis de que a imprensa tem por obrigação se ocupar não a deixam só, alimentando-a com as suas reações invertebradas à notícia do falecimento do figurão. No caso de Roberto Marinho, não se pode esquecer, o exemplo veio de cima.

A biografia do presidente Lula foi a primeira vítima do que ele disse e fez em relação àquele que provavelmente o impediu de se eleger em 1989, com a histórica edição facciosa do seu debate com Fernando Collor exibida no Jornal Nacional às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais daquele ano.

Por tudo isso, impossível subestimar o contraste com o que se leu, viu e ouviu nos últimos dias sobre Sérgio Vieira de Mello. O noticiário e as manifestações dos poderosos a seu respeito estiveram à altura da verdade. (Nisso incluído a oportuna sugestão de Fernando Henrique Cardoso, em telegrama a Lula, de que o governo brasileiro patrocine a candidatura póstuma de Vieira de Mello a Prêmio Nobel da Paz.)

E o melhor, diante dessa tragédia, é que ao se referir a ele e ao orgulho nacional pelas realizações desse Pelé da Seleção do Bem ninguém precisou dar o vexame da patriotada. O que escreveram ou disseram jornalistas, autoridades e colegas de trabalho estrangeiros não foi superado por nada dito ou escrito aqui.

E não faltou quem, no exterior, ligasse as atraentes características de personalidade de Vieira de Mello que tanto o ajudaram em suas missões, do Kosovo a Timor Leste, ao fato de ele ter nascido no Brasil ? ou melhor, no Rio.

“Diplomata”?

Nos dias seguintes à sua morte, O Estado de S.Paulo, por exemplo, transcreveu um editorial do New York Times que chama Vieira de Mello de “construtor de nações”; um artigo do jornalista Jonathan Steele, do Guardian, que endossa uma definição que ele ouviu sobre o brasileiro como “o melhor servidor público do mundo”; e um artigo, saído no Washington Post, de Richard Hollbrooke, embaixador dos Estados Unidos junto à ONU no governo Clinton, comentando a lucidez de Vieira de Mello sobre a “aventura desastrosa” de Bush no Iraque, como o próprio Estadão classificou em editorial.

Este leitor só não entende uma coisa: por que todo mundo aqui deu de dar a Sérgio Vieira de Mello uma profissão que jamais teve?

“Diplomata” esse exemplar funcionário das Nações Unidas nunca foi. Diplomata é o servidor de carreira típica de Estado, do ministério, secretaria, departamento ou que nome tenha a agência que cuida dos interesses do país com outros países ou o representa em organizações multilaterais.

Diplomatas na ONU são os integrantes das missões permanentes dos países membros junto ao organismo. E diplomata foi o pai de Vieira de Mello, cassado pelo AI-5. Por isso, o filho não quis nada com o Itamaraty. Ao morrer, ele era representante especial da ONU no Iraque.