Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Ainda a questão do jornalista/garoto-propaganda

Ceci Maria A. Honório

 

Pegando carona na comemoração dos 500 anos “dourados” do Descobrimento, a mídia tem aberto um espaço maior aos povos indígenas. Mas que espaço é este? Em um exemplar da Folha de S.Paulo deste mês [julho], localizo logo a notícia da invasão: “Índios invadem os programas infantis”.

Acho que entre descobrir, comemorar e invadir há diferenças.

Consultei, então, alguns verbetes do nosso velho Aurélio para entender melhor essas diferenças (ou não) semânticas. Destaquei alguns sentidos:

Invadir: entrar à força ou hostilmente em, ocupar à força, conquistar;

Descobrir: tirar a cobertura, véu, aparecer à vista, dar a conhecer;

Comemorar: trazer à memória, fazer recordar, lembrar, festejar.

Bem, voltemos à notícia. Informa a Folha que a invasão se dá por ocasião da comemoração do programa Disney Clube nº 500, do SBT.

Ora, parece que é isso mesmo: este é o ano de se comemorar invasões! Afinal, não foi isso o que aconteceu há 500 anos? O Brasil não foi invadido? Vamos então comemorar?

Conta a história oficial que os portugueses descobriram o Brasil. E, agora, os índios invadem a TV. E quem comemora? O que se comemora?

Os povos indígenas têm já afirmado sua posição quanto a este fato: não têm motivos para comemorar. Então, nos perguntamos: será que a mídia tem contribuído para que a população brasileira compreenda a indignação e a luta destes povos?

É fato que a mídia em geral tem tematizado com mais freqüência a questão indígena. Muitas informações e muitas imagens. Muitas linguagens… Será que agora “todo dia é dia de índio”? Na imprensa, o índio romantizado e folclórico continua alvo de repórteres fotográficos. Congelando imagens do tipo “retrato”, regadas a pena, luz e cores, estes profissionais têm contribuído, de certa forma, para a cristalização e perpetuação da imagem do “índio” genérico. Antigas fantasias (européias) do Brasil que se espalham no olhar dos brasileiros.

Sem falar nos outros “caras-pálidas” que se fantasiam de índio e teatralizam a “suposta” vida indígena. É o que aconteceu no programa do SBT, em que os apresentadores fantasiaram-se de índio para comemorar os 500 anos. Enquanto isso, a revista Nova Escola (nº 499) sugeria, também em comemoração ao Descobrimento: “Atividades para os caras-pálidas”.

Resultado: os índios, um pouco distantes dessas “fantasias”, precisam agora também se fantasiar de índio, para que possam ser nomeados como tal e garantam sua existência.

Brasil, acho que tá na hora de mostrar sua outra cara. Onde estão aqueles que continuam resistindo a invasões materiais e simbólicas? Onde está o Brasil real, além (ou aquém) do paraíso?

A manchete da Veja de 30/6/99 “Xingu – a vida dos índios que preservam um paraíso ecológico do tamanho da Bélgica” parece saber sobre este paraíso. A comparação entre Xingu e Bélgica, apresentada na manchete, sugere, pelo menos, duas interpretações: o Xingu é do tamanho da Bélgica (equivalência geográfica), o paraíso do Xingu é do tamanho do paraíso da Bélgica (equivalência cultural). Este duplo movimento geográfico-cultural, ao projetar o Xingu para fora dele mesmo e do próprio Brasil, produz, de uma certa forma, o apagamento da história da constituição destas civilizações que, além de distintas, são contraditórias. Apaga, ao mesmo tempo, a história do Brasil indígena.

O sentido de preservação, tal como se apresenta na manchete, trabalha, ainda, o paradigma da imobilidade: paraíso preservado, índio preservado. Não há movimento, não há história. Tudo no seu lugar, como num quadro paradisíaco. Tudo permanece igual, como em sua origem.

Perguntamos então: é possível pensar um lugar e sujeitos sem história? A ação dos exploradores (madeireiros, mineiros, missionários etc.) não têm afetado e mudado a vida destes índios? Por quanto tempo poderão estes povos proteger e se proteger em seu “paraíso”?

Obviamente que um leitor mais precavido contra a perfídia das manchetes seguirá adiante na notícia, procurando obter mais informações, mais fatos que possam lhe dar um panorama, se não crítico, pelo menos mais amplo da situação. Mas, o leitor absorvido pela era da velocidade, pela modernidade e o avanço tecnológico, não buscará muito mais do que manchetes, fotos, gráficos, mapas e tabelas. Bastam esses flashes. Bastam imagens e imagens. Está pronta a leitura. E a manchete, em vez de induzir à leitura, conduz a imagens que bastam por si sós.

A mídia, como farejadora do mercado, tem apresentado, muitas vezes, notícias que, em vez de produzir conhecimento, produzem desconhecimento daquilo que é o Brasil, e de quais são as atuais condições de existência dos povos indígenas brasileiros.

Discutir estas manchetes e imagens, aqui neste espaço, tem para mim não o objetivo de criticar o valor documental ou estético destes textos, mas o de explicitar seus efeitos na produção de um imaginário do Brasil e no Brasil, efeitos esses que podem gerar um certo imobilismo social, mecanismo eficaz de exclusão.

Deste ponto de vista, considero importante problematizar estas imagens (verbais e não-verbais), pelo confronto entre o que foi e o que é ser índio no Brasil hoje. O que representa esta memória histórica no presente? Estaria ela ainda funcionando para produzir a imobilidade social, conservando, pacificamente, as minorias no lugar do excluído?

Acredito que a educação indígena, representada principalmente pelo movimento dos professores indígenas e pelas organizações indígenas, procurando entender a educação como política, pode ter um papel fundamental nesta história. Reivindicar um espaço real na mídia, que não se constitua somente pela factualidade da notícia, mas pelo trabalho contínuo de atualização e historicização deste processo, é um dos caminhos.

A mídia, dentro das aldeias e de suas escolas, se por um lado pode ser vista como caminho para a aculturação, por outro pode ser também entendida como um lugar de reivindicação, de problematização, de crítica. Lugar de transformação. Um material exposto a muitas (re)leituras. Uma forma de se entender como se interpreta o índio e como essa interpretação chega ao resto do Brasil.

Procurando contribuir com a autonomia dos povos e das escolas indígenas, em processo de construção, o objetivo deste texto é muito mais refletir sobre o papel da mídia na democratização do conhecimento sobre e para os povos indígenas, com a participação destes povos, do que fornecer ou defender modelos ou métodos de educação através da mídia. Acredito que a autonomia (relativa) só é conseguida por uma política indígena. Política que implica ética. Implica um gesto de responsabilidade de todos aqueles comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa.

Acho então que devemos seguir caminho nesta trajetória dos 500 anos na “mídia”, se queremos ver e entender aonde e como vamos chegar… Haverá ainda terra (à vista)?…

 

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