Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Alberto Dines

BANGU 1, TRÁFICO EM GUERRA

"?Beira-Mar? e al-Qaida", copyright Jornal do Brasil, 14/09/02

"Osama bin Laden e Fernando Beira-Mar não se conhecem nem se consideram iguais. Mas o primeiro aniversário da barbaridade do 11-S coincidiu com o mais audacioso golpe do narcotráfico no Rio de Janeiro. A justaposição dos noticiários na quinta-feira criou uma imantação natural, evidente, difícil de negar: banditismos se atraem, facínoras se completam.

Terrorismo é o crime organizado por outros meios. Narcotráfico é a subversão do Estado com outro nome. Prosperam nas mesmas condições: complacência das elites, mistificação das massas e inoperância do poder público. Compartilham o mesmo projeto: espalhar o medo e, através dele, tomar o poder.

A diversidade operacional não diminui a identidade nuclear, ao contrário, só a reforça: o islamoterrorismo quer substituir-se à civilização ocidental e o narcoterrorismo quer solapar o regime político por ela criado.

Projetos de poder taticamente diferenciados porém irmanados nos objetivos, unidos na estratégia: o uso do terror, disseminação do rancor, propagação do pânico, anestesia do ânimo, dominação das vontades. Precisam da democracia para confundir os democratas. Não poderiam resistir na Alemanha nazista, na Itália fascista e na Rússia estalinista.

Servem-se do Estado de Direito para implodí-lo. Seqüestram justificativas pseudo-humanitárias para estraçalhar vidas humanas. Usam o pretexto social para agravar a exclusão. Não podem usufruir nem distribuir os ganhos mas precisam de grandes quantidades de dinheiro para agravar a marginalidade, multiplicar a miséria, ganhar escala – para aliciar os fracos, subornar consciências e comprar cumplicidades.

Socorrem-se com a camuflagem política: o Comando Vermelho desde a origem e não apenas através do nome, procurou um disfarce ideológico para converter malfeitores em heróis. À época, a recente luta contra a ditadura militar facilitava confusões entre fins e meios, pegar em armas conservava algum charme. Al-Qaida e Talibã, criaturas da política externa americana, adotaram um discurso contra seus criadores para atrair uma esquerda recém- saída do fracassado ?socialismo real? e, através de um idealismo surrado, legitimar-se como alternativa.

Religião e irreligião baralham-se nesses dois cultos da morte. Uma leitura perversa do Alcorão coloca Osama bin Laden no extremo oposto dos sábios maometanos da Idade Média que reviveram Aristóteles e Platão. O narcotráfico pretende respeitar igrejas e templos, poupa sacerdotes. Generoso nas esmolas para sustentar cultos é intrinsecamente pagão.

Se todas as religiões procuram Deus, os credos de Osama e Beira-Mar vão na direção contrária: adorações a Satã, preitos ao diabo. Querem uma Solução Final para todas as forças espirituais capazes de melhorar a humanidade. Necessitam de inocentes, grandes quantidades de inocentes – para liquidá-los em massa e perturbar os sobreviventes. Gostam de fotografias e exibir sorrisos, um para fingir serenidade, outro para mascarar a bestialidade. Com esse marketing conquistam os incautos e emasculam convicções. Osama conspurcou o conceito de santidade e Beira Mar, o da compaixão.

Só poderão ser neutralizados e eliminados quando a mistificação política e o eleitoralismo rasteiro forem substituídos pela noção de que o bem-estar e o bem comum não podem ser violados pela ambição de conquistar o poder, nem infamados pelo cinismo dos demagogos.

A unanimidade que derrotou o nazi-fascismo em 1945 não era burra, ao contrário, profundamente sábia. Reuniu opostos, aplainou divergências, adotou o princípio da soma. Osama e Beira-Mar, 57 anos depois, comprovam que esta é a hora de guardar o discurso partidário oportunista e retomar o grande discurso político. A alternativa será o caos."

 

"A maior herança populista", copyright Jornal do Brasil, 17/09/02

"A tomada do poder pela bandidagem mostra também, com cristalina limpidez, os efeitos de uma ação política criminosamente populista levada a efeito durante anos no Rio de Janeiro.

Sobre esta, pouco se falou. A imprensa se concentra, corajosamente às vezes, nos efeitos, mas hesita em se envolver com suas causas. E, no entanto, Fernandinhos Beira-Mar, Elias Malucos, Marcinhos VPs não surgem da noite para o dia. São fruto de lenta e meticulosa criação, cozinhada em fogo brando durante muito tempo, com a disponibilidade de tempo de que só os grandes artistas podem dispor.

Não são produto de uma simples determinação conspiratória de fabricar bandidos, mas de uma ação predatória para gerar votos. Se os efeitos desse procedimento foram mal calculados, isso não elimina o dolo, não isenta de culpa os que se esmeraram em investir na ingenuidade do eleitor. Governar é olhar para o futuro e medir a conseqüência dos atos.

Bolsões de pobreza são as incubadoras do crime organizado. Há mais de 30 anos, a eliminação desses bolsões em áreas como o Morro do Cantagalo, o Morro do Pasmado e a Praia do Pinto evitou a deterioração precoce de uma larga extensão da cidade, entre Botafogo e a Lagoa, que hoje sequer existiria. Nos anos subseqüentes, caçadores de votos populares se deram conta de que, na contabilidade eleitoral, estimular a disseminação da pobreza é muito mais útil do que controlá-la. Favelas deixaram de ser problema para se tornar solução.

A ascensão do poder do crime organizado sobre elas não foi repentina, mas lentamente estimulada para criar lideranças fortes, que pudessem servir a finalidades eleitoreiras.

As lideranças, sem dúvida, foram criadas. Para a população do Rio, hoje, são a herança mais palpável que os governantes populistas lhe deixaram. O que esses políticos não lhe disseram é que bandidos são fruto das desigualdades sociais, mas não necessariamente na condição de vítimas.

Bastou uma geração para que o perfil da criminalidade migrasse do bicheiro transgressor, dos Boca de Ouro romantizados por autores como Nelson Rodrigues, para traficantes que esquartejam jornalistas, intimidam a cidade inteira e debocham às gargalhadas das instituições.

Temos de admitir ao menos que é um deboche amparado pela razão. Presenciar uma entrevista coletiva dos responsáveis pelo governo e pela segurança do Rio é semelhante em tudo a ver um antigo filme de Mel Brooks.

Os clichês, as frases vazias, as expressões de perplexidade vão mais longe, remetem às comédias que há 100 anos Max Linder (o comediante em quem Chaplin se inspirou) já fazia. Se rimos deste, por que a bandidagem não pode gargalhar daquele?

A herança política do Rio, na verdade, se diversificou. Abriga-se hoje tanto no poder institucional como no paralelo. É conseqüência da mesma estratégia de governar e representa duas faces da mesma moeda.

Uma face, organizada, tornou-se aterrorizante. Outra, sem o menor poder de organiza&ccedilccedil;ão, tornou-se simplesmente patética."

 

"Pablo Escobar começou assim", copyright Jornal do Brasil, 16/09/02

"Em 1989, a Sociedade Interamericana de Imprensa reuniu-se em Monterrey, no México. Como faz habitualmente, reservou uma das sessões para que os representantes dos vários países relatassem eventuais agressões sofridas pela liberdade de expressão. Dias antes do encontro, mais uma explosão patrocinada por narcotraficantes mandara para os ares um bom pedaço da sede do jornal El Espectador, de Bogotá.

Tratava-se de outra sangrenta mensagem do Cartel de Medellín, que compunha com o de Cáli a dobradinha dos principais grupos criminosos da Colômbia. Os bandidos se mostravam cada vez mais irritados com a teimosia do jornal em publicar reportagens sobre o submundo da droga.

Haviam começado a seqüência de represálias com a execução de jornalistas pouco notórios. O passo seguinte foi o assassinato de profissionais conhecidos. Em 1989, já haviam liqüidado diretores de publicações importantes, entre os quais o dono do tradicional diário de Medellín.

O irmão que lhe herdara o cargo, Luiz Cano, foi o relator da situação da imprensa em seu país. Concluída a perturbadora exposição, um repórter brasileiro propôs a publicação simultânea, nos quase 2.000 jornais filiados à SIP, de um mesmo editorial que examinasse com a necessária dureza a questão dos narcotraficantes assassinos.

A idéia foi aprovada por todas as delegações, com exceção da colombiana. Coube a Luiz Cano explicar o paradoxo aparente: ?Estamos com muito medo?, afirmou corajosamente. ?Já morreram jornalistas demais, nós nos sentimos inteiramente desprotegidos.? Os colombianos afinal concordaram com a publicação do texto. Desde que assinado pelo autor.

El Espectador tentava sobreviver num país atormentado pelo poder paralelo dos criminosos. Um deles era Pablo Escobar, o megatraficante que controlava o Cartel de Medellín. Ele teve um começo de carreira semelhante ao prólogo da saga de Fernandinho Beira-Mar. Bancava pai dos pobres com a gente dos subúrbios, enchia os bolsos de policiais que ganhavam salários insatisfatórios, garantia a tranqüilidade de paragens habitadas por miseráveis assolados por delinqüentes do baixo clero. Enquanto isso, construía um colosso do crime organizado.

Os alicerces do cartel montado em Medellín, assim como em Cáli, foram forjados com pilhas de cadáveres. Escobar primeiro eliminou bandos rivais. Depois, fuzilou comparsas nos quais não confiava. Encerrada a primeira fase da ofensiva brutal, assumiu o posto de governador oficioso da região.

Ao sentir-se pronto para a guerra, decidiu abrir frentes de batalha em terrenos até então considerados intocáveis. Determinou a execução de policiais, promotores, juízes, políticos. E de jornalistas. A imprensa não soube avaliar a tempo as dimensões que o tumor medonho haveria de alcançar.

Porque não percebeu o tamanho do perigo, não reagiu em bloco, não combateu em conjunto, não clamou por socorro. O contra-ataque enfim se desencadeou, e hoje Pablo Escobar é só um nome na sepultura bem menos vistosa que a vida que levou. Mas o preço da imprevidência foi alto. Muitos jornalistas renunciaram ao ofício, mortos de medo. Outros morreram de morte matada.

Lembremo-nos de Pablo Escobar no momento em que, enquanto choramos Tim Lopes, um de seus assassinos, Ratinho, sorri no pátio de Bangu 1 ao lado dos parceiros do Comando Vermelho. Ainda buscamos o corpo de Tim. Ratinho exibe a barriga obscena ao lado do chefe Fernandinho Beira-Mar.

O secretário de Justiça, Paulo Saboya, acha que a situação melhorou. ?Eles estão se matando dentro da cadeia?, consola-se o secretário. ?É outra prova de que os bandidos foram presos.? Sempre de olhos abertos, a inspetora Marina Maggessi, que entende do assunto, adverte: ?Mesmo as facções criminosas aparentemente enfraquecidas pelos conflitos nos presídios continuam fortes nas ruas, e em ação.?

Os vitoriosos no morticínio em Bangu, naturalmente, esbanjam musculatura. Saboya talvez não saiba que Elias Maluco, autor da ordem para a execução de Tim Lopes, segue à solta. Ele pertence ao Comando Vermelho, organização liderada por Fernandinho Beira-Mar. Não tem faltado celulares para que chefe e chefiados troquem idéias, montem planos e resolvam quem vai morrer. Elias Maluco estará sempre às ordens.

O secretário Saboya parecia feliz com o desfecho do 11 de setembro decretado pela bandidagem. Houve quatro mortes, certo (com um corpo carbonizado). Ficou claro que os agentes penitenciários haviam presenteado Fernandinho com as chaves necessárias ao passeio exterminador. Não se consumou a invasão determinada pela governadora Benedita da Silva. Os presos é que escolheram o instante adequado para encerrar o motim. Mas houve contrapartidas notáveis.

O governo pediu, por exemplo, que os assassinos arriassem a bandeira do Comando Vermelho, hasteada na fachada do pavilhão. E foi atendido."