Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Alberto Dines

LULA PRESIDENTE

“A re-fundação tucana”, copyright Jornal do Brasil, 2/11/02

“Quem perdeu as eleições – Serra, o governo ou o PSDB? Desprovido do que se convencionou chamar de charme, dono de uma cara só e irremovível (encimada por uma careca, enfeitada por olheiras e o jeito turrão), o candidato José Serra foi chamado de ?desagregador?, ?ambicioso?, ?implacável?.

O coro de epítetos foi entoado por antagonistas, por correligionários despeitados e, obviamente, pelo inimigo histórico, o senador renunciante-agora-eleito ACM, que já havia escolhido José Serra como alvo preferencial desde o momento em que foi sugerido para a pasta da Saúde. Que a numismata Roseana Sarney o tenha escolhido como culpado pela exposição da sua magnífica coleção de notas de 50 reais, compreende-se. Mulher e marido pegos em flagrante de infidelidade inventam os mais disparatados pretextos.

Derrotado foi o governo, o governo do PSDB. Não pelo que fez ou deixou de fazer, mas pela incapacidade de mostrar o que fez e pela insensibilidade em reconhecer o que não tinha condições de fazer. A monumental gafe de insinuar que os aposentados são como vagabundos equivale à do brigadeiro Eduardo Gomes, em 1945, designando seus opositores de ?marmiteiros?. Reivindicações devem ser ouvidas e, quando não atendidas, recusadas com ponderações.

A função do Grande Narrador, re-assumida recentemente pelo presidente da República, descortinou um quadro de avanços – objetivos e subjetivos – que se evaporaram à medida que se acirrava a campanha eleitoral. Churchill prometeu ?sangue, suor e lágrimas? e ninguém se recusou a oferecê-los. A tal recuperação da auto-estima, magistralmente utilizada como bordão pelos estrategistas de Lula, só funcionou porque aos recusados foi negado o privilégio de serem persuadidos. Deram o troco.

Derrota gigantesca, indisfarçável e intransferível foi essa sofrida pelo PSDB. A idiotice numerológica de afirmar que o partido cresceu nos Estados apesar da derrota fragorosa no plano federal é tão absurda quanto a outra de garantir que Lula é maior do que o PT. Lula é a expressão do PT, o resto é impostura científica.

O PSDB conquistou o poder apenas cinco anos depois de criado. Antes de consolidar um projeto político nacional, converteu-se em projeto de poder, essa a sua desgraça. O PT chega ao Planalto sazonado por duas décadas de derrotas e vitórias, e com esse valioso acervo de lutas construiu o triunfo popular do domingo passado.

Quando o falecido Sérgio Motta afirmou, em 1994, que começavam 20 anos de domínio do PSDB, pensava certo, mas o manifestava erradamente. Como sempre. O primeiro mandato de FHC deveria servir para formar quadros, atrair novos segmentos da sociedade e estender a malha partidária. Serviu apenas para consolidar a parceria com o PFL que Ruth Cardoso teve a sabedoria de colocar sob suspeita.

A funesta idéia da reeleição resultou de uma leitura truncada do projeto de Motta. A re-eleição foi uma nódoa num currículo partidário impecável e, o pior, atalhou o florescimento de novas lideranças. Inclusive a de Mário Covas. Foi incentivada matreiramente pelo PFL porque a este interessava o inescapável desgaste do PSDB, mesmo com um segundo mandato garantido. O eterno erro das esquerdas é imaginar que a dialética é sua exclusiva propriedade – a direita sabe usá-la com a mesma expertise. Veja-se a lulização de Delfim Neto, Maluf, ACM e Sarney.

O projeto de poder irradiou-se para as esferas inferiores e o PSDB converteu-se num conjunto feudal de capitanias hereditárias interessadas apenas na sobrevivência e eliminação de rivais. Exemplos marcantes mas não únicos foram as manobras do clã Marcelo Alencar barrando no Rio o ingresso de Cesar Maia & equipe e, no Paraná, dos irmãos Dias, impedindo a entrada do grupo de técnicos liderados por Jaime Lerner. A famosa punhalada de Tasso Jereissati não se distingue desse tacanho coronelismo, a diferença é o tamanho da peixeira.

Soma-se a isso, o troca-troca palaciano convertendo cada tucano demissionário num amargurado antitucano que uma agremiação inapetente não conseguia mobilizar para outras tarefas. Projeto de poder sem projeto político dá nisso.

O presidente da República ficou só ou quase só, chupando cana e assoviando, às vezes obrigado também a testar sozinho a garapa fermentada no tacho. Quase perdeu um dos seus melhores quadros, o senador Artur da Távola, que chegou a licenciar-se porque naquele aglomerado de ambições pessoais não havia lugar para uma revitalização programática.

Empenhado mais em manter alianças inviáveis, o governo chegou à disputa eleitoral com parcerias esfarrapadas e suas próprias energias em nível mínimo. Enquanto o PT gabava-se de ser a vanguarda da sociedade organizada, o PSDB esquecia o grande impulso ao terceiro setor, através da Comunidade Solidária, que mereceu o reconhecimento da ONU. Esse seria um projeto político que, devidamente valorizado, poderia galvanizar o desejo geral de participação, afinal capitalizado no pacto social proposto pelo PT.

A vitória de Aécio Neves, apesar da aparência de jovem guarda, é projeto de poder. O sucesso de Geraldo Alckmim, com o carisma do anticarisma, resulta, essencialmente, de um projeto político. Não se excluem mas precisam ser explicitados.

A discussão semântica que ora absorve a cúpula do PSDB em torno do conceito de oposição é chocha, deletéria. O que o PSDB precisa, antes de transformar-se num novo PMDB, é de um grupo de tucanos radicais. Os mesmos radicais que no PT, embora minoritários, dão-lhe consistência e impedem que as adesões o desfigurem.

Faltam tucanos xiitas.”

“De novo no centro da História”, copyright Época, 4/11/02

“Desde 27 de outubro que Luiz Inácio Lula da Silva se encontra no centro da vida pública brasileira. De certa maneira, não é a primeira vez que isso acontece.

Em 1978, quando o país vivia sob o regime militar, Lula liderou as greves que definiram um caráter popular ao processo de democratização. Foi preciso aguardar 24 anos – espaço de uma geração – para avaliar a profundidade daquele movimento que só na aparência se limitava a pedir melhores salários. A maioria dos eleitores de 2002 nem sequer freqüentava a escola quando Lula era um líder metalúrgico, mas seria errado ignorar as conexões entre os dois momentos.

Inaugurada por militares descontentes em função de questões mesquinhas, nossa República nasceu elitista, sofreu uma boa reforma em 1930 e uma nova mudança na Constituição de 1988. Na semana passada a democracia ampliou-se para os humildes e, salvo acidentes gravíssimos, hoje impensáveis, trata-se de um avanço sem volta.

Com a vitória de Lula os brasileiros enviaram um homem do povo para o palácio presidencial. Deixando de lado, por um momento, as idéias do presidente eleito e mesmo erros e acertos de seu futuro governo, consumou-se uma mudança de porte. Embora hoje em dia Lula só costume freqüentar fábricas para pedir votos e visite o interior de Pernambuco onde nasceu para gravar imagens de campanha, nenhum outro político se mostrou mais apto para aproximar o povo das instituições políticas, que até agora eram monopólio de bacharéis de paletó e gravata, tecnocratas criados em bibliotecas de ar refrigerado e empresários de olho no espaço público.

Apenas pelo elogio da ignorância se poderia considerar a falta de cultura formal e organizada como um trunfo na biografia do presidente eleito. A pouca intimidade com a rotina administrativa e os assuntos de governo também não representa vantagem. Mas a origem popular &eacueacute; um trunfo único, insubstituível e inseparável do ambiente de esperança e otimismo que – sem nenhuma razão objetiva além da própria eleição – fez aparição nas ruas do país nos últimos dias.

Em 2002 os brasileiros fizeram sua parte. Promoveram eleições que aposentaram políticos que há muito deveriam ter deixado a vida pública. Escolheram um presidente que encarna uma legenda que cultiva um padrão ético superior à média dos adversários. Mesmo quem não votou em Lula reconhece que é difícil só achar defeitos graves em sua campanha ou nas administrações petistas. Comparando com os demais concorrentes, é até absurdo dar nota muito baixa ao candidato do PT. Tampouco há um motivo racional para apontar o desastre como único desfecho possível para seu governo, ainda que o presente do país já seja habitado por dificuldades imensas.

O presidente eleito repetiu na semana passada que está vivendo um sonho. Boa parte dos brasileiros tem a mesma sensação e isso é muito bom, porque se trata de um sonho popular, de redenção, generosidade e autoconfiança. Ao definir a fome como prioridade de seu governo, Lula deixou claro não só que respeita o voto de quem o elegeu mas que sabe onde estão os eleitores que podem defendê-lo nas horas difíceis. Não serão aqueles que resolveram manifestar apoio quando suas intenções de voto batiam nos 50%.

Mas a inevitável e breve passagem do sonho para a realidade implica reconhecer um dado essencial. Num país como o Brasil não há avanço social possível fora do crescimento econômico, da atração de investimentos, da criação de um ambiente de confiança para novos negócios. Fora disso, o que se terá são paliativos, tão criticados até aqui pelo PT, às vezes injustamente. Lula teria insultado a própria biografia se tivesse iniciado seu governo sem falar dos humildes. Mas ao conduzir o povo para tão perto do poder Luiz Inácio Lula da Silva ligou seu destino ao que fizer com a economia. Ali está seu novo lugar na História e é ali que estarão os verdadeiros desafios de seu governo.”

“Ou escancaram-se as negociações, ou vem aí o Propress”, copyright Folha de S. Paulo, 3/11/02

“Diz o doutor José Dirceu que as dívidas que as empresas de mídia carregam nas costas devem ser tratadas ?como assunto de interesse nacional?. Mais claro: ?Temos de tratar isso como assunto de Estado?.

Até as pedras sabem que quase todas as grandes empresas de mídia brasileiras vão mal das contas. Na semana passada, a Globopar, holding com participações da Net Serviços (a falecida Globocabo) e da editora Globo de livros e revistas, bem como de outras empresas, suspendeu o pagamento de suas dívidas por 90 dias. Coisa de US$ 1,5 bilhão no total e de US$ 100 milhões em vencimentos. A Globopar pertence à família Marinho, dona do jornal ?O Globo? e da TV Globo que, por sua vez, não são controlados pela Globopar e vão bem, obrigado.

Algumas empresas vão pior que outras, e todas as que passam por um inverno financeiro deram-se mal porque endividaram-se em dólares. Quando o dólar estava a R$ 1,20, a banca, o tucanato e boa parte da imprensa defendiam o realismo e a necessidade dessa cotação. Muitos diretores dessas empresas acreditaram no noticiário que publicavam.

Empresas de mídia em dificuldades financeiras podem até ser um problema de interesse nacional. Tudo depende do que se considera ?interesse nacional? e da extensão que se dá à sua sombra protetora. Nos anos 60, incomodados com a concorrência, os Diários Associados brandiam o fantasma do interesse nacional para cercear duas empresas que surgiam no mercado: a TV Globo e a Editora Abril.

Quando o governo interfere nas relações do mercado com as empresas de mídia, a choldra paga contas amargas. Se um grupo de açougueiros panamenhos tivesse comprado os Diários Associados, os brasileiros teriam se livrado de pagar suas contas por quase 20 anos. Se os alfaiates búlgaros tivessem comprado a Manchete, o Banco do Brasil poderia ter emprestado milhões ao plantio de pepinos, com resultados muito superiores aos que conseguiu dando créditos à empresa jornalística.

Por mais compreensível que seja a preocupação do governo petista com a fome de créditos, quando se abre uma fresta na porta, não há burra capaz de atender donos de empresas jornalísticas. Um teve, o outro pede e o terceiro também quer. Quem vê o seu pedido negado denuncia a lisura do pleito atendido.

O estabelecimento de uma afinidade financeira entre o governo e empresas de mídia soprará uma fogueira de maledicências e insinuações. É fácil ouvir algumas:

1) O PT está comprando a mídia. De uma hora para outra, Lula virou um ursinho de pelúcia;

2) A mídia não noticia as suas dificuldades. Falam mal de todo mundo, menos deles;

3) A mídia não noticia as suas facilidades. Estão armando um ProPress.

Se há empresas jornalísticas dispostas a recorrer lisa e legitimamente a financiamentos públicos e se o governo quer tratar essa matéria como ?assunto de Estado? à luz do ?interesse nacional?, isso deve ser feito de forma assumida, escancarada. Se o contribuinte ficar em dúvida a respeito de uma vírgula, pensará que estão malbaratando seu dinheiro. Se um leitor deixar de entender um único parágrafo do que lhe contam, achará que o estão enganando.

Sente-se no ar o cheiro da transformação (já ocorrida) do BNDES num grande hospital. Nada melhor para justificar charlatanismos financeiros vindouros do que internar naquela velha e boa casa alguns logotipos da imprensa.

Governantes adoram emprestar o dinheiro do contribuinte para jornais, revistas ou emissoras que falem bem deles ou, pelo menos, mal não falem. Quem paga a conta é o público, quase sempre duas vezes.”