Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Alberto Dines

ACM SOB SUSPEITA

“Jabuticabas no Senado”, copyright Jornal do Brasil, 15/02/03

“O presidente Lula continua acertando em matéria de comunicação. Em 1978-79, quando começou a fulminante carreira política, as platéias deliravam quando encerrava suas orações com a estrofe patriótica ?Liberdade, abre as asas sobre nós!? Quinta-feira, antes do discurso formal na inauguração do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, deixou as metáforas futebolísticas que usou com excepcional senso de oportunidade e enveredou na trilha de Esopo e La Fontaine.

A fábula doméstica sobre o pé de jabuticaba autêntica, com toda certeza, tem todos os ingredientes para tornar-se referência não apenas no imaginário mas na retórica. A moral da história é irrespondível, seja sob o ponto de vista existencial como científico: a descuidada jabuticabeira do sítio levou 15 anos para dar frutos, mas a outra, trazida pela primeira-dama e bem tratada no vaso de apartamento, floresce quatro ou cinco vezes por ano. E não é papo de pescador.

O Senado, símbolo maior da República Representativa, está precisando urgentemente de uma intervenção jabuticabal tão firme e ousada quanto a de Dona Marisa. A Câmara Alta está entregue ao deus-dará com a presença dos coronéis Sarney na presidência e ACM na sua mais importante comissão, a de Constituição e Justiça, no exato momento em que o país inteiro clama por mudanças e a ONU afirma que o clientelismo é a fábrica da fome.

ACM está sendo acusado de participação na mais formidável operação de escuta telefônica desde o fim da ditadura. A mãe de todos os grampos envolve 446 telefones, a maioria constituída de inimigos de ACM tanto no âmbito político como no pessoal. A secretária de Segurança Pública da Bahia, Kátia Alves, que pediu o grampo, é protegida de ACM. Uma solicitação dessas proporções foi encaminhada à juíza da distante e pequena Itapetinga, a 561 quilômetros de Salvador, com a absurda justificativa de ser necessária para desbaratar uma quadrilha local de seqüestradores. Quem conhece como funciona o aparelho judiciário nos currais eleitorais do Brasil Profundo pode adivinhar que o pedido não chegou lá por acaso. A transcrição de algumas fitas, com anotações do próprio ACM, foi entregue a publicações que costumam divulgar suas patacoadas.

O Senado corre o risco de ser desmoralizado 15 dias depois de instalada a nova legislatura. O governo o controla de cabo a rabo. Se não quer uma CPI, porque esse instrumento de investigação foi avacalhado em passado recente pelas exibições histriônicas de senadores, que tome outras providências. Tão transparentes, enérgicas e eficazes.

A Comissão de Constituição e Justiça não pode ser presidida por um parlamentar que está sob suspeita e não apenas da imprensa independente mas de figuras proeminentes do governo, como o chefe da Controladoria-Geral da União: ?Há todas as evidências, todos os indícios. É preciso aprofundar a investigação?, declarou Waldir Pires, que entende de ACM.

O senador ACM é reincidente. O grampo que armou há dois anos, em parceria com um procurador do Ministério Público Federal e um jornalista, terminou na renúncia ao mandato para evitar a cassação por atentado ao decoro parlamentar e violação do painel eletrônico do Senado.

A tão aguardada reforma judiciária não pode ficar na mão de um político que, de truculência em truculência, estabeleceu um paradigma de impunidade que envergonha o país e anula os empenhos para alcançar o Estado de Direito.

Se o grupo radical do PT estabeleceu uma trégua com o grupo majoritário para não prejudicar a política econômica do governo, isso não pode alcançar os compromissos morais de um partido que amealhou a imagem de guardião da consciência nacional. Esse é um patrimônio que nem a brava senadora Heloísa Helena nem os moderados Aloísio Mercadante, Tião Viana, Paulo Paim e o inabalável Eduardo Suplicy podem desperdiçar pela omissão.

E não apenas eles. O Senado é um casa com brios, não pode manter-se prisioneiro dos xavecos de oligarcas que, como a árvore do quintal do presidente Lula, são estéreis, corrompidos, danosos.

O cenáculo onde a República ostenta o que tem de mais nobre está sendo desafiado a sair do fundo do quintal para transformar-se no laboratório onde serão produzidas jabuticabeiras frutíferas – saboroso símbolo dos novos tempos.”

 

“O grampo sem voz”, copyright Folha de S. Paulo, 12/02/03

“O grampo ilegal de políticos baianos tem três aspectos peculiares. A saber: 1) Áudio quase zero – trechos gravados chegaram à mídia já em agosto do ano passado. Pouco ou nada provam. Dos 16 diálogos disponíveis, vários são inúteis conversas entre o deputado Geddel Vieira Lima (PMDB-BA) e jornalistas; 2) Transcrição – o papel aceita tudo. É nas transcrições sem áudio que o grampo pega fogo. O deputado baiano fala sobre liberação de verbas. Há três supostas conversas entre Geddel e o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Não há um só mortal no Congresso que assuma, mesmo de forma reservada, ter ouvido as gravações dessas supostas conversas de Geddel com FHC. Todos conhecem as transcrições dos diálogos já famosos. A conversa mais forte entre o presidente e o deputado baiano é o pedido de liberação de uma verba que já estava prevista, pois fora licitada; 3) Áudio apagado – tal como um inspetor Clouseau do Recôncavo, o araponga baiano que gravou as conversas teria apagado a maioria dos arquivos de som. Tudo era realizado com tecnologia digital diretamente em um computador. Essa seria a razão de não haver mais áudio disponível. Sobraram só 16 diálogos gravados. Se for verdade, fica muito mais difícil investigar. Se for mentira, caberá à Polícia Federal apurar. Palpite: essas gravações nunca mais vão aparecer. É triste, mas o Brasil se especializa em grampos clandestinos. As reações se tornaram previsíveis. Os atingidos querem a punição exemplar do mandante. Alguns poucos -no passado, o PT- pedem a investigação do conteúdo das gravações. Ainda que não existam gravações desta vez, chama a atenção o PT pedir nada ou apenas a punição do mandante. O Brasil mudou.

É eloquente o silêncio do Planalto sobre a lavagem de US$ 30 bilhões em uma agência bancária em Nova York. A explosão pode estar muito próxima.”

“O padrão faz o chefão”, copyright O Estado de S.Paulo / Jornal do Brasil, 18/2/03

“A padronagem é a mesma: abuso de poder seguido de exibição de provas em ambiente restrito supostamente confiável, e a conseqüente confissão na forma de jactância pelo ato cometido.

Vamos abstrair aquela questão antiga de distribuição de concessões de rádio e televisão em troca de votos no Congresso porque, abusiva ou não, a prática era legal naquele transcurso da década dos 80.

Ilegítima, pois, uma vez que se tornou matriz de uma conduta de relações comerciais entre o Executivo e o Legislativo.

À época, comandava o Ministério das Comunicações o mesmo personagem que viria depois a protagonizar pelo menos dois episódios públicos de abuso de poder.

Em mais de uma ocasião, durante o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, Antonio Carlos Magalhães manifestou seu desagrado com a mudança da regra segundo a qual as concessões eram atribuição exclusiva do Poder Executivo e passaram a ser do Legislativo.

Considerava que, não fosse o fim desse instrumento, o governo teria muito menos dificuldades fazer valer seus interesses no Congresso. Com tanta desenvoltura defendia a revogação da norma que uma vez o fez publicamente, em entrevista àagrave; revista Veja.

Sem constrangimentos, como dizia não se constranger em assumir a presidência da Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

Internamente absolvido de quaisquer pecados, tal como quando disse a mais de um jornalista, a mais de um parlamentar, que havia realmente visto a lista de votação da sessão que cassou o mandato do então senador Luiz Estevão e que, nela, constava o nome da senadora Heloísa Helena no grupo dos votantes contrários à cassação. Fez isso à vontade, com a cumplicidade de gente da imprensa e do Parlamento que preferiu acreditar nele, em detrimento de suas vítimas.

Com a reputação da senadora ninguém se preocupou. Afinal, vigorava um tempo ? oxalá em vias de extinção ? em que quem acusava tinha a prerrogativa do crédito como preliminar.

Até o dia em que um procurador da República recorreu também ao instrumento criminoso do grampo e flagrou o incontinente, em pleno exercício da jactância verbal.

O episódio deveria se encerrar por aí, conferindo-se ao autor da gravação o pressuposto do descrédito reservado a infratores da legalidade.

Mas apareceu uma funcionária do Senado que, infratora também, avaliou mais pesado o fardo da compactuação e confessou sua participação no crime.

Agora é uma advogada quem diz ter ouvido do senador a confissão. Como ela, há outros cuja pusilanimidade, ou avaliação equivocada, impele ao silêncio.

Por aqui nos acostumamos a considerar criminosas ações exclusivamente ligadas à obtenção de vantagens financeiras. Relevantes, por aqui, só as agressões aos itens do código penal que vedam ao cidadão os atos de roubo e assassinato. Por isso, o ?não matei e não roubei? é usado e, em boa medida, aceito, como argumento de suposta inocência.

A destruição de valores e a ruína de individualidades é permitida. Não raro aplaudida.

Mas isso aqui, onde a democracia é ainda uma jovem cuja integridade moral não se respeita em sua totalidade.

Gostamos muito de falar mal dos norte-americanos. Mas flagre-se um homem público na mentira por lá e se verá alguém tomado pelo constrangimento das escusas, do recuo e, no limite do constrangimento ético, da renúncia.

Um povo moralista, dizemos com desdém. Espertos somos nós, que aceitamos qualquer coisa desde que se apresente uma desculpa razoável.

Aos que chegaram mais recentemente à vida, cumpre recordar o motivo do escândalo que levou o presidente Nixon à renúncia: abuso de poder.

Seus correligionários do Partido Republicano foram pegos instalando escutas telefônicas no comitê do Partido Democrata, no Edifício Watergate, em Washington.

O presidente negou responsabilidade, mas os fatos descobertos por Bob Woodward e Carl Berstein, do Washington Post, obrigaram os prepostos presidenciais a confessar.

Os jornalistas levaram meses para levantar a história sem recorrer a expedientes escusos, valendo-se apenas do direito constitucional de preservação do sigilo da fonte.

Coisa de gente séria. Moralista para nossos frouxos padrões, mas com a auto-estima em dia.

Fator fatal

Horas antes de ACM desistir da presidência da Comissão de Constituição e Justiça, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, teve longa conversa com o presidente do Senado, José Sarney.

Não tendo sido medida preventiva e paliativa para aplacar os ânimos, o governo Lula terá marcado diferença.”