Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Alberto Dines

MANIFESTOS & GUERRA

“Da arte dos manifestos”, copyright Jornal do Brasil, 8/03/03

“No primeiro documento publico assinado por intelectuais de que se tem notícia, os signatários compreenderam que, como homens do pensamento, obrigavam-se a oferecer à opinião pública francesa as reflexões que faltavam aos exaltados pronunciamentos dos grupos que se digladiavam pró e contra a condenação de Alfred Dreyfus.

Publicado no dia 14 de janeiro de 1898 no L?Aurore, e assinado por expoentes das ciências e das artes como Anatole France, Gabriel Monod, Lucien Herr, Jules Renard, Alfred Jarry, André Gide, Marcel Proust e muitos outros, o documento desmontava a diabólica farsa que enfurnou o militar na Ilha do Diabo. Os intelectuais, porque eram intelectuais, recusaram a simplificação passional e, em vez de simplesmente pedirem a libertação do acusado, preferiram a racionalidade – reivindicaram a revisão do processo. Deu certo.

O candente manifesto dos escritores e artistas de língua espanhola encaminhado na quinta-feira última ao presidente mexicano, Vicente Fox, pretende persuadi-lo a votar contra Bush no Conselho de Segurança das Nações Unidos. Assinaturas como as de Gabriel García Márquez, Mario Benedetti e Pedro Almodóvar somam-se à natural veemência do idioma de Cervantes e à grandeza imbatível da causa da paz. Os autores preferiram o impacto da brevidade à exposição da racionalidade, apelaram para as emoções em detrimento da razão.

Esqueceram de mencionar a imperiosa necessidade de prestigiar e fortalecer a ONU, passaram ao largo da necessidade de reforçar o sistema internacional de arbitragens e controles, ignoraram o fato de que não será a derrubada de Saddam Hussein que estabelecerá no Iraque e no Oriente Médio o primado dos direitos humanos.

Está faltando alguém para berrar que esta nova ordem internacional é o império da desordem. O Eixo do Mal, inventado pelos marqueteiros de Bush, só poderá ser neutralizado por um poderoso concerto das nações contra todas as formas de violência. A luta antiterrorista não pode depender da boa vontade da ditadura do Paquistão. A humanidade não pode esperar que o bonapartista Bush e seu bando de falcões sejam derrotados em novo Waterloo, o banho de sangue será irreparável. A ilusão da guerra-relâmpago, rápida e com poucas vítimas, seduziu Hitler e algumas gerações de estrategistas. A Guerra dos Seis Dias de Junho ainda não acabou, 36 anos depois de vencida.

Precisamos urgentemente de um Manifesto de Não-Intelectuais e de Não-Sumidades em favor da lucidez. Alguém precisa lembrar aos jovens e aos esquecidos que a Primeira Grande Guerra não foi evitada pelas conferências internacionais da primeira década do século 20. Acabados os discursos, o vazio de ação. Faltava um mecanismo multinacional que, ao menos, funcionasse como fórum. A Liga das Nações só foi fundada em 1919, depois da sangueira de 1914-1918.

A Segunda Guerra Mundial tornou-se inevitável a partir do momento em que a Liga das Nações foi desmoralizada: o Japão anexou a Mandchúria (1931), a Itália de Mussolini invadiu a Etiópia (1935), e a Alemanha nazista denunciou o Tratado de Locarno (1936). Em apenas cinco anos, três golpes unilaterais dos futuros integrantes do Eixo arruinaram o primeiro exercício de convívio internacional na história da humanidade. A capitulação da Inglaterra e França em Munique (1938) e o Pacto Hitler-Stalin no ano seguinte comprovaram a ineficácia da diplomacia oportunista e dos conchavos regionais.

Se existe uma causa à qual devem aferrar-se não apenas o sábios, mas todos os que estão engajados na cruzada contra a violência, é o do fortalecimento dos organismos internacionais. Isso não significa esquecer que a Unesco já tomou decisões estúpidas em passado recente e que o Conselho de Segurança, neste exato momento, está convertido num mercado para comprar os votos dos membros não-permanentes, sobretudo aqueles não claramente alinhados: Camarões, Guiné, Angola, México e Chile (os três primeiros francamente autoritários e os dois últimos, vulneráveis aos sonhos de eterna prosperidade). Síria, Paquistão, Espanha e Bulgária já fizeram suas opções.

O fracasso da Liga das Nações deveu-se em grande parte à natureza dos regimes políticos dos estados-membros (dos 41 fundadores, cerca de metade era autocrática). Dois de seus três primeiros violadores eram nazi-fascistas e, o outro, monarquia militarista. Hoje, dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, dois deles – Rússia e China – são regimes autoritários que agora se opõem a Bush, mas amanhã estarão esmagando a ferro e fogo um protesto de estudantes ou a emancipação de uma de suas etnias. O ?terror psiquiátrico?, ainda vigente na China, não difere muito do confinamento em hospícios dos dissidentes do estalinismo.

Apesar do delírio patriótico transmitido por Bush, em cada grupo de dez americanos sete opõem-se à guerra contra Saddam sem o endosso da ONU. Apesar da pressão macartista ensaiada pelos conglomerados multimídia, uma pesquisa revelada ontem nos EUA mostra que se as eleições presidenciais fossem agora, Bush não seria reeleito. A margem é pequena (48% contra 44%), mas quando começar a morrer gente no Iraque o quadro deverá agravar-se. E não existem guerras sem mortes.

A questão da paz está intimamente ligada à questão da democracia. É isso que falta dizer nos ditirambos, nas proclamações, perorações e passeatas. Dá mais trabalho colocar isso no papel, é mais difícil relacionar direitos humanos com direito à vida. Em qualquer idioma, seja no de Cervantes, Racine, Shakespeare, Pushkin ou Camões, internacionalismo será sempre uma palavra polissilábica e abstrata. Até a hora em que explodem as bombas.”

 

GUERRA & ESPIONAGEM

“Escândalo de espionagem na ONU expõe a mídia dos EUA”, copyright Tribuna da Imprensa, 5/03/03

“Mais do que escândalo de espionagem, a revelação do jornal britânico ?Observer? sobre a operação de espionagem (grampeame nto dos telefones de diplomatas, em casa e no escritório, interceptação de todas as comunicações, inclusive e-mails) contra países do Conselho de Segurança da ONU que não apóiam a linha-dura do governo Bush no Iraque desmoraliza oconjunto da mídia americana.

Ficou caracterizado, além do escândalo de espionagem, também um escândalo de mídia – decorrente ou da atual incompetência dos grandes veículos de comunicaç&atildeatilde;o dos EUA, ou de sua conduta humilhante ante a intimidação oficial, ou ainda de zelo patriótico exagerado, três pecados identificados desde 11 de setembro e que levam muitos a buscarem em veículos de fora informações não encontradas aqui.

Além de terem sido de novo superados por correspondentes britânicos, que a esta altura impõem ?furos? quase diários sobre o governo Bush às gigantescas máquinas de informar dos EUA, os jornalistas americanos tentam ignorar o assunto – em nova demonstração de patriotada e submissão à Casa Branca – e só na tarde de segunda-feira ousaram fazer a primeira pergunta sobre o assunto ao porta-voz de Bush.

Esquecendo o próprio passado

Não tinha havido qualquer pergunta no domingo, quando saiu de manhã a notícia no jornal de Londres. A reação inicial do governo Bush foi vazar à coluna online de seu aliado ideológico Matt Drudge a ?suspeita? de que a prova saída no ?Observer? era fraude. Para tanto, alegava que certas palavras do memorando interno da Agência de Segurança Nacional (NSA) estavam com a grafia britânica e não americana.

O ?Observer? tomou então a pronta iniciativa de transcrever em seu ?site? na Internet a íntegra do documento com a grafia americana – e explicou que não o fizera antes porque o jornal se dirige ao público britânico. Mas na edição impressa havia, além da transcrição do texto, o fac simile do documento original, o que não deixava dúvida sobre a autenticidade. O assunto foi destacado segunda-feira na imprensa do mundo inteiro (até na do Brasil, largamente dedicada à cobertura do Carnaval), mas todos os grandes jornais americanos fingiram ignorar a notícia. Nem uma linha saiu nos liberais ?New York Times? e ?Washington Post?, que no passado bancaram os documentos secretos do Pentágono e foram até à Suprema Corte pelo direitode dizer a verdade ao leitor.

Depois de fugir da verdade

O muro do silêncio e da covardia da mídia americana prevaleceu no domingo (dia dos principais programas políticos da semana nas grandes redes de TV) e na segunda-feira – até o ?briefing? do porta-voz Ari Fleisher à tarde na Casa Branca. Ali veio, afinal, em tom tímido, a pergunta do correspondente da rede ABC. Ao que o porta-voz deu resposta neutra: ?Nada comentamos sobre operação de inteligência?. A iniciativa do repórter da ABC operou o milagre. E ontem, afinal, pelo menos dois jornais, ?Washington Post? e ?Los Angeles Times?, falaram da notícia dada domingo em Londres e acompanhada no dia seguinte na imprensa de outros países. Mesmo assim o ?Post? teve o cuidado de esconder a informação em página interna, a pretexto de ser pouco relevante porque é óbvio que os EUA espionam na ONU.

Os dois jornais voltaram ainda à alegação de Matt Drudge dois dias antes, de que o documento podia ser fraude para prejudicar a política de Bush. Mas o ?Los Angeles Times? não subestimou o escândalo: admitiu, até no título, que o caso pode aumentar os problemas dos EUA para aprovar sua pro posta de resolução no Conselho de Segurança (ironicamente, o objetivo final da espionagem da NSA).

A outra espionagem, sem prova

Há outra ironia no episódio. A mídia americana acha irrelevant e o documento publicado pelo ?Observer? – a pretexto de que ninguém é ingênuo o bastante para ignorar que os EUA espionam os diplomatas na ONU. Mas os EUA expulsaram há dias o único correspondente da imprensa iraquiana na organização, Mohammad Hassan Allawi, da agência INA, insinuando que fazia exatamente isso – espionagem.

O jornalista britânico Tony Jenkins, presidente da Unca (nossa associação dos correspondentes), com quem tenho o prazer de dividir uma sala na ONU, dirigiu carta ao secretário de Estado Colin Powell para indagar o motivo da violência, já que em toda a história da organização jamais – nem na fase aguda da Guerra Fria, quando abundavam os espiões – um jornalista credenciado foi expulso.

Allawi disse que a carta enviada a ele pela missão americana n a ONU ordenava a saída do país por ser sua presença ?contrária aos interesses dos EUA?. Só depois leu no ?Washington Post? que fonte anônima dissera ser espionagem o motivo. Mesmo negando, foi embora – sem ver qualquer prova. No ?Observer? o mundo viu a prova da espionagem dos EUA, governo que o expulsou. E o ?Post? até achou natural.”

 

GOVERNO LULA

“Jornalista denuncia complô contra Lula”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 7/03/03

“O jornalista e professor da PUC-MG, João Carlos Firpe Penna, publicou, na última edição do jornal Pauta, órgão oficial do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais (SJPMG), um artigo em que analisa as relações da chamada grande imprensa com os primeiros 60 dias do governo do presidente Luís Inácio Lula. O jornalista acompanha as relações da mídia com o Poder desde os idos da ditadura militar, ?pouco tempo, com certeza, para conhecer a História, porém o suficiente para se criar uma visão minimamente crítica desta relação, tantas vezes promíscua?.

?Por isto, nunca tive dúvidas de que um eventual governo Lula sofreria uma marcação pesada e sistemática por parte dos veículos de comunicação em geral?, prossegue Firpe Penna.

?Escrevo neste momento em que o governo Lula ainda não completou 60 dias e já vem recebendo muito chumbo grosso nas costas, por parte da grande imprensa, em um processo liderado pelo jornal Folha de São Paulo e a revista Veja?, diz o jornalista. Ele acredita que a trégua tática entre Lula e a grande imprensa pode durar menos do que se imaginava. ?As críticas ao Programa Fome Zero tem sido de tal forma pesadas (?populista?, ?demagogo?, ?ineficiente?, ?assistencialista?, etc.) que deixam poucas opções para a equipe do governo, especialmente a de Comunicação, agir de maneira elegante e cortês?.

Penna lembra as palavras do presidente da República: ?Lamentavelmente, a elite brasileira e, dentro desta elite, até grandes setores de nossa gloriosa imprensa, estão acostumados com outro tipo de governo – um governo em que todos os recursos públicos disponíveis são aplicados para atender às demandas daqueles que não precisam do Estado?.

O jornalista diz que a declaração é forte, sem meias palavras ou jogo de cintura. ?Uma reação à forma com que os veículos vêm editando a cobertura da Presidência. Um colega repórter, atuando em Brasília, em um jornal da grande imprensa, confirma: os editores ligam para a sede do veículo, fora da capital federal, para combinar não a cobertura do dia, mas a melhor forma de bater no Presidente?.

Ele lembra que exemplos não faltam. Um deles veio no dia seguinte à declaração de Lula, na edição de domingo (16/02) da Folha de São Paulo. A Folha publicou entrevista exclusiva com o presidente do Banco Mundial (Bird), James Wolfelsonh, que não economizou elogios ao início do governo Lula. Confiram alguns: ?Parece que este processo de redistribuição de renda já esta ocorrendo e, o que é mais impressionante, com o voto de 52 milhões de pessoas, de forma democrática?. E continuou: ?A taxa de risco tem sido reduzida nos últimos meses. Há um apoio visível e crescente ao Brasil na comunidade internacional?. ?Lula não é apenas cativante, mas também consciente dos desafios financeiros e da posição do país na economia global?, completou o homem forte do Bird.

?Se fosse o presidente do PT falando isto, até que dava para ignorar a manchete. Mas o presidente do Banco Mundial é outro referencial?, arremata Penna. ?E qual foi a manchete da página, com direito a chamada idêntica na capa??, indaga Penna. ?Lua de mel com Lula acabará, diz Bird?. Além de desprezar todas as demais falas da fonte, a que foi para a manchete foi inventada. O repórter indaga: ?o senhor não acha que está se deixando influenciar pela lua-de-mel, comum em todo começo do governo?? A resposta: ?É verdade, estamos nos primeiros 100 dias, numa lua-de-mel. Haverá dificuldades. A partir desta frase, o editor inventou a manchete, ignorando todo o resto da entrevista?.

?Este é o jornal que se apresenta como o maior do país. Vai haver, sem dúvida, um embate muito forte pela frente?, concluiu Penna.”