Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Alberto Dines

ARGENTINA & BRASIL

"Peronismo, lá e aqui", copyright Jornal do Brasil, 26/04/03

"Uma Argentina desolada começa amanhã a escolher o seu novo presidente. A apática campanha eleitoral não é apenas resultado da crise econômica e do paupérrimo elenco de candidatos. Desfibrou-se o processo democrático portenho como resultado do lamentável impasse partidário que perdura há 58 anos: dos candidatos mais bem situados nas pesquisas, três são peronistas e o quarto só consegue materializar-se como opção antiperonista.

Juan Perón não foi apenas um dos muitos caudilhos militares latino-americanos agarrados ao poder graças à combinação de messianismo, demagogia e corrupção. Assim como Hugo Chávez na Venezuela, criou uma caricata doutrina que hospedou as mais esdrúxulas combinações ideológicas, da extrema-direita à extrema esquerda. A partir dos descamisados do golpe de 1945 até a ?ligação carnal? com os EUA apregoada por Carlos Menem, o peronismo produziu a maior salada de oportunismos e simplificações do século passado.

Marca registrada do peronismo é o modelo oligárquico-conjugal através do qual eternizou-se. Primeiro com Evita e depois com Isabelita, Perón criou uma variante monárquica latino-americana onde a co-habitação funcionou literalmente: marido e mulher compartilham todas as esferas, da doméstica à governamental, e o Estado deixa de ser uma coisa pública, com seus ritos e responsabilidades, para tornar-se extensão de relações íntimas.

Anthony Garotinho é a reencarnação do peronismo made-in-Campos, reciclado pelo populismo à la Baixada Fluminense. Messiânico, demagogo, ideologicamente atabalhoado, administrativamente incompetente, não conseguiu encontrar um sucessor num estado que durante 150 anos abrigou a Capital Federal. Buscou a solução no ambiente caseiro, colocando no trono estadual a própria mulher.

Rosângela Mateus, tal como Evita e Isabelita, conseguiu no máximo ser um clone do marido. Virou Rosinha Garotinho, mimetizou ideário, métodos e só não conseguiu bater seu legendário cinismo porque nessa matéria o promissor político é rigorosamente imbatível.

Não contente em ser cônjuge-sucessora, acaba de converter-se em dupla patroa ao nomear o consorte secretário de Segurança. Manda e é mandada, governa e é governada, enquanto o subordinado subordina-a aos caprichos pessoais. Estranha comunhão essa que despreza os mais elementares princípios de compostura política, afronta os preceitos mais rudimentares da administração pública e envergonha um país que, depois da renúncia de Collor, alcançou um razoável padrão de decoro e decência.

A questão ética, tão aviltada através da escolha do Senhor Garotinho pela Senhora Garotinho, não pode suplantar a questão que motivou a esdrúxula decisão. O novo chefe do aparelho de segurança do Rio de Janeiro não tem a menor qualificação profissional para o cargo. Nem vocação. Muito menos o estofo.

Nas últimas eleições Garotinho não conseguiu convencer o eleitorado brasileiro de seus atributos de estadista e agora ei-lo encarregado de enfrentar o narcoterrorismo, problema prioritário na agenda nacional com desdobramentos em todas as áreas do poder público e vastas implicações internacionais. Sua excelentíssima esposa, eleita em pleito legítimo, ganhou um mandato que lhe confere o direito de ver o seu príncipe encantado convertido em Superman (segundo a hilariante metáfora de Chico Caruso).

Mas é preciso lembrar que o narcoterrorismo é problema de tal magnitude e a responsabilidade mútua do casal governante tão nítida, que se o secretário Garotinho pedir demissão à governadora Idem já não será caso de intervenção federal mas de impeachment puro e simples.

Quando o Estado está sob ameaça e o governo é desafiado por um poder paralelo, não valem a malandragem e a conversa mole, o papo-furado. Burlar as estatísticas criminais não calará os criminosos. O populismo não tem condições de mudar o comportamento das populações subjugadas pelo narcotráfico. A rivalidade entre as duas polícias e a corrupção que as iguala não serão enfrentadas com pequenos truques.

Imperioso não descurar dos aspectos morais dessa nomeação. As investigações sobre o ?propinoduto? e a máfia dos fiscais do Estado do Rio sugerem que o ex-governador Garotinho e os acusados não são tão estranhos como alegam. Já afloraram tangências e convergências que, embora tênues, não podem ser escamoteadas.

Os fiscais estão incursos em diversas infrações graves e, na remessa das propinas para o exterior, serviram-se do sistema de lavagem de dinheiro. O mesmo que serve ao narcotráfico e ao crime organizado. A credibilidade da autoridade policial não pode estar maculada por suspeitas. Uma investigação desse porte não pode acabar em pizza mesmo nem o investigador confundir-se com o investigado.

Alegres e esperançosos devem ser as núpcias, os matrimônios e esponsais. Essas bodas agora consumadas em ritmo de tango peronista são um escárnio."

 

GOVERNO LULA / PUBLICIDADE

"Publicidade federal", copyright Folha de S. Paulo, 28/04/03

"Ainda não é possível prever qual será o resultado final do novo formato das licitações para a publicidade do governo federal. Até porque não está pronto o modelo.

No governo FHC, era impossível saber com segurança quanto o Palácio do Planalto gastava para lustrar a imagem presidencial de forma direta. Nos aniversários do Plano Real, uma empresa estatal ou uma autarquia era obrigada a gastar sua verba para fazer proselitismo da administração federal tucana.

Já no final de seu mandato, FHC promoveu uma grande inovação. A Secretaria de Comunicação foi provida no Orçamento da União de uma verba específica para fazer publicidade institucional. Essa novidade passou a valer para este ano -portanto, para o governo Lula.

O gasto previsto no Orçamento é de R$ 111,9 milhões. Diz o Planalto que haverá um corte para reduzir o valor para algo próximo a R$ 60 milhões. A verba deve ser licitada para três a cinco agências de publicidade, de maneira genérica.

O governo deseja, ao longo do ano, distribuir as campanhas de acordo com a sua especificidade para cada uma das agências licitadas. Para evitar favorecimentos indevidos, nenhuma dessas agências ficará com mais de 40% nem com menos de 5% do valor da conta.

É uma fórmula engenhosa. Se vai dar certo, é outra história.

É inegável que a propaganda institucional de um governo tem um conteúdo estratégico. Não se pode passar informações privilegiadas do presidente da República para um publicitário qualquer, sem que sua agência tenha o mínimo de afinidade com o Palácio do Planalto.

É por essa razão que o modelo está sendo formatado para permitir mais flexibilidade no uso dessa verba. Fonte de problemas e cobiça em administrações passadas, essa montanha de dinheiro será consumida de maneira diferente no governo Lula. É necessário reconhecer que é uma atitude corajosa, mas o resultado só será conhecido ao longo do tempo."

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"Publicidade de Lula pode ter licitação genérica", copyright Folha de S. Paulo, 25/04/03

"O secretário de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, Luiz Gushiken, estuda fazer uma licitação genérica para a conta de publicidade institucional do governo, contemplando de três a cinco agências de propaganda.

Depois de escolhidas na licitação da Secom, essas agências receberiam serviços de acordo com as suas especificidades e conforme a demanda do governo, segundo a Folha apurou no Palácio do Planalto.

O Orçamento da União destina originalmente neste ano R$ 111,9 milhões para esse tipo de propaganda institucional, embora todos os gastos federais estejam sendo submetidos a cortes.

Para que a distribuição das campanhas entre as agências licitadas não seja totalmente sem regras, a proposta em estudo por Gushiken prevê um limite. Nenhuma das agências poderá, ao final do contrato, ter ficado com mais de 40% do valor total da conta nem com menos de 5%.

Por meio de sua assessoria, o secretário-adjunto de Comunicação, Marcus Flora, disse que o modelo ?ainda não está formatado? e que não poderia confirmar os detalhes obtidos pela Folha.

Arcabouço legal

A Folha apurou que o governo pediu ajuda informal a técnicos do TCU (Tribunal de Contas da União) para que o arcabouço legal desse novo processo de licitação não sofra críticas ao ser apresentado. Flora nega que esse contato tenha sido realizado.

Se prosperar essa fórmula trabalhada por Gushiken, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá muito mais liberdade de ação do que o de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Quando FHC precisava fazer alguma campanha institucional -o aniversário do Plano Real, por exemplo-, a Secretaria de Comunicação tinha sempre de apelar para algum órgão federal. No governo tucano, a Casa da Moeda, o Banco do Brasil e a Petrobras patrocinaram campanhas do Palácio do Planalto.

Afinidade política

Como as propagandas institucionais incluem informações estratégicas, o governo Lula deseja ter liberdade para incluir os publicitários que tenham maior afinidade política com o Palácio do Planalto.

Numa licitação em que cinco agências sejam escolhidas, fica mais fácil justificar a escolha de uma agência amiga.

Além dos cerca de R$ 111,9 milhões da Secom, há também os, pelo menos, R$ 600 milhões das contas das empresas estatais e autarquias -sobre os quais Gushiken terá amplo controle.

O publicitário Duda Mendonça, que foi o responsável pela campanha presidencial de Lula no ano passado, diz ter trabalhado de maneira informal para o Planalto. Um exemplo é a campanha pela reforma da Previdência.

Formalmente, essas propagandas são produzidas pela Propeg, agência baiana ligada ao senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA). A Propeg tem a conta do Ministério do Planejamento desde o governo FHC -e, por isso, recebeu a incumbência. Ocorre que Duda e sua equipe supervisionam todos os trabalhos e escrevem parte dos textos.

Se houver uma licitação genérica para cinco agências na Secom, Duda Mendonça é um dos candidatos a ficar com uma das vagas."

 

"Senado aprova proposta que limita gastos do governo com publicidade", copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 23/04/03

"O Senado deu nesta quarta-feira um passo para impor limites aos gastos dos governantes com publicidade oficial. O Plenário aprovou proposta de emenda à Constituição (PEC), de autoria do senador Roberto Saturnino (PT-RJ), que fixa limites, a serem estabelecidos em leis específicas, para despesas com publicidade de obras governamentais.

Para virar lei, a PEC precisa ainda ser aprovada em dois turnos na Câmara. ?Os governos precisam da publicidade oficial para informar a população, mas os gastos devem ter caráter educativo e devem ter limites para evitar abusos de natureza propagandística ou, o que é menos ético, favorecer determinados grupos políticos?, afirmou Saturnino.

Pelo texto, serão fixados os gastos com propaganda nos contratos entre estatais e governo. Uma mudança que a proposta traz é ampliar o alcance da limitação dos gastos às propagandas de qualquer órgão da administração pública. A legislação atual só se refere a órgãos públicos, dando margem à leitura de que a proibição só vale para administração direta.

O relator da proposta, senador José Agripino (PFL-RN), chamou atenção para o grande número de ações tramitando no Tribunal Superior Eleitoral e nos Tribunais Regionais Eleitorais em torno de abusos em propaganda oficial.

A proposta recebeu 60 votos favoráveis e apenas dois contrários – dos senadores Hélio Costa (PMDB-MG) e Luiz Otávio (PMDB-PA). O representante do Pará argumentou que o Legislativo tem interferido demais nas incumbências do Executivo. As informações são da Agência Senado."

 

ENTREVISTA/MURILO CÉSAR RAMOS

"Entrevista", copyright Meio & Mensagem, 14/04/2003

"Murilo Ramos debatia a crise na mídia bem antes de ela se configurar como um problema quase generalizado entre os veículos de comunicação brasileiros. Diretor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do grupo de Pesquisa em Políticas e Tecnologias da mesma instituição, Ramos diz que falta profissionalismo no modelo de gestão da mídia nacional, caracterizado por administrações familiares. Ele analisa também a opção equivocada das empresas de comunicação, que apostaram na convergência de tecnologias e investiram grandes somas em telecomunicações, Internet e outros segmentos que hoje também estão em crise. Crítico da mídia, o acadêmico defende a idéia de que os meios de comunicação devem se mostrar mais abertamente para a sociedade, inclusive no que se refere a seus problemas, como acontece na Europa e nos Estados Unidos. Para ele, é preciso colocar a mídia em debate. Ramos se diz contrário a uma suposta proposta de que o governo do PT montaria uma operação de socorro financeiro para as empresas de comunicação. Fala também de questões como a despersonalização das redações e critica a proposta de desenvolvimento de um sistema de TV digital brasileiro.

Meio & Mensagem – Quais são, na sua opinião, os principais fatores que levaram a mídia brasileira às dificuldades financeiras que enfrenta atualmente?

Murilo Ramos – Eu entendo que o principal problema é de gestão. Acho que se trata de empresas que ainda funcionam na pior tradição da gestão familiar – temos no Brasil cinco, seis ou sete dessas famílias controlando veículos de comunicação. O profissionalismo é muito limitado na mídia brasileira. Um exemplo que gosto de dar é o das Organizações Globo, que têm uma história interessante: já houve uma gestão mais profissional, com José Bonifácio Sobrinho (Boni), Antônio Athaíde e outros, e foi perdendo isso à medida que uma nova geração, a dos filhos do Roberto Marinho, assumiu e ?familiarizou? o comando da empresa. O que parecia ser uma profissionalização, com Marluce Dias da Silva, na realidade fez com que um círculo menor e menos profissional assumisse a companhia. A crise financeira é, não obstante, real, e tem um viés de investimentos duvidosos, como os realizados em onerosas redes de televisão a cabo, duplicando estruturas. Não só o Sistema Telebrás, na época, oferecia a possibilidade de transportar sinais de televisão em suas redes de longa distância, os backbones, como Globo e Abril, por exemplo, chegaram a fazer o chamado overbuilding, isto é, lançaram redes próprias ao invés de buscar o compartilhamento. Na década de 90, acreditou-se na convergência das tecnologias digitais, em investimentos em companhias telefônicas, e as empresas de mídia não se deram bem. Houve o equívoco generalizado da convergência, que exigiu investimentos em dólar, coisas do gênero, mas insisto que, no limite, há um problema de gestão.

M&M – O senhor concorda que o governo federal deveria socorrer os veículos de comunicação, tendo como contrapartida a participação da sociedade sobre o conteúdo?

Ramos – Não. Não vejo por que o governo teria de ajudar as empresas de mídia. Podemos ter determinadas situações em que a ação do Estado poderia se fazer necessária, mas não é o caso das empresas de comunicação. Principalmente se essa for a contrapartida. Acho que seria a pior solução fazer essa troca: nós, sociedade, permitimos que o governo use o dinheiro dos nossos impostos para tirar as empresas do buraco e, em contrapartida, nós criamos mecanismos para fazer com que a mídia seja mais responsável em termos de conteúdo e valores. Não vejo como fazer isso. O risco é inerente a quem se envolve em atividades de mercado. Por que se deve tirar o dinheiro de outras prioridades sociais para salvar um setor que não se permite ser entendido e analisado quanto às razões pelas quais encontra-se em crise? Eu posso achar que a gestão é o principal problema, mas há outros fatores. Vamos imaginar a hipótese de o governo salvar as empresas. Aí cobra-se mais responsabilidade delas. Como fazer isso se a sociedade não está bem informada com relação ao que provocou a crise da mídia? Na sociedade em geral – por meio de instâncias organizadas, sindicatos, universidades, associações, federações empresariais etc. – esse debate não está aberto, pois a mídia não fala dela própria. Por que não fazer, por exemplo, um Globo Repórter sobre a crise na mídia? Se há edições desse programa abordando crises nas telecomunicações, no setor de energia, de saúde, por que não um sobre as questões que afligem a indústria da comunicação? Se a mídia quer uma solução para seus problemas, primeiro ela tem de permitir ser conhecida e abrir espaço para um debate.

M&M – O Conselho de Comunicação Social, criado no ano passado, poderia ser um fórum para esse debate?

Ramos – Eu acho que o CCS é o órgão certo para estudar essas questões. Ele tem de um lado os patrões e de outro os empregados, os sindicatos, as federações dos jornalistas, dos radialistas e alguns representantes da sociedade civil independente, mas tal formação tende a neutralizar o debate. Aferem-se posições aqui e acolá e fica um jogo de soma zero. Eu entendo que conselhos desse tipo são melhor constituídos com as chamadas personalidades de notório saber. Essa é também uma decisão difícil, mas que pode ser tomada. Você pode buscar nomes com representatividade que não estejam ligados a interesses corporativos diretos. Independentemente disso, acho que o CCS pode fazer esse debate, mas se ele não vazar para os meios de comunicação e acontecer apenas em circuito fechado não adiantará muito. Trata-se de um dilema quase sem solução. O grande drama da crise da comunicação social é que o debate é fechado em si mesmo. Acho, ainda, que o CCS só conseguirá se legitimar se houver uma discussão mais intensa com a sociedade a respeito das questões da mídia. Observe que os meios de comunicação passam juízo de valor sobre tudo, menos sobre eles próprios, como se estivessem acima do bem e do mal, imunes de percalços. E aí, farisaicamente, quando a crise é deles, forçam a barra querendo até se colocar como questão de interesse nacional, aceitando que o governo do PT monte, como chegou a se falar, um programa de socorro financeiro. Isso é de uma hipocrisia enorme. O pré-requisito fundamental para a mídia sair da crise é o debate com transparência.

M&M – O senhor acha que a terceirização dos profissionais que trabalham na mídia pode piorar ainda mais o conteúdo oferecido pelos veículos?

Ramos – Há um problema hoje que é mundial, em que você tem uma reconfiguração nas empresas e no modo de fazer jornalismo. Então, ocorre cada vez mais a terceirização, que gera uma despersonalização do jornalismo. Isso é fato. Os profissionais da área têm cada vez menos liberdade que no passado, porque as redações tinham grande autonomia para produzir o jornal. Tal despersonalização é resultado desse processo de empresas trabalhando cada vez mais nos moldes de outras empresas, sem diferenciações que deveriam marcar o jornalismo. A imprensa não é uma seguradora, uma companhia de cartão de crédito. Existe a responsabilidade pública nos meios de comunicação e a diferenciação entre os meios está sumindo. Mídia é negócio, mas é um negócio diferente. O dono de um jornal, um Nelson Tanure (empresário proprietário do Jornal do Brasil), por exemplo, precisa assumir que é um empresário que recebe um mandato da sociedade para freqüentar espaços que o cidadão comum não freqüenta, pois ele entra nos palácios, entra nos gabinetes, tem acesso às pessoas. Isso não acontece porque ele é o Tanure, o dono do Jornal do Brasil, mas porque a sociedade lê o jornal que ele publica e é ela quem dá a ele o direito e a capacidade de ter acesso aos locais que não podem ser atingidos pelo cidadão comum. Quem garante o acesso de um jornalista a um determinado local ou a uma certa personalidade não é o dono do jornal no qual ele trabalha, mas sim a sociedade. Então, quem é dono de jornal tem que saber que o seu negócio é diferente. Precisa dar autonomia para sua redação, sintonizá-la com a sociedade e não querer ganhar dinheiro como ganharia construindo navios, por exemplo. Essa é uma questão fundamental. O caráter público de um veículo não é só um atributo das concessões de rádio e televisão que o governo dá. O caráter também é inerente aos veículos impressos privados. Roberto Civita não tem o direito de colocar na Veja o que ele bem entende, o que ele faz sistematicamente, pois não é a opinião dele que interessa. Ou ele tem sintonia com a sociedade ou perde a legitimidade de ser dono de uma revista. Infelizmente, a sociedade não tem compreensão desses processos para saber que o que ele está fazendo não é direito dele. Ter uma visão ideológica, uma visão de mundo, apoiar determinadas situações, certos modelos, são coisas que precisam ser discutidas com a crise da mídia. Os donos dos veículos deveriam assumir a sua responsabilidade social. Como hoje a lógica é despersonalizar, terceirizar os serviços, quando você coloca isso numa redação é um desastre.

M&M – E essa visão meramente empresarial se reflete no conteúdo?

Ramos – Claro que sim. Esperava-se que na Internet, por exemplo, houvesse textos longos, capacidade de análise. Os portais hoje são pílulas de notícias, caíram na mesma dinâmica. Esse é outro problema. Os textos estão perdendo qualidade. Cada vez mais as pessoas não têm tempo e essa &eacuteacute; uma cultura que exige uma velocidade muito grande, maior compressão de tempo e espaço. Essa desculpa de que as pessoas não lêem textos grandes é velha. Como é que a The Economist existe? Ela pode ser conservadora, mas é brilhante nas suas análises e nos seus textos.

M&M – A participação do capital estrangeiro na mídia vai ajudá-la a superar essa crise?

Ramos – Nunca vi, em tese, problema para abertura da mídia ao capital estrangeiro. Mas, durante o processo de abertura, acabei ficando contra, pois defendo, além de limite de capital, um marco regulatório adequado. É necessário rever todo o arcabouço normativo no rádio e na televisão. A lei que sobrevive até hoje é de 1962. O Fernando Henrique Cardoso quebrou, em 1995, o monopólio da Telebrás e refez parte da legislação sobre comunicações. Mas, por oportunismo, deixou a radiodifusão de fora. Então é preciso estabelecer um procedimento de modo que o capital estrangeiro venha, mas com um novo marco regulatório, com uma re-regulamentação e, principalmente, com um órgão regulador. E isso ainda não entrou em discussão. Do jeito que foi aprovado, sou contra por dois motivos: a sociedade está desprotegida, porque não há marco regulatório; e o investidor não vai botar dinheiro onde não há regras claras que garantam o sucesso de seu investimento. Se vier, será o investidor ruim. A Rede Globo achava que viria para ela, mas ela está tão desgastada que acho que não virá nem para ela.

M&M – Qual a sua opinião sobre as agências reguladoras do governo, como a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)?

Ramos – Eu apóio e defendo o governo do PT, mas acho que ele está equivocado ao querer acabar, por exemplo, com o modelo de agências sem ter uma alternativa viável para elas. As agências são o marco regulatório da energia elétrica, do petróleo, das telecomunicações, e o governo vai afugentar investidores nessas áreas se eliminar as agências. O investidor corre um risco muito grande, porque estará sujeito a oscilação, ao problema da quebra de contrato que foi tão debatido durante o período eleitoral. Se não houver marcos regulatórios próprios, que sejam respeitados, vamos ter problemas. Recentemente, o ministro das Comunicações, Miro Teixeira, esculhambou com a Anatel durante um evento em São Paulo. Isso deixou o mercado em polvorosa. O investidor pode pensar que, a qualquer hora, nenhuma regra vai valer mais. Criaram a Secretaria de Telecomunicações, no Minicom, com a atribuição de fiscalizar a Anatel e exercer tutela sobre o órgão regulador. Assim é melhor acabar com o órgão regulador. No caso do rádio e da televisão, sem marco regulatório, o investimento externo não vem e a sociedade fica desprotegida. Há pessoas capazes e de bom senso no governo que sabem que este modelo pode ser melhorado, mas o que eu vejo hoje é a tentativa pura e simples de desmontá-lo, o que é um problema muito grave. Não que o modelo das telecomunicações não possa ser mudado. Pode e até deve. Principalmente se for incluído nessa mudança o novo marco regulatório do rádio e da televisão. Mas isto não pode resultar de atitudes irracionais, como se o desmonte puro e simples da Anatel pudesse compensar, para alguns, o erro cometido pelo governo anterior quando privatizou, fatiando, o Sistema Telebrás.

M&M – Como o senhor vê a Lei de Radiodifusão?

Ramos – Eu chamo isso de barafunda regulatória. O atual governo não tem interesse na Lei de Radiodifusão, ou, como prefiro chamá-la, Lei da Comunicação Social Eletrônica, porque não quer brigar com os meios de comunicação. Primeiro é preciso aprovar a reforma tributária, da previdência. Mas, se o governo fosse mexer ao mesmo tempo com uma lei para o rádio e a televisão, isto iria criar um atrito direto com os meios de comunicação, supostamente prejudicando o andamento das outras reformas. Eu sou pessimista: acho que o governo do PT jamais fará essa lei. Nesse ponto, não será diferente de Fernando Henrique Cardoso e de tantos que o antecederam.

M&M – Qual a sua opinião sobre a idéia do ministro das Comunicações, Miro Teixeira, de desenvolver um sistema de TV digital brasileiro?

Ramos – Eu não entendo como o CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento do Setor de Telecomunicações), uma fundação privada, que deu uma consultoria enorme para a Anatel para avaliar os padrões tecnológicos americano, europeu e japonês, esquece tudo o que fez e está querendo pegar dinheiro para fazer uma outra proposta de um sistema nacional de TV digital. Não entendo porque o CPqD mudou de posição e ninguém está cobrando isso dele. O CPqD deu consultoria para o governo, a partir de uma demanda do grupo formado pela Sociedade de Engenharia de Telecomunicações (SET) e pela Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), para estudar padrões tecnológicos, modelos de negócios, de conteúdo; deve ter recebido um volume expressivo de recursos. Agora chega e diz que isso não importa mais e quer seguir outro caminho? Antes de se discutir a tese, que é legítima, de um sistema nacional, deve-se perguntar porque o CPqD não alertou o governo antes, não alertou a sociedade para o equívoco que estava sendo cometido? Ou se alertou, porque isto não se tornou público? O que me preocupa também é a proposta do ministro de montar um pool de universidades para fazer esse projeto, e tenho a desconfiança de que esse pool pode ser uma fachada para que o CPqD e o Instituto Genius, que é ligado a uma empresa privada – a Gradiente, do empresário Eugênio Staub, o primeiro a apoiar a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República – desenvolvam o projeto, pois são eles que o têm. Para dispensar a licitação, está se montando um pool e temo que as universidades públicas entrem nisso desavisadamente para pegar uma fatia de recursos que na realidade vai ser consumida pelo CPqD/Genius. E digo isso na condição de professor de uma universidade pública. Além do mais, acho que a TV digital não é prioridade para o Brasil neste momento. Não há pressa para a TV digital, principalmente quando a discussão começa erroneamente pela tecnologia, justamente o que tem gerado enormes problemas nos países onde foi implantada de forma precipitada: os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. A discussão relevante envolve questões de conteúdo, questões regulatórias, o papel social da televisão, o controle público da informação, o direito à comunicação, isso é que é importante. Se será digital ou analógico, isso é parte de um futuro que ainda não conhecemos. Para mim, essa questão de padrão digital é irrelevante enquanto não se atacar as questões estruturais com profundidade e com intensa participação da sociedade.

M&M – Como o senhor está vendo a cobertura da guerra no Iraque?

Ramos – Manipular a informação é parte da estratégia dessa guerra e o império norte-americano está vivendo uma contradição brutal. Observe que os Estados Unidos restringem seus direitos civis, que estão na origem da sua história republicana, como na idéia de criação de um cadastro de todos os cidadãos americanos. Se unirmos a isso a pressão brutal que está sendo exercida pelos grandes veículos de comunicação dos Estados Unidos na guerra com o Iraque, percebemos que a manipulação de informação é de uma gravidade brutal como jamais se viu. A imprensa teve importância fundamental na guerra do Vietnã, cuja cobertura foi realizada por uma mídia independente. É preciso que haja uma reação da mídia norte-americana, ela não pode continuar comprando essa versão absurda, na qual só há mentiras, de serem as armas químicas e a ?libertação? do povo iraquiano as razões para o conflito. É preciso que os grandes jornais e televisões dos Estados Unidos, assim como os pequenos veículos, façam reportagens mostrando as mentiras dessa guerra. Se isso acontecesse, seria possível que o esquema do governo americano fosse quebrado. Se essa guerra se estender, em algum momento alguma redação, algum veículo, vai funcionar pela pressão da opinião pública. O que reafirma que a mídia só existe em função da opinião pública."