Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Alberto Dines

GOVERNO LULA

"Blecaute lá, tudo azul aqui", copyright Jornal do Brasil, 16/08/03

"Nova York apagou às 17h11 de quinta-feira e, segundo as nossas manchetes de ontem, a cidade mergulhou no caos e no medo. Duas horas depois (pelo horário brasileiro), o presidente Luiz Inácio anunciava aos seus amigos e amigas que ?o pior já passou?, nosso apagão está sob controle.

Nos próximos dias saberemos se eram verazes as imagens da TV americana mostrando os nova-iorquinos, razoavelmente resignados, bebendo cerveja na rua, assumindo o controle do tráfico de automóveis e outras civilidades, se houve saques e violências.

Mas nestas paragens meridionais, ao comparar o oba-oba presidencial com o noticiário da semana percebe-se um certo – digamos – descompasso. Compreende-se: a fala do trono foi preparada pela charanga marqueteira do governo e ela permite-se – digamos – platitudes.

?Chega de sobressaltos?, proclamou o Chefe da Nação; porém, um dia antes, um monitor da Febem, em São Paulo, foi sangrado friamente pelos jovens internos até morrer. O governo federal não tem culpa, a Febem paulista está afeta ao governador de São Paulo que, por sua vez, passou a Febem para o secretario de Educação que, por sua vez, não entende nem de educação nem de delinqüência juvenil.

Mas no seu segundo pronunciamento televisivo é imperioso que o Grande Narrador manifeste o seu – digamos – horror ou, ao menos, o seu desagrado com as coisas que acontecem com seus amigos e amigas espalhados pelo país. Só o presidente da República tem o dom e o condão de sossegar os desassossegados e convocar a sociedade brasileira para um repúdio à violência, qualquer violência.

É uma violência contra o Erário, contra a democracia e contra a massa dos miseráveis que parte do funcionalismo esteja em greve há 40 dias prejudicando a administração pública, as exportações, a arrecadação, o pagamento dos benefícios do INSS e ainda ganhe os salários integrais.

É uma violência contra o regime republicano que um ex-assessor de um parlamentar pago pelo contribuinte seja flagrado quebrando as vidraças da Câmara dos Deputados à qual serviu até há pouco.

Não se pede ao presidente que junte-se aos defensores da proibição da venda de armas de fogo, quer-se apenas que ao invés de badalar um programa que mal começou (o Primeiro Emprego), S. Excia. assuma o pódio para solidarizar-se com aqueles que assistem horrorizados à gradual transformação do homem cordial no homem bestial.

O presidente tem o dever de comemorar os feitos do seu governo, a primeira etapa da tramitação da reforma da Previdência, é um deles. Ele sabe que nós sabemos que estamos todos no mesmo barco. Por isso elogiou a oposição pela ajuda que deu nas votações. Mas precisa compartilhar com o resto do país as críticas do seu ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, que no mesmo dia criticou duramente o corporativismo dos três poderes e as cúpulas sindicais.

Sazonado pelos sete meses de compulsória realidade, o presidente Lula deblatera contra pacotes e poções mágicas. Sabe que foi – digamos — apressado quando prometeu iniciar o espetáculo do crescimento. Adiada a festa sine die, cabe dirigir ao distinto público, amigos e amigas, algumas escusas.

Os traumas na esfera da convivência e urbanidade que assistimos diariamente não ocorrem por acaso nem são gratuitos. Têm raízes fundas e têm preço. Não são medidos por índices nem contam no risco-pais. Mas aquele estudante de São Paulo que, nas escadarias da mais prestigiosa usina de juristas do país, desrespeitou uma autoridade eleita pelo povo é o reflexo de uma sociedade que perde – digamos – as estribeiras e, junto com elas, as referências de dignidade e decência."

 


"Para advogado ligado ao PT, Lula ?terá de tirar a direita?", trechos, copyright Folha de S. Paulo, 18/08/03

"?Não há outra solução.? Para Fábio Konder Comparato, professor titular de direito comercial da USP e especialista em direito constitucional, chegará o momento em que o governo se dará conta de ter cometido um ?erro crasso? ao eleger a inflação como principal problema do Brasil. Nessa hora, o presidente ?vai ter de tirar todo esse pessoal?. Chamado a nomear o pessoal, explica: ?Os componentes da direita. Obviamente isso inclui o ministro da Fazenda?, Antonio Palocci Filho.

Os intelectuais ligados ao PT dividem-se hoje entre poucos que já declararam o governo Lula caso perdido e muitos que preferem manter as críticas, maiores ou menores, em privado, sob o argumento de que torná-las públicas serviria à causa da oposição.

Nesse universo, Comparato é estrela solitária -em parte por jamais ter sido filiado, não obstante suas relações históricas com o partido e com Lula. Ao contrário do primeiro grupo, acha que o governo mudará, e para melhor -o que, de seu ponto de vista, significa mudar para a esquerda. À diferença do segundo, bate sem reservas no que lhe parece errado, notadamente a política econômica e a reforma previdenciária.

Bate também na imprensa, que contribuiria para formar a percepção, a seu ver errada, de agravamento das tensões sociais. Irritado, porém, o professor de 66 anos só fica quando chamado de ?intelectual governista?, qualificação que rejeita a todo custo. ?A perda da liberdade de crítica é a desmoralização do intelectual.?

Na sala de reuniões do escritório em que recebeu a Folha, no bairro paulistano de Moema, uma foto estampada em antigo calendário da Ordem dos Advogados do Brasil mostra Comparato, Evandro Lins e Silva e Sergio Servulo da Cunha protocolando o pedido de impeachment de Fernando Collor no Supremo Tribunal Federal. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Folha – O sr. concorda com a percepção de que há um recrudescimento das tensões sociais no país?

Fábio Konder Comparato – De modo geral, a tensão me parece fabricada. O noticiário não destaca que há no Brasil 150 milhões de hectares de terras inexploradas, uma violência em si. Mas basta alguém saquear um caminhão nos confins do Nordeste para que isso apareça na televisão e nas primeiras páginas dos jornais. O saque é notícia, o problema estrutural, não. Isso deforma a realidade.

Por outro lado, há inegável deterioração das condições de vida. Ela deve ser imputada, em larga medida, a governos anteriores, mas o atual também contribui ao repetir e agravar a política econômica de Fernando Henrique.

Na minha concepção -que certamente considerarão ingênua-, um órgão de comunicação deve ter compromisso com o povo. Um jornal que se manifesta exclusivamente contra ou a favor de um governo -e manifestar-se contra costuma render mais sucesso- não cumpre seu papel.

O problema não é saber se o governo atual é diferente do programa ou da tradição do partido ao qual o presidente pertence. O problema é identificar quando as políticas vão no sentido da melhoria do nível de vida da população e quando representam sua deterioração. Não acredito que o governo Lula só tenha errado.

Folha – O sr. afirma que a imprensa é do contra. Não lhe parece que ela tem sido majoritariamente favorável ao governo Lula?

Comparato – Com certeza. Mas isso ocorre porque a imprensa não é uma entidade pairando acima do mundo. Os grandes órgãos de comunicação defendem interesses econômicos que não são, necessariamente, interesses nacionais. Quando um governo cujos integrantes foram acusados, no passado, de serem desmesuradamente esquerdistas toma medidas ultraconservadoras, oferece não apenas alívio, mas uma grata surpresa aos donos do poder. Precisaria mesmo ser elogiado.

Além disso, ninguém desconhece que a mídia brasileira enfrenta enormes dificuldades financeiras, e que a solução desse problema passa pelo BNDES. Portanto, não é neste momento que um jornal ou uma rede de televisão profundamente endividada vai criticar o presidente de maneira dura.

Folha – Quais são, em seu entender, os acertos do governo Lula?

Comparato – O primeiro ponto é a política externa, a meu ver a mais brilhante do período republicano. Por que a imprensa não ressalta esse fato? Porque há o risco de criar constrangimento para os Estados Unidos. Fico decepcionado com os grandes órgãos de comunicação por sua posição hesitante, quando não claramente favorável, em relação à Área de Livre Comércio das Américas."