Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Alberto Dines

COBERTURA DO TERROR

"A culpa é das vítimas", copyright Jornal do Brasil, 22/09/01

"Hora da gramática, inclusive para baixar a pressão. O simplismo político que antecedeu a Terça Negra parece que não foi interrompido depois da carnificina. Está intacto e ileso, fumegando ressentimentos, pronto para inflamar iras sagradas e santas indignações.

De forma cabal, a maioria das lideranças árabes ou islâmicas solidarizaram-se com as famílias das vítimas ou com o povo americano. Sem atenuações ou justificativas. Foram tão feridas pelo terrorismo como os assassinados. Fidel Castro, tão agredido pela arrogância norte-americana há tanto tempo, também foi inequívoco na solidariedade. Disse o que sentia, ponto final.

Mas na retórica da nossa decantada sociedade cordial, eivada de vírgulas e desvios, foi inserido como recurso atenuante uma pequena partícula usualmente destinada a ligar partes da frase. Disfarçada como pausa entre duas idéias, tem função deletéria, desagregadora. Sem ao menos sensibilizar-se pela morte de tantos brasileiros, alguns dos breves e formais lamentos pela catástrofe foram seguidos de um perturbador e insultuoso porém.

Na inocente conjunção revela-se o vulcão de rancor ainda não sossegado, atalhado ou purgado pela sangueira da semana passada. Aqui entra a gramática para lembrar coisas para as quais não atentamos ao usar o idioma. Conjunções servem para juntar orações: quando aditivas funcionam como reforço – caso do teimoso e -, quando adversativas estabelecem o contraste entre os respectivos sentidos. Se alguém apresenta condolências e, logo em seguida, acrescenta algum contudo, todavia ou porém está na realidade dizendo ?meus pêsames? negando-o logo depois com um ?bem feito?.

O ?show? político apresentado pelo PT na televisão nesta quinta-feira foi perfeito em todos os sentidos, Inclusive na menção aos atentados terroristas: nem mas nem meio mas. O repúdio à violência foi breve, claro, e o pesar, sincero. Mas o PT é um partido que se prepara para exercer o poder, tem condições de extirpar emoções, escolher palavras que as expressem e, sobretudo, evitar as armadilhas do fraseado. Tem condições, sobretudo, de imunizar-se contra o veneno das ambigüidades do discurso.

Esta consternação não foi compartilhada pela maioria dos militantes ou associados que desfilaram pelas páginas dos jornais fumegando raivas e cólera, claramente satisfeitos com o ajuste de contas exibido de forma tão espetacular pela TV.

Rapidamente lastimados, os seis mil desaparecidos – inclusive os 17 brasileiros – foram rapidamente comparados aos mortos em Hiroshima, Nagasaki, Dresden, Hanói, Chile e aos quais se acrescentaram as massas de famintos da África e as legiões de miseráveis na América Latina. Balançando entre a justificativa e o justiçamento, com a decisiva ajuda dos poréns, a cruel aritmética vindicativa ilustra um relativismo moral do qual certas esquerdas – ou pseudo-esquerdas – ainda não conseguiram livrar-se. E tão cedo não se livrarão enquanto continuarem intoxicadas pelo dogma de que os fins podem justificar os meios.

Deste atordoamento espiritual não escapam figuras consagradas nos certames internacionais: premiados com o Nobel da Paz e da Literatura, catedráticos e luminares em todas as ciências e saberes, racionalistas e estetas, marxistas e aristocratas. Historiadores treinados para olhar a humanidade com a perspectiva dos séculos e jornalistas habituados a interpretar imediatamente seus espasmos, entregaram-se ao amok desencadeado pelo terror. Até banqueiros tão cautelosos nas emoções e aplicações tiraram dos armários os estandartes de cruzados.

Incapazes de se horrorizar ou entregar-se à dor, portanto incapazes de se humanizar pelo sofrimento e pela solidariedade, os fogosos arautos do ?estamos quites? estão detonando todas as pontes que conduzem ao diálogo e à tolerância. A xenofobia que só agora descobriram já pulsava há muito nos seus pronunciamentos totalizantes e totalitários, na forma de dividir o mundo entre os que merecem compaixão e os que merecem a paixão condenatória.

George W. Bush é a pessoa menos indicada para conduzir os EUA neste momento. Disso não há menor dúvida: todas as suas manifestações (a começar pelo discurso numa escola na Flórida na manhã dos atentados e terminando dez dias depois no discurso ao Congresso em Washington) escancaram o despreparo, o vazio intelectual e uma psique que só sabe manifestar-se através de lugares-comuns.

A inconfortável constatação não pode nos conduzir a um alinhamento com o fanatismo, o terrorismo ou com estas cínicas invocações destinadas a minimizar, desculpar ou justificar a barbárie cometida na Terça Negra.

Nas avaliações ora em curso está sendo esquecido um dado elementar: os atentados não foram acompanhados de manifestos, ultimatos, condições ou exigências. A ausência de proclamações ou autoria indica uma guerra indiscriminada contra todos, contra a humanidade. Os mandantes do crime não são de esquerda, sequer progressistas. Também não são agentes do capitalismo selvagem ou revolucionários, reformistas, ecologistas, terceiromundistas ou antiglobalização. Não querem um Estado forte ou mínimo. Não querem Estados, leis, códigos, normas de convivência ou respeito. Além de matar indiscriminadamente estão empenhados em semear ódios, acender fogueiras, exacerbar suspeitas, inflamar vinganças, cercear qualquer possibilidade de entendimento, aproximação ou tolerância.

Ao manifestar um pesar com meia boca ou da boca para a fora, os lúcidos comentadores com suas conjunções adversativas e seu relativismo moral estão apenas avalizando a violência como linguagem política.

Nas realidade, estão condenando as vítimas como as únicas culpadas pelo que aconteceu.

"Nem anjos nem demônios", copyright Folha de S. Paulo, 24/09/01

"As primeiras reações da sociedade, diante da tragédia americana, mostram como nosso mundo não é apenas global, mas global e fragmentado.

Fico com o que se passa nos Estados Unidos e nas áreas periféricas do mundo ocidental, em que se inclui o Brasil. O crime de 11 de setembro demonstrou, na linha de muitos antecedentes históricos, o grau de identificação dos norte-americanos com seu país e com seu governo. As vozes da contracorrente, denunciando a política externa do país, os riscos de uma aventura militar, as ameaças reais ou imaginárias de uma séria restrição às liberdades democráticas são francamente minoritárias.

A esmagadora maioria simboliza sua identidade nacional na profusão das bandeiras, na solidariedade concreta para com as vítimas, na união em torno da figura de Bush, embora este não seja propriamente uma grande figura.

Ao mesmo tempo, há na consciência coletiva do povo americano um sentimento de perplexidade que aflora toda vez que o país é ameaçado: por que nos fazem isso, a nós que procuramos ajudar todas as nações e defendemos a democracia?- parecem dizer.

Essa consciência ingênua tem muito a ver com o grau de identificação dos cidadãos americanos com as ações de seu governo na área da política internacional, embora até mesmo os mapas sejam uma coisa vaga na mente do americano médio.

Na periferia do mundo ocidental, o quadro é outro. Limitando-me aos formadores de opinião e ao público letrado, há na maioria dos países uma reação indignada contra os crimes perpetrados em Nova York e Washington. Mas há também, em círculos nacionalistas e de esquerda- as duas coisas estão entrelaçadas-, um surto de anti-americanismo que aflora em momentos como os que estamos vivendo. Depois de apresentar as condolências de praxe pelo infausto acontecimento, essa gente acaba dizendo, até com certo prazer, que os Estados Unidos colhem o que plantaram.

Não é preciso ser um especialista em política internacional para constatar que a política externa norte-americana, nos últimos 50 anos, encerra muitos erros e barbaridades. Exemplos maiores são a bomba de Hiroshima, a Guerra do Vietnã e o apoio a ditaduras sinistras, no contexto da Guerra Fria.

Só que os Estados Unidos não se reduzem a isso. Neles se encarnam- há outros exemplos, é certo- os princípios do regime democrático, entre os quais se incluem a liberdade de expressão e os direitos individuais.

Não foi por acaso que as pressões da opinião pública tiveram um papel significativo na retirada dos americanos do Vietnã; não é por acaso que vozes profundamente críticas podem expressar-se livremente, em um ambiente trágico como o dos dias que correm.

Os Estados Unidos são um país complexo, contraditório, por vezes assustador. Porém, não é preciso endossar todos os seus procedimentos passados e atuais para se perceber seu papel vital na preservação dos valores da sociedade democrática. Ou será que deveríamos preferir o regime concentracionário soviético, ou lavar as mãos diante da face sinistra dos mensageiros da morte?"

 

"O ovo da serpente", copyright O Estado de S. Paulo, 24/09/01

"A humanidade, no que esta possui de mais digno e elevado, foi atacada pelo fanatismo religioso no atentado ao World Trade Center. Os milhares de vítimas que desapareceram com o desabamento das torres e as pessoas que explodiram com os aviões pilotados por suicidas são um símbolo daquilo que foi atingido: a democracia, os direitos humanos e a liberdade. Não cabe tergiversar sobre esse ponto essencial, sob pena de deslizarmos para as formas potenciais de despotismo, francamente religioso no caso dos fanáticos que perpetuaram esse fato ou político, no caso de setores do PT e intelectuais que festejaram ou relativizaram os fatos ocorridos.

Confirmados a pista afegã e Bin Laden como autores, promotores ou defensores dos atentados, temos atos claros que visam a atingir a civilização ocidental e, mais precisamente, a civilização enquanto tal. Esses grupos são motivados pelo fanatismo religioso e procuram estabelecer a sua própria forma de dominação, o que, aliás, já vêm fazendo nos lugares em que se estabeleceram como poder. A destruição das estátuas de Buda, com o que revela de intolerância com outros cultos, a marca distintiva que devem carregar no corpo as pessoas de outras religiões (hindus, budistas, cristãos), evocando a situação dos judeus sob o nazismo, e a posição das mulheres, relegadas a posições totalmente subalternas e de inferioridade, não tendo o direito de uso de seu próprio corpo nem condições elementares de saúde e de educação, mostram bem o projeto de poder em curso. Identificar tais atos com uma luta antiimperialista significa dar um passo que nem Arafat ousou, demarcando-se dos autores do atentado.

Nesse sentido, não deixa de causar espanto a reação de determinados setores do PT e de intelectuais alinhados com essas posições, que defenderam indiretamente tais ações ou assumiram posições dúbias que conduzem à sua justificação. Há até mesmo rumores de que alguns chegaram a comemorar, outros preferindo uma posição ?politicamente correta?, a saber, uma linha de condenação do atentado e todo um discurso ou artigo de crítica ao ?neoliberalismo? e ao ?imperialismo?. Não nos deixemos iludir: determinadas ?explicações? conduzem a justificações do terror.

O mecanismo é bem conhecido e tem pululado na imprensa, revelando um antiamericanismo provinciano, próprio do renascimento em nosso país de um marxismo dogmático, que almeja recolocar-se como projeto nacional de poder.

Contra o pretenso maniqueísmo de Bush, com a falta de preparo intelectual que lhe é característica ao utilizar a palavra ?cruzada?, vimos brotar um maniqueísmo de outro tipo, que tudo procurar atribuir às mazelas do ?neoliberalismo?. Ou seja, o mal estaria do lado dos Estados Unidos, identificados com uma espécie de ?diabo?, responsável de todos os males atuais da humanidade. Ora, o que se opera com tal raciocínio é a relativização dos fatos.

Há fatos, como o atentado ao World Trade Center, que devem ser condenados sem nenhum ?mas?, sem nenhuma ?relativização?. Há atos condenáveis enquanto tais, que põem em questão aquilo mesmo que consideramos como humanidade.

Qualquer ?mas? põe a humanidade em questão. Na verdade, o propósito de tais formulações é claro: ?explicar? o terror, torná-lo ?compreensível?, pois se enquadraria dentro das reações ou dos efeitos normais da ?dominação neoliberal?. Relativiza-se assim o ocorrido, banalizando o mal.

Tal raciocínio é historicamente conhecido, correspondendo ao desenvolvimento dos germes de uma mentalidade totalitária. Na Alemanha, entre as duas guerras mundiais, os comunistas identificaram a defesa do capitalismo com as posições seja da social-democracia, seja do movimento nazista. Como ambos defendiam o ?capitalismo?, representando o mesmo ?mal?, não havia por que distingui-los. O resultado foi uma das piores formas de dominação violenta conhecidas pela História, com uma afronta direta ao que prezamos como humanidade.

O movimento comunista na Rússia, depois União Soviética, conheceu um destino semelhante. Primeiro, eliminando toda oposição interna, não importando se fossem mencheviques, social-democratas, anarquistas, partidos de direita ou simplesmente companheiros do dia anterior. O argumento era sempre o mesmo: a luta contra o ?capitalismo?. Segundo, munido dessa ideologia, o partido partiu para a conquista do mundo, com o auxílio de intelectuais que tudo ?explicavam? e ?justificavam? em termos de luta antiimperialista ou contra a democracia ?burguesa? e sua ?ideologia? dos direitos humanos.

O processo que estamos presenciando no Brasil apresenta perigosas coincidências com esses precedentes históricos. Se o PT ?moderado?, que parece agora controlar o aparelho do partido, pretende ser uma séria alternativa de poder, deve demarcar-se claramente daquilo que germina em seu próprio seio. Pode ser o ovo da serpente. (Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ph.D. pela Universidade de Paris, é autor, entre outras obras, de Política e Liberdade em Hegel e O que é Democracia E-mail denisrosenfield@terra.com.br)"

    
    
                     
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