Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Alcoolismo sem causa?

M.M.

 

O

Jornal Nacional (13/5/98) mostra estudantes americanos em batalhas com a repressão para reivindicar o direito de encher a cara até cair (mortos, se for o caso). Nada sobre possíveis motivos de inquietação, mal-estar. Parece que os estudantes são, “naturalmente”, animais movidos a selvageria. Vikings (de Hollywood) modernos.

Muita gente douta e talentosa acha mesmo que a humanidade é assim. A Bíblia fornece numerosos testemunhos dessa visão de mundo.

O Jornal Nacional (16/5) mostra um rapaz preso sob acusação de ter matado o pai (dono do Diário do Comércio de Belo Horizonte) e a mãe. Um policial: Dei conselhos para ele não bater nos pais. Um tio: destruído pela droga. No texto lido em off pelo apresentador, nem uma palavra sobre o assunto.

A imagem do drogado diz tudo? Nada.

As coisas simplesmente acontecem. Como fatalidades.

Está encerrado o assunto? Não. A Rede Globo tem uma mágica. Seu papel sociopolítico não se estrutura só no noticiário, claro, ramifica-se capilarmente pela programação. Para o mal e para o bem.

Novela Por Amor, minutos depois da notícia do assassinato a facadas em Belo Horizonte.

Paulo José é alcoólatra, acaba de perder mais uma vez o emprego. Sua mulher condena o alcoolismo. Cena longa, diálogos diretos. O pai diz ser melhor morrer. A filhinha o abraça. Seus olhos azuis choram. Condenação do álcool, que faz perder o emprego e a auto-estima. Nessa cena crucial não se diz por que Orestes bebe.

A mídia – em versão noticiosa ou ficcional – não está hoje à altura de um mundo de exigências morais e novos direitos erguido sobre amargas, pavorosas experiências. Conhecimento não garante nada (o povo alemão era dos mais instruídos quando engendrou a barbárie nazista), mas é requisito indispensável para projetar esperança.

Os publicitários se fazem de desentendidos. Associam bebida a valores irresistíveis. Recusam-se a colaborar na redução de acidentes nas estradas. Na Rodovia dos Bandeirantes, entre São Paulo e Campinas, há um outdoor gigante, monumento de cara-de-pau: “51. Uma boa idéia: usar cinto de segurança”. Para as autoridades rodoviárias, é perfeito.

Voltemos aos estudantes americanos ensandecidos.

Quem sabe a sociedade os assusta? Quem sabe a competição no campus os apavora?

Leiam o que dizem John Burns e John Gatto (ver abaixo remissão para “Perguntas ausentes”).

Leiam Rubem Braga.

Facilito a tarefa. A citação é longa. Mas é Rubem Braga. Música:

“Nascem varões. (….) O que talvez nos perturba um pouco é esse sentimento da continuação do mundo. Esses pequeninos e vagos animais sonolentos que ainda não enxergam, não ouvem, não sabem nada, e quase apenas dormem, cansados do longo trabalho de nascer – ali está o mundo continuando, insistindo na sua peleja e no seu gesto monótono. Nós todos, os homens, lhes daremos nosso recado; eles aprenderão que o céu é azul e as árvores são verdes, que o fogo queima, a água afoga, o automóvel mata, as mulheres são misteriosas e os gaturamos gostam de frutas. Nós lhes ensinaremos muitas coisas, das quais muitas erradas e outras que eles mais tarde verificarão não ter a menor importância. (….) Escondidas nas dobras de bandeiras e flâmulas, nós lhes transmitiremos, discretamente, nossas perplexidades e nosso amor ao vício (….). Muito devagar, e com astúcia, vamos lhes passando todo o peso de nossa longa miséria, todos os volumes inúteis que carregamos sem saber por que, apenas porque nos deram a carregar. Afinal, isto pode ser útil: afinal, isto pode ser verdade; isto deve ser necessário, visto que existe. (….) Agora [os pais] estão com a consciência tranqüila; agora podem começar a nobre tarefa de transmitir ao novo ser o seu vício e a sua malícia, a sua tristeza e o seu desespero, todo o remorso dos pecados que não conseguiram fazer, todo o amargor das renúncias a que foram obrigados. O menino deve ser forte para agüentar a vida – esta vida que lhe deixamos de herança. Deve ser bem forte! Forremos sua alma de chumbo, seu coração de amianto.”

 


M.M.

 

N

o final do texto de Ana Maria Bahiana reproduzido no Entre aspas desta edição lê-se:

“A entrevistadora quer saber se existe algo que [Peter] Hammil lamente em sua vasta carreira – que inclui um dos relatos mais completos do assassinato de Bob Kennedy, um amigo pessoal que Hammil viu ser baleado à distância de meio metro. ‘Ter sido amigo de Bob’, Hammil diz depois de uma longa pausa. ‘Ele era notícia e eu não acredito em jornalistas que são amigos da notícia’.”’

Após a morte de Luís Eduardo Magalhães, jornalistas ostentaram como virtude algo que em tempos idos e vividos era problema, não solução: ligação de amizade com figura da vida pública. No sistema de graduação do universo político brasiliense, conta pontos. Os jornais não disciplinam mais essa esfera de comportamento. E o orgulho corporativo dos jornalistas tornou-se cumplicidade corporativa.

Estamos no capítulo das drogas. O que tem uma coisa a ver com outra?

Ocorre que, quanto mais íntimo de Luís Eduardo o narrador, mais distante passou, por cavalheirismo, de um fator que contribuiu poderosamente para interromper sua vida e sua carreira política: álcool. Falou-se do cigarro, não do álcool. Falou-se de stress, não da maneira como o deputado o enfrentava. Frase do cardiologista Bernardino Tranchesi publicada em IstoÉ (29/4/98): É claro que se ele não tivesse fumado tanto o quadro não teria se agravado. Mas não posso julgá-lo. Ele enfrentou muitos problemas pessoais que levaram a isso.”

Não se explicou direito como o coração de Luís Eduardo sucumbiu. Não se trata de condenação moral. Trata-se de compreender. Ocultar os fatos já é atribuir-lhes conotação negativa. Julgamento feito em petit comité. Como tanta coisa mais que afeta muita gente.

 

LEIA TAMBEM

Perguntas ausentes, entrevista com John Burns

Ana Maria Bahiana, Entre aspas