Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Aloysio Biondi e o anti-jornalismo

Armando Medeiros de Faria (*)

Em setembro de 1992, conversei durante mais de duas horas com o jornalista Aloysio Biondi. Na entrevista, a veemência contra a unanimidade foi o traço mais marcante. Trechos de seu depoimento foram incluídos na dissertação "O jornalismo econômico e a cobertura sobre a privatização (1990/91)", apresentada no mestrado em Comunicação (área de concentração: Jornalismo), junto a Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo.

Além do jornalista ávido por análises independentes, o depoimento trouxe percepções muito acuradas. Sem receio de ser isolado como ranzinza e herético, o jornalista pronunciava profecias "malditas" e ousava duvidar de dogmas. Entre as heresias cometidas por Biondi, naquela conjuntura de euforia com a diminuição do Estado e de absorção acrítica de experiências internacionais, estava o anúncio – concretizado anos depois – da derrocada do modelo vigente nos países chamados "Tigres Asiáticos".

A originalidade de Biondi, em uma imprensa cada vez mais macdonalizada, era reafirmada na atitude diária, teimosa, insistente, de caminhar contra a maré e remar contra ondas à direita, ou à esquerda. "Mesmo no jornal Opinião, ou no governo Geisel, apostei nos assuntos ‘em si’, sem preconceitos e maniqueísmos, à despeito de visões consagradas pela esquerda", revelou.

Em relação ao tratamento da imprensa ao programa de privatizações, tema ainda hoje na agenda pública, Biondi entendia que o tema estava sendo aceito garganta abaixo. "Discordo totalmente da maneira como a privatização foi feita, de uma forma obscurantista, emburrecendo as pessoas, mentindo, sem discussão, sem debate, mas sim com manipulação, de uma maneira sórdida, às custas da sociedade", observou.

A trajetória de Biondi, não isenta de erros de avaliação, revela reiteradas vezes o mérito de seu incansável inconformismo diante das visões consagradas. Para os estudantes de Comunicação, cada vez mais obcecados com as "técnicas", do que propriamente com os "conteúdos", a capacidade analítica e a bagagem informativa foram os traços distintivos do jornalista. Em um de seus últimos trabalhos para a revista Caros Amigos, Biondi anunciava a revisão das macropolíticas econômicas que orientaram o mundo a partir do Consenso de Washington, da década de 80. Chegou a vez do "Consenso de Berlim", sentenciava, lamentando o desinteresse e a omissão da imprensa quanto ao significado humanista desta mudança.

A pesquisa realizada sobre jornalismo econômico revelou que a maior contribuição de Biondi para a imprensa, muitas vezes mal compreendida pelo posicionamento crítico renitente, foi justamente a de enfrentar o formato jornalístico no qual a realidade social é dominada por pessoas, números, circunstâncias e não por estruturas, forças sociais ou processos "naturais" invisíveis, anônimos ou abstratos.

Além disso, ao deplorar a descontinuidade da cobertura jornalística, os textos de Biondi eram exercícios estimulantes no sentido de descobrir as relações entre os acontecimentos. Eram, enfim, uma forma de rejeição ao conceito de notícia como "partícula da realidade". A maioria dos questionamentos e reflexões dessa entrevista mostram um jornalista asfixiado por uma reportagem diária que não exprime a totalidade da vida, "uma condição para o conhecimento filosófico", como afirma o trabalho "Novidade sem mudança", de E. Barbara Phillips (Journal of Communication, vol,26, n.4, 1976).

Baseada em Platão, a mesma autora lembra que a tarefa do teórico é evitar o desmembramento da realidade em pequenos pedaços. "Isso é precisamente o métier do jornalista – apreender a ‘realidade’ em pequenos pedaços. Enquanto o teórico procura as regularidades, os padrões e as leis, o jornalista é atraído pelo contingente. E, enquanto o teórico põe em evidência fatos para explicar as estruturas, o jornalista centra-se no acontecimento, aduzindo fatos no seu próprio interesse", observa.

Ao introduzir conceitos, questionar dados isolados de séries históricas, comparar estatísticas, em vez da sedução pelo fetiche dos números ou da informação capturada na superfície, Biondi buscou afastar-se da natureza do trabalho jornalístico diário, constituído de cortes de uma "realidade" esmiuçada em pedaços, chamados notícias, formato incapaz de levar ao conhecimento. Não se enquadrava, portanto, em uma mídia que se pauta por um jornalismo persecutório, mais inspirada no fácil modelo de gritar "pega ladrão" em vez de investigar estruturas e mecanismos que circundam, de fato, a rapinagem. No caso do ex-secretário da Presidência da República, certamente ele estaria questionando o pano de fundo – as relações Estado e Poder Judiciário, nas quais parece hábito o Executivo pressionar a Justiça para causas favoráveis nas cortes trabalhistas – do que empolgado por possíveis aquisições imobiliárias em Miami.

Cobertura fragmentada

A seguir, uma transcrição de reflexões e críticas de Aloysio Biondi sobre o comportamento da mídia:

"A imprensa dá um tratamento absolutamente fragmentado na área da economia. Dá um fato e abandona, dá um fato e abandona. No fundo, o que está por trás é uma concepção do jornalismo: só vale o que foge da ‘normalidade’."

"Escrevi um artigo, em 1991, procurando tratar disso, lidando com exemplos fora da economia. Citei o caso dos incêndios dos poços de petróleo do Kuwait, quando falaram que demorariam anos para serem extintos. Eram 900 poços e os incêndios demorariam três, quatro, anos para serem apagados. Dali a três dias 200 poços incendiados já estavam sob controle. Eu era editor-geral e enchia o saco do editor de internacional. Faltava também informação: já se dispunha de materiais modernos para apagar incêndios.

"Durante a crise de petróleo em 1979, falou-se exaustivamente no esgotamento das reservas. Esqueceram-se do desenvolvimento de novas técnicas de exploração (fotografias de satélite, novos métodos de perfuração, novo material – ligas de aço – para as sondas etc.). Quer dizer, se você não acompanha perde totalmente a noção do que está de fato ocorrendo.

"A queda da Bolsa de Nova York em 1989. Tinha subido 40% em pouco tempo e, lógico, deveria cair.

"No caso dos ‘Tigres Asiáticos’, se você não acompanha perde a visão adequada. Ao longo do tempo a situação deles começou a se deteriorar. Nas minhas matérias eu indicava: não vamos embarcar nessa desse jeito. Quanto a Thatcher, nós demos a queda dela um mês antes por acompanharmos a economia. E estas informações não chegavam aqui.

"Um caso nosso, o da Previdência. O ministro Marcílio Marques Moreira informava sobre o saldo de caixa e o superávit do Tesouro. A cada informação variava o número. O superávit era muito maior porque a previsão de gastos estava superestimada no orçamento. A arrecadação, por exemplo, de Finsocial e Pis estavam em queda brutal. Mas o Imposto de Renda não, havia crescido 100% em relação a 1991. Como é que o leitor vai saber disto se o jornalista não ficar atento?

"No tempo do Maílson, os melhores jornalistas saíam dizendo sobre o ‘excesso de gastos com pessoal’. O Maílson fez a cabeça de muita gente. Fez acreditar que 80%, 90% do orçamento era consumido nas despesas com funcionalismo, que o Estado não tinha jeito. Ele fez muito a cabeça da sociedade, até com um certo cansaço mostrando que o ‘Estado estava falido’. E todo o mês, o secretário do Tesouro, Luís Antônio Gonçalves dava entrevista e distribuía tabelas. Estava lá: gasto com funcionalismo, e era só você calcular o percentual. Naquele momento os gastos não passavam de 40%. No DCI a gente dava manchete: ‘Novo superávit do Tesouro/Gastos com funcionalismo não passam de 40%’."

Sobre imprensa e jornalismo

"A imprensa, ao fazer oposição, esquece de duvidar das notícias ruins. Sempre duvidava, mas só do que é bom. Com isso o jornalista acaba servindo como inocente útil.

"Acho que o jornalismo econômico está muito repetitivo. As pessoas nem checam. Hoje o pretenso pensamento econômico está repleto de chavões, de uma pretensa visão do momento brasileiro e as coisas se repetem. A sensação que você tem, lendo os artigos na diagonal, é que as matérias se baseiam em generalidades e são muito repetitivas. É raro você sair de um artigo achando que ele provocou alguma reflexão e mudou seu ponto de vista.

"Não adianta entrevistar fonte errada. Por exemplo, ouvir economistas que só olham para o mercado financeiro (consultores e analistas), ou agricultores que só choram.

"Um dos problemas do jornalismo de negócios no Brasil é que não tem nada a ver com a economia brasileira. Exame faz apologia de empresários e não aborda o que seria, de fato, uma ‘história de negócios’. É muito personalista.

"O jornalista tem a ilusão de fazer oposição só porque fica dizendo que a inflação está alta, ou que o déficit público aumentou, etc. E não percebem quem se beneficia desse processo."

Jornalismo de negócios e privatização

"No chamado jornalismo de negócios, a privatização teve um grande avanço. Havia nessa expansão esse ideal privatizante, do espírito empreendedor. Lembro que a justificativa para se falar mais da empresa era a de que seria uma reação contra a ditadura, uma reação ao fato do Estado ser a grande fonte e o lado do empresário estar sendo deixado de lado. Como sempre, você cai no extremo. Algumas justificativas de pauta, do tipo – valorizar o agente econômico – é mais importante saber o que o ‘seo Zé do Botequim’ está fazendo do que o Ministro da Fazenda pensa acabam caindo no outro extremo. O ideal é o equilíbrio: ter a vida empresarial e a análise de política econômica."

Vícios e problemas no jornalismo econômico

"Ficou mais rara a preocupação, a dúvida com a versão dos dois lados, com a pesquisa, com a memória. Causas? Não sei. Acho que a ditadura – em relação aos formadores de opinião em geral – era um agente provocador, que mobilizava contra. Numa conversa com Cristovam Buarque. em Brasília, há uns dois anos, ele afirmava que as pessoas tinham perdido certos interesses coletivos e assumido posturas mais individualistas. Ele lamentava a perda da militância tradicional. Não é nada de querer ‘guerreiros’, mas parece que está em desuso a própria necessidade de tentar mudanças."

Fontes e consultorias

"Em geral, as empresas de consultoria foram formadas por ex-ministros e economistas. Eles continuam sendo ouvidos individualmente. É preciso usar as consultorias de forma correta. Não se deve dar muita importância a eles, e sim selecionar o tipo de informações que geram. Pesquisas por exemplo. É preciso acompanhar, para ver se a tendência aumentou ou diminuiu."

Jornalismo engajado

"Você não ajuda as pessoas com o discurso conservador do Roberto Campos nem com o discurso maniqueísta do Menegueli, que é insuportável. Quando ele criticou a adoção do reajuste semestral, dizendo que era para esvaziar o movimento sindical, eu escrevi na época falando que se o movimento sindical precisa de derrota para sobreviver, que avanço histórico este movimento sindical está fazendo?"

(*) Gerente de Comunicação Externa do Banco do Brasil e professor do
Uniceub-Brasília-DF



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