Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Ana Maria Bahiana

GUERRA NA MÍDIA

"Hollywood vai à guerra para defender os EUA", copyright O Globo, 18/11/01

"Domingo passado um grupo seleto de 40 altíssimos executivos de Hollywood teve uma manhã bastante diferente. Em vez de capuccinos e croissants interrompidos por telefonemas de seu pessoal no departamento de distribuição – afinal, domingo é quando se tabulam os resultados dos lançamentos da sexta-feira anterior – as cabeças coroadas reuniram-se no elegante Hotel Peninsula, em Beverly Hills, para, ao longo de uma hora e meia de conversa com Karl Rove, membro especial do gabinete de George W. Bush, serem, literalmente, convocados a servir a pátria.

E todos responderam com um entusiasmado – embora vago – ?sim?.

– Há muito tempo sentimos vontade de contribuir com o nosso talento – disse ao GLOBO Sherry Lansing, presidente da Paramount Pictures.

O que Rove pediu foi que Hollywood participasse do esforço da guerra contra o terror. O esforço deveria cobrir três áreas: divulgação do conceito de ?guerra ao terrorismo? nos EUA e no mundo, apoio às tropas mobilizadas e manutenção do moral do público americano que, bombardeado com uma sucessão de tragédias e a recessão econômica, anda se retraindo do cumprimento de seu mais sagrado dever: consumir.

Num esforço paralelo, o Comitê de Relações Internacionais do Congresso está lançando sua própria rede no mar de Hollywood, convidando executivos, roteiristas e produtores do cinema, TV e publicidade para mesas-redondas, em Washington. Nas palavras de Sam Stratman, secretário-executivo do comitê: ?Sabemos que o mundo forma a maior parte das suas impressões sobre os EUA através dos filmes.? Ou, como disse o presidente do comitê, o deputado Henry Hyde, ?como é que o país que inventou Hollywood consegue ter uma imagem tão ruim no exterior??

A preocupação torna-se ainda mais relevante diante do fato irônico de que, nos países islâmicos, Hollywood é responsável pelos maiores sucessos de bilheteria. Tom Cruise, Kevin Costner e Jim Carrey são campeões de popularidade. A estréia recente de ?A mexicana?, com Julia Roberts e Brad Pitt, bateu todos os recordes de bilheteria na Turquia.

Leonardo di Caprio e ?Titanic? são tão populares no Afeganistão que o Talibã punia com prisão os barbeiros que cortavam os cabelos dos jovens fãs à moda do herói do filme de James Cameron. Segundo uma pesquisa da revista ?Variety?, os filmes de maior bilheteria dos últimos 15 anos no Oriente Médio são, em ordem decrescente, ?Titanic?, ?A Máscara de Zorro? e ?Godzilla?.

As primeiras respostas são simples. Executivos já se comprometeram a produzir uma série de anúncios de TV com celebridades abordando o esforço contra o terrorismo; e, respondendo ao apelo mandado por e-mail por soldados a bordo de porta-aviões no Golfo Pérsico, enviar os últimos lançamentos.

Uma peça importante na Segunda Guerra

Mas a série de encontros não é nem única nem extraordinária. Hollywood foi, afinal, uma peça fundamental do esforço de guerra a partir de Pearl Harbour – das visitas de celebridades aos quartéis à produção de filmes para levantar o moral e espalhar a ?politica da boa vizinhança?.

E, desde o fatídico 11 de setembro, a Casa Branca já havia enviado emissários a Hollywood para abrir o diálogo com a indústria cinematográfica. Mas os dois emissários ao primeiro encontro saíram de Los Angeles com as ?mãos abanando?, escreveu Peter Bart, o controvertido editor da revista ?Variety?.

– Hollywood lê sempre a palavra ?propaganda? em qualquer iniciativa do governo – disse um produtor. – E nada pior para os negócios do que filmes de propaganda.

O que torna os últimos encontros notáveis é que desta vez a resposta tenha sido um tão homogêneo ?sim?. Hollywood e Washington são duas entidades inteiramente distintas, separadas e quase sempre às turras. Ao contrário da Europa (e do Brasil), o cinema nos EUA não depende do Estado – é uma indústria não-regulamentada, na qual o único código explícito é auto-imposto: a classificação etária criada em 1969, praticada, voluntariamente, pelos distribuidores.

Além disso, Hollywood é tradicionalmente democrata, e desconfia de tudo o que é republicano. Um fato irônico, considerando que um de seus mais notáveis canastrões acabou presidente exatamente pelo Partido Republicano.

?O subtexto do encontro era, claramente, uma aproximação entre a turma de Bush e a turma de Hollywood, que ainda sente saudade de Bill Clinton?, escreveu Peter Bart a respeito da primeira sondagem. ?E o encontro teria sido mais produtivo se a turma de Bush tivesse dito claramente o que queria.?

Em todos os contatos, até agora, Washington tem enfatizado sua determinação em não ditar regras de como filmes ou programas de TV devem ser, e Hollywood tem ressaltado que todas as suas idéias e contribuições são espontâneas. Mas, como disse o produtor e roteirista John Romano ao Comitê do Congresso, ?o conteúdo é fundamental? para que Hollywood opere uma reviravolta na opinião pública. Muita gente há de argumentar que, sem qualquer interferência de Washington, Hollywood já vem fazendo propaganda com seus filmes aparentemente apolíticos.

A diferença é que não foram ideais ou crises que motivaram tais escolhas, mas o velho parâmetro da indústria americana: o vil metal. Filmes de ação em que o herói (americano) salva o mundo do vilão (em geral, estrangeiro) vendem ingressos em quantidades – ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, reforçam, no exterior, a imagem de uma América intervencionista, militarizada e hostil.

Todos foram afetados, diz David Lynch

Como sair deste impasse? Em seu depoimento ao Congresso, John Romano ofereceu sugestões interessantes, mas que talvez não tenham sido as que os congressistas da ala ?gavião? gostariam de ouvir: produzir conteúdo de qualidade superior, tanto para o cinema quanto para TV; tornar o conteúdo de alto nível facilmente acessível aos mercados exteriores; ?abraçar a diversidade étnica e cultural dos EUA?, mostrando diferentes pontos de vista, sotaques e tipos físicos em filmes e programas de TV; incorporar ?temas, histórias e problemas internacionais? nas produções; e, finalmente, ?utilizar em larga escala o talento internacional, especialmente atores, diretores e roteiristas de outros países.?

– Somos capazes de fazer filmes de alto conteúdo, com ideais mais elevados – diz ao GLOBO o produtor, diretor e roteirista Lawrence Kasdan.

– Todo cineasta, toda pessoa criativa deste país foi afetado pelo 11 de setembro – diz o diretor David Lynch. – Podemos responder com ignorância ou com inteligência. Depende exclusivamente de nós."

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"Parceria fértil entre as telas e a inteligência", copyright O Globo, 18/11/01

"O tango entre Hollywood e Washington já tem, na verdade, alguns pares entrelaçados, embora de modo surpreendente. Alguns produtores há muito têm livre trânsito nos altos escalões das Forças Armadas americanas, recebendo farto acesso a informações, locações e equipamento fora do alcance da maioria dos civis, dentro ou fora de Hollywood. Em troca desta generosa consultoria, seus filmes são sempre pró-Forças Armadas, mesmo quando, teoricamente, abordam conflitos internos.

Nesta elite de favoritos está a dupla Mace Neufeld e Robert Rehme (?Perigo real e imediato?, ?Jogos patrióticos?) e Jerry Bruckheimer (?Top Gun?, ?Pearl Harbour?). Segundo um dos consultores militares de Bruckheimer, ?Top Gun? foi ?a melhor propaganda que o alistamento militar americano jamais poderia ter.?

A CIA , o Serviço Secreto e o FBI mantêm a mesma ?parceria? com produtores, embora em escala mais restrita. O FBI colaborou ativamente em ?O silêncio dos inocentes?, de Jonathan Demme, permitindo inclusive que Jodie Foster tivesse acesso ao programa de treinamento de agentes em sua secretíssima sede de Quantico, Virginia. A CIA forneceu, segundo o diretor Tony Scott, informações valiosíssimas para a realização de ?Inimigo do Estado?, além de assessorar Harrison Ford na composição de seu personagem (um analista da CIA) em ?Perigo real e imediato? e ?Jogos patrióticos? (para o qual também abriu as portas de seu QG).

Roteirista e pesquisador dá palestras para espiões

A mais interessante relação entre a CIA e um civil da indústria cinematográfica é a que une a agência e o escritor, roteirista e pesquisador californiano Danny Biederman. Fã de filmes de espionagem desde garoto e autor de vários livros a respeito, Biederman se viu, dois anos atrás, convocado a comparecer à sede da CIA, na Virginia, para dar uma série de palestras a espiões de verdade.

– Eles tinham uma enorme curiosidade sobre o mundo fictício da espionagem, porque muitas vezes a ficção antecipa ou até inspira a realidade – diz Biederman.

Foi o início de uma estreita colaboração, que deu ao escritor um acesso incomparável a um mundo muito mais complexo que aquele de seus sonhos de garoto:

– Só posso dizer que já prestei consultoria em vários casos reais. Mais que isso, se eu lhe contar, você não viveria além desta conversa."

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"O dia em que Rambo libertou o Afeganistão", copyright O Globo, 18/11/01

"Rambo e Osama bin Laden já foram amigos, parceiros e companheiros de luta. O ano era 1988, os russos ainda eram o inimigo e os afegãos – entre eles as milícias árabes criadas por um jovem, rico e entusiasmado Osama bin Laden — recebiam o apoio do exército e da inteligência americanas no que era tido como uma ?luta pela liberdade?.

Para os produtores de ?Rambo 3? – a esperta dupla Mario Kassar e Andrew Vajna, donos dos direitos da série – não havia cenário ou tema melhor para uma terceira aventura do musculoso herói lançado seis anos antes e que, em pouco tempo, havia se tornado tanto um símbolo do lado mais jingoísta e agressivo dos Estados Unidos quanto uma verdadeira fábrica de dinheiro, rendendo mais de US$ 200 milhões pelo mundo afora com seus dois primeiros filmes.

No roteiro de ?Rambo 3? – escrito a quatro mãos por David Morrell e o próprio Stallone – John Rambo, veterano problemático da guerra do Vietnã, tinha sua aposentadoria (num mosteiro budista) interrompida pela missão de resgatar seu velho amigo, o coronel Trautman e, ao mesmo tempo, servir de reforço militar a um grupo de mujahedin islâmicos, combatendo os invasores russos nas mesmas montanhas desérticas do Afeganistão (filmadas, na maior parte, no deserto da Califórnia, mas com algumas cenas rodadas em Cabul e no Paquistão) onde, hoje, os bombardeiros de George W. Bush tentam aniquilar seus sucessores.

Ideologia? Nenhuma. ?Estamos sempre buscando novos elementos para incrementar a série?, Stallone disse na época. ?E quando soubemos do conflito no Afeganistão achamos que seria um ambiente perfeito para John Rambo.?

Stallone estava certo: ?Rambo 3? acabou rendendo US$ 190 milhões pelo mundo afora.

Um detalhe interessante: há quatro anos Stallone vem dizendo, publicamente, que ?está mais do que na hora de Rambo voltar?, e que isto só não aconteceu porque ?ainda não surgiu o roteiro certo com bons elementos.?

Que tal ?De volta a Cabul??"