Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Anatole Kaletsky

COBERTURA DO TERROR

"A necessidade patológica de exaltar o inimigo", copyright O Estado de S. Paulo / The Times, 23/09/01

"Todos sabemos que a primeira vítima em uma guerra é a verdade.

Contudo, a ?guerra contra o terrorismo? declarada pelo presidente George W. Bush deu a esse velho clichê uma conotação até então desconhecida, e potencialmente perigosa. Nos últimos dez dias, emoção, histeria e informações imprecisas baniram quase que completamente dos jornais e das emissoras de rádio e televisão os fatos, os números e as estimativas mais ponderadas. Essa irrupção de irracionalidade era esperada, não só porque corresponde à reação clássica observada em períodos de guerra, mas sobretudo porque o pesadelo de 11 de setembro, a que tantos de nós assistimos ao vivo, deixou-nos traumatizados psicologicamente. O mais surpreendente e alarmante em tudo isso é a direção que tomou o inconsciente coletivo de todo mundo.

Em vez da confiança extremada e orgulhosa e do patriotismo desafiador que normalmente distorcem o discurso político nesses primeiros momentos de grave confrontação militar, a maior parte das notícias e análises sobre o conflito iminente tem conduzido a opinião pública exatamente na direção oposta, por meio de informações pouco exatas e derrotistas, de uma autoflagelação moralmente duvidosa, de exageros sobre a invencibilidade do inimigo e de narrativas glamurosas sobre seus métodos e objetivos.

Ao assistir à televisão e ler os jornais desde o início da crise, acode à minha mente com uma intensidade cada vez maior uma estranha patologia mental conhecida como síndrome de Estocolmo, cuja vítima mais famosa foi a herdeira americana Patty Hearst. Trata-se de uma reviravolta psicológica apavorante em que as vítimas da brutalidade de gângsteres assassinos tornam-se, por vezes, admiradoras fanáticas daqueles que as aterrorizaram e as fizeram reféns ou, como no caso dos janízaros otomanos, dos que massacraram suas famílias diante de seus olhos.

Que outra interpretação poderia haver para o tipo de análise que se tornou corriqueira ao tratar da confrontação iminente? Proposições profundamente derrotistas são acolhidas como verdades até pelos mais ardentes defensores da retaliação militar. Todavia, todas elas são, no máximo, parcialmente verdadeiras. Observe o modo como se desenvolve uma argumentação típica:

Em primeiro lugar, diz-se que o inimigo nesta guerra é invisível e, portanto, impossível de derrotar. Em segundo lugar, a invisibilidade sinistra da ameaça trazida pelo terror teria impregnado a América de uma fúria paranóica. Já que não podem ?capturar? os terroristas, os EUA estão agora dispostos a empreender uma represália racista e antiislâmica que culminará com a morte de milhares de pobres e de pessoas indefesas. Essa campanha irracional gerará, inevitavelmente, um terror ainda maior, contribuindo assim para o progresso da causa terrorista. Se a represália for dirigida contra o Afeganistão, prossegue o raciocínio, as conseqüências serão ainda mais funestas. Os afegãos são guerreiros conhecidos por sua crueldade sem paralelo no mundo, e jamais foram derrotados em uma guerra. O país tem sido sepultura de potências desde a época de Alexandre, o Grande.

Além disso, de nada adiantaria atacar o Afeganistão, mesmo que não houvesse um banho de sangue.

Há, sem dúvida, um pouco de verdade em cada uma dessas afirmações. Ora, havia também um pouco de verdade nas acusações de Hitler aos banqueiros judeus, que se enriqueciam à custa dos trabalhadores alemães; e na desconfiança de Stalin em relação aos camponeses kulaks, a quem acusava de esconderem o pão. Esses grãos de verdade, entretanto, não justificam o extermínio dos judeus e tampouco o massacre e a morte por inanição a que foram condenados milhões de ucranianos.

As meias-verdades sobre a batalha iminente veiculadas pela propaganda não devem ser usadas como justificativa para uma política inconsistente, que pode se revelar tão perigosa e destrutiva para os valores humanitários quanto o processo de pacificação dos anos 30.

É preciso, portanto, que analisemos ponto por ponto o argumento da derrota.

Não há inimigos invisíveis e invencíveis nesta guerra. Os seqüestradores suicidas já foram identificados, vários suspeitos de cumplicidade foram presos em diferentes países e o envolvimento direto de Osama bin Laden nos ataques anteriores a alvos americanos, até mesmo ao World Trade Center, já está comprovado. Claro que poderá haver outras atrocidades no futuro, mesmo depois da captura desses terroristas e do desmantelamento de sua rede de terror. Contudo, ninguém acha que a polícia deva parar de perseguir os criminosos porque, afinal de contas, alguns sempre escaparão, enquanto outros assassinos em potencial nascem todos os dias.

Com referência à reação americana, longe de castigar e de ameaçar milhares de pessoas inocentes, ou de se deixar trair por uma fúria insana, o governo Bush tem procurado pautar-se por um objetivo muito sensato e com grandes possibilidades de vir a concretizar-se. Não há nenhuma indicação de que os EUA tenham a intenção de lançar bombas sobre civis no Afeganistão, ou em qualquer outro país, em ?retaliação? ao massacre perpetrado em Nova York. Em vez de retaliação e represálias, o governo americano parece ter estipulado dois objetivos positivos e precisos: capturar ou matar Bin Laden e outros terroristas conhecidos; e ?pôr fim a Estados? que sabidamente patrocinam ou apóiam os terroristas.

Nenhuma pessoa sensata se oporia à primeira aspiração, embora talvez seja difícil executá-la. É o segundo objetivo, de ?pôr fim? aos Estados terroristas, que parece ter dado ondas de calafrios no mundo todo. A frase ?pôr fim a Estados?, usada deliberadamente na segunda-feira por Paul Wolfowitz, subsecretário americano de Defesa, pode efetivamente evocar temores apocalípticos de que se produzam enormes quantidades de civis feridos e bombardeios arrasadores.

Mas será que é isso de fato o que a América pretende? Parece-me muito mais provável que Wolfowitz estivesse escolhendo as palavras com bastante cuidado quando falou em pôr fim a Estados terroristas e não a nações ou países.

Longe de planejar a eliminação de países ou de subjugar populações inteiras, os Estados Unidos têm um objetivo muito mais específico e legítimo: a destruição dos regimes terroristas, e não dos povos que habitam esses países.

Em uma guerra convencional, a distinção entre o Estado e as pessoas a ele sujeitas pode parecer simples digressão hipócrita. Contudo, em uma confrontação com o Afeganistão, a distinção entre o povo afegão, arrasado e empobrecido, e os monstruosos opressores do Taleban não poderia ser mais clara. Para mim, a característica mais surpreendente da falsa guerra que vem sendo alardeada nos últimos dez dias pela mídia de todo o mundo é o descaso para com os horrores que os sádicos do Taleban, em seu fanatismo, têm infligido à população do Afeganistão.

O que o Taleban fez nos últimos cinco anos ao povo do Afeganistão, principalmente a todas as mulheres, mas também a amplas minorias étnicas, a milhões de camponeses hoje sem terra e a pequenos bolsões de não-muçulmanos, pode ser classificado como um dos maiores crimes já cometidos contra a humanidade. Se um governo qualquer do mundo tentasse esmagar um grupo racial de africanos ou de judeus com as mesmas leis opressivas, humilhantes e assassinas impostas pelo Taleban aos afegãos, o mundo civilizado há muito teria tomado as medidas mais extremas possíveis, provavelmente com interferência militar, para eliminar um regime dessa espécie.

Se o pressuposto moral de aniquilação do Taleban é irrefutável, o que fazer para que isso aconteça? Será que o Afeganistão é verdadeiramente um alvo militar inatingível, detentor de um recorde de vitórias sobre as potências estrangeiras impossível de ser quebrado? Uma vez mais, a crença generalizada parece estar baseada em uma série de meias-verdades. Se o objetivo da América fosse conquistar de uma vez por todas o Afeganistão e subjugar seu povo, então a história, a geografia e a bravura dos soldados afegãos certamente militariam contra isso.

No entanto, se o objetivo consiste simplesmente em desestabilizar e derrubar o regime do Taleban, a história e a geografia estão a favor dos EUA. O país sempre foi dividido etnicamente e raras vezes teve um governo central estável, sendo em grande medida liderado por magnatas desonestos motivados muito mais pelo butim e pelo dinheiro do que pelo orgulho nacional ou pelo zelo religioso. A história do Afeganistão é uma série de lutas entre déspotas, rebeliões internas, golpes de Estado e períodos de vassalagem a potências vizinhas.

Dado o infortúnio sem precedentes que o Taleban impôs ao país (há mais fugitivos do Afeganistão do que de qualquer outro país, até mesmo do Congo e de Ruanda), é bem possível que muitos afegãos acolhessem de bom grado a intervenção cuidadosamente planejada de forças americanas e européias como uma libertação em potencial, e não como uma invasão por uma potência conquistadora.

O terrorismo talvez seja uma doença mental que nunca será totalmente erradicada; no entanto, a América e o mundo civilizado certamente podem e devem derrubar o Taleban. Este seria um recado inesquecível para os líderes de outros regimes terroristas."

 

"Repetições e efeitos especiais corroem credibilidade da TV", copyright O Estado de S. Paulo / The Christian Science Monitor, 23/09/01

"A cobertura televisiva dos fatos do dia 11 e sua seqüência tem sido profundamente complicada. Ao mesmo tempo que, de modo apropriado, as principais redes cancelaram comerciais, acabaram se enquadrando nas convenções do entretenimento que exploram conteúdos dramáticos da tragédia.

O primeiro dia de cobertura foi de noticiário em seu ponto ótimo: tomadas aéreas, sem coregorafia, que ecoaram os despachos radiofônicos feitos por Edward R. Murrow na 2.? Guerra. Pegos de surpresa com um caso urgente, de gravidade sem precedente, repórteres e âncoras estiveram à altura da ocasião.

Na confusão do primeiro dia, a cobertura parecia real, vasculhando tudo sem filtro. Mesmo a freqüente repetição de vídeos dos ataques e a gravação de diferentes ângulos estava além da reprovação.No segundo dia, porém, as redes estavam preparando exibições em câmara lenta, com imagens dos ataques alteradas, adaptando-as à música. A Fox News usa uma imagem da Torre Norte se despedaçando como pano de fundo para sua cobertura. A imagem é tingida de azul e melhorada para parecer granulada. Vinculada à música, faz lembrar o tipo de vigilância rudimentar que se pode ver num reality show ou num tablóide. Por que eles criaram e usaram essas gravações? Pela mesma razão que muitas TVs noticiosas repetidamente levaram ao ar as mesmas fotos de Chandra Levy e Gary Condit. Voyeurismo diverte. É suficiente que a TV tenha reprisado as tragédias incontáveis vezes. Essas reprises podem ter sido importantes no primeiro dia. E ainda são notícia dias depois? Ou são abusivas?

Virtualmente, todas as redes têm permitido que o potencial artístico dos efeitos de pós-produção corroa a credibilidade jornalística. A NBC News, por exemplo, convida testemunhas oculares para reviver os maiores momentos da semana retrasada ao som de uma trilha comovente – como numa recapitulação esportiva. Outras redes têm preparado belas montagens que parecem um filme de guerra. Ninguém precisa olhar com atenção para perceber o tipo de edição que altera os ângulos e o ritmo da gravação. Aparentemente, o caos dos fatos reais não é suficiente para os americanos acostumados com o frenesi fabricado da MTV.

As redes de notícias também foram rápidas em usar títulos dramáticos para definir as coberturas. CNN, Fox, NBC, CBS e ABC, todas vieram com esses títulos banais, como ?A nova guerra da América?. Isso tem pouca importância de notícia. Especialistas aparecendo na cobertura ?A nova guerra da América?, da CNN, podem achar mais difícil discutir se os EUA estão em guerra, se a guerra é ?nova? e se devemos mesmo ir à guerra com declarações de ?guerra? na tela. Por que ligar um lema às notícias, quando isso pode limitar o debate? As redes realmente precisam de hipérbole e obviedades para diferenciar uma cobertura praticamente idêntica às demais, como se estivessem anunciando marcas de batata frita?

É um desafio para o jornalismo, numa época de efeitos especiais fáceis, fazer distinções entre notícia e entretenimento. O jornalismo televisivo falhou ao deparar com esse desafio. Não é tempo para que as TVs transformem noticiários em entretenimento. Muito possivelmente, o futuro da nação está em jogo. Livrem-se da música, das imagens digitalizadas em câmera lenta, das infindáveis reprises e dos slogans patrioteiros. Tudo isso é um insulto para os que morreram dia 11 e para todos nós. (Michael M. Epstein é advogado, estudioso de comunicações, professor na Southwestern Law School e diretor do National Entertainment e Media Law Institute)"

 

"Televisão americana entra na etapa do autopoliciamento", copyright O Estado de S. Paulo, 23/09/01

"A poeira nos escombros em Nova York mal baixou e a TV mundial parece já ter entrado no esforço de guerra. Nada do veto às cenas fortes de gente se jogando pelas janelas do World Trade Center. Canais, programas, âncoras e repórteres entraram em nova etapa: a do autopoliciamento.

Segundos depois de concluir seu pronunciamento na quinta-feira, George W. Bush já era chamado de ?o estadista? e ?o homem? pelo âncora Tom Brokaw, da NBC. Ao seu lado, o roteirista Stephen Ambrose, autor de Resgate do Soldado Ryan e de Band of Brothers, uma superprodução do canal HBO sobre a segunda guerra mundial. O desempenho da série, produzida por Tom Hanks e Steven Spielberg, está sendo citado pela imprensa americana como um símbolo de como os atentados afetaram a programação da TV. Lançada antes dos ataques terroristas, Band of Brothers perdeu um terço de sua audiência em uma semana.

Comédias e dramas sobre terrorismo ficaram em suspenso nos EUA. A idéia geral é que não há como fazer piada ou repetir na ficção o terror da realidade. The Daily Show with John Stewart foi suspenso até amanhã. A comédia That?s My Bush, um Casseta & Planeta antirepublicano feito pelo canal pago Comedy Central saiu do ar indefinidamente.

Revistas como E! Tonight, da ABC, foram canceladas, com exce&ccccedil;ão do Acess Hollywood, da NBC. Nela, Arnold Schwarzenegger foi entrevistado quarta-feira. O ator-atleta comentou o caos em Nova York. Mas em nenhum momento foi levado a falar de seu filme Collateral Damage, adiado indefinidamente porque seu personagem vê um terrorista explodir o prédio onde sua mulher trabalha.

No Late Show With David Letterman, o respeitado Dan Rather, da CBS News, chorava ombro a ombro com o apresentador, terça-feira, quando disse: ?Os terroristas têm inveja de nosso sucesso?. A frase, espantosa para um profissional da informação do porte de Rather, repete a leitura hegemônica, em que a CNN cumpre papel de diapasão e matriz de imagens."

    
    
                     
Mande-nos seu comentário