Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Ancelmo Gois

DÍVIDAS DO INSS

“Lista do INSS”, copyright O Globo, 16/05/03

“A Dataprev teve que refazer, em cima da hora, a lista de devedores do INSS. O jornal ?Gazeta Mercantil? conseguiu uma liminar, proibindo que seu nome apareça na lista de devedores da Previdência Social.”

“Lista da Previdência e o dever do sigilo”, copyright Folha de S. Paulo, 17/05/03

“A longa lista de supostos devedores da Previdência Social, divulgada com escândalo pelo governo, propõe uma série de questões, a primeira das quais é de natureza histórica: os governos militares, quando Jair Soares era ministro, também se serviram desse expediente condenável. Não foi um bom modelo para o governo atual pela circunstância histórica e também porque representa violação de leis vigentes.

O leitor deve saber que os servidores públicos da União são submetidos a um longo rol de deveres funcionais. Um deles é o de ?guardar sigilo sobre assunto da repartição?. Outro é o de atender com presteza ao público em geral, prestando as informações requeridas, ressalvadas as protegidas por sigilo. Se o leitor quiser conferir, vá ao artigo 116 da lei n? 8.112/90. Há várias penas previstas para os infratores, estando no artigo 132 a de demissão, aplicada nos casos de crime contra a administração pública e no caso de revelar segredo do qual se apropriou em razão do cargo.

Além dessas normas específicas, há restrições legais à revelação de segredos atinentes aos contribuintes, sendo de lembrar apenas mais uma, a do Código Tributário Nacional, no artigo 198, sem prejuízo do disposto na legislação criminal. Escrevi para Malheiros Editores o livro ?Segredos Profissionais?, em que examino os casos de imposição do sigilo e suas consequências no plano do direito público e do direito privado. Se as empresas tiverem retido importâncias do salário de seus empregados e não as tiverem repassado aos cofres previdenciários, seus administradores também terão cometido crime, este de apropriação indébita, mas, ainda assim, o segredo deve ser respeitado. A lista de normas legais é extensa e cansativa, mas a pessoa jurídica autuada pela Previdência Social que apresente defesa (muitas estão nessa situação) não pode ser incluída em lista de devedores (supondo-se que esta fosse aceitável) até que os recursos opostos à autuação sejam julgados.

No caso das empresas aéreas, que encabeçam a lista, há um lado que, se não for legal (pois não conheço os processos), é, pelo menos, moral. Considerando que o presidente Lula tem uma história de defesa dos bens morais, sabe-se que as empresas aéreas afirmam-se credoras do poder público, em razão do que quiseram fazer a compensação. Compensação, para o Direito, é um modo de extinguir ou absorver obrigações recíprocas entre pessoas que são, ao mesmo tempo, credoras e devedoras. Exemplo: José é credor de R$ 200 de Pedro e deve R$ 100 a Pedro. Compensam R$ 100 e Pedro fica devedor dos R$ 100 de diferença. Embora haja alegações de que a lei impede a compensação, expor os supostos devedores ao escândalo público é ilegalidade gravemente prejudicial em si mesma. O credor particular não pode expor seu devedor ao ridículo. Um governo sério também não deveria ter esse comportamento, especialmente se levarmos em conta que o artigo 325 do Código Penal considera crime revelar ou facilitar a revelação de fato do qual o servidor tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo. A pena é de detenção de seis meses a dois anos. Supondo-se que a conduta dos servidores da Previdência se enquadrasse na tipificação do artigo 325, conforme fosse apurado, o processo criminal seria necessário. Independentemente desse lado, o fato é que listas publicadas não facilitaram a vida da ditadura. Não facilitarão a vida de Lula.”

“A lista negra da Previdência”, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 17/05/03

“Há alguns anos alguém inventou um sistema, ao mesmo tempo simples e original, de forçar pessoas a pagar o que estavam devendo: postava-se à porta da casa ou da firma do devedor um funcionário vestido de roupa vermelha, dos pés à cabeça, com a palavra ?cobrador? escrita em letras garrafais, às suas costas. Nem é preciso lembrar que a Justiça logo proibiu essa forma de cobrança, gritantemente difamatória. Mas esta seria apenas a exacerbação de uma estratégia – ou seja, a da pressão exercida sobre o devedor, por meio do comprometimento de sua imagem pública – que de várias outras formas tem sido utilizada, como alternativa às dificuldades e morosidades inerentes à cobrança judicial. No fundo é a ameaça: quem não pagar será difamado como mau pagador e com isso perderá o crédito na praça.

Está dentro desse princípio a lista negra da Previdência, divulgada pelo governo, contendo nada menos do que 176.790 devedores do INSS, com dívida global de R$ 65,4 bilhões – volume, realmente, impressionante. Fica-se a imaginar o quanto de problemas crônicos enfrentados por nosso sistema previdenciário deixaria de existir, ou, pelo menos, seria substancialmente minorado, se não houvesse essa astronômica inadimplência. Mas exagera em meia verdade o ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, em dar a entender que é a primeira vez que é divulgado o rol dos inadimplentes do INSS – o que já foi feito algumas vezes, em governos anteriores. O ministro tem razão apenas em dizer que não foi cumprida pelos governos anteriores (e nem pelo atual, pois ainda não houve tempo para isso) a exigência da Lei 8.212, de 1991, que obriga o INSS a publicar, trimestralmente, a lista de seus devedores.

Apesar de a lista dos devedores previdenciários ser encabeçada por empresas de setores que há tempos enfrentam sabidas dificuldades financeiras – como o das companhias aéreas -, razão por que nisso não causou maiores surpresas, chama atenção a presença, nesse rol, de empresas de notória solidez econômico-financeira e que têm se mantido muito bem, em expansão, por sobre todas as crises – e aí se incluem, por exemplo, o maior banco privado do País – o Bradesco -, a estatal do petróleo e uma das maiores do mundo no setor – a Petrobrás -, uma das maiores e mais bem-sucedidas siderúrgicas – a Companhia Vale do Rio Doce – e outras insuspeitadas. Quanto à razão dessa inclusão há sérias divergências jurídicas – e só isso bastaria, a nosso ver, para evitá-la, dado o efeito profundamente negativo, em termos de imagem pública (e, em alguns casos, de crédito necessário à administração dos negócios das companhias) de uma divulgação dessa espécie.

Muitos dos incluídos na lista não reconhecem o débito apontado porque o estão contestando em juízo – e até o julgamento final não há como considerá-las inadimplentes da Previdência. A Daimler Chrysler, por exemplo, garante que todos os seus compromissos previdenciários estão ?absolutamente pagos?, exibe certidão em que a Previdência reconhece a existência de pendências judiciais – informando que isso não impede a emissão de certidão ?com efeitos de negativa? – graças ao que continua ?fornecedora do governo federal?. A Perdigão também não reconhece o débito e possui certidões negativas fornecidas pelo INSS. É que essa empresa contesta a avaliação dos técnicos do INSS, para os quais a transferência de matrizes para criação de animais num sistema integrado caracteriza venda e deveria ser tributada. Os advogados da empresa recorreram à Justiça e fizeram depósitos judiciais:

?Temos as certidões, demos as garantias e não aceitamos a classificação de inadimplentes.? E há inúmeros outros casos semelhantes.

De fato, não há como escapar à exigência de se manter sigilo sobre as cobranças sub judice, e mesmo sobre aquelas que ainda tramitam nas instâncias administrativas do Poder arrecadador (federal, estadual ou municipal), pois a divulgação prévia de nomes ?condenados? (e ainda não julgados) pode implicar um claro prejulgamento, com todas as conseqüências difamatórias que este implica, em prejuízo dos que, ao final, poderão obter absolvição ou o reconhecimento de algum tipo de pretensão, inicialmente não acolhida pelo Fisco.”