Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Aparência em lugar da essência

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MÍDIA & ELEIÇÕE$

Muniz Sodré (*)

Pela imprensa ficamos sabendo que 60% do eleitorado brasileiro têm apenas o primeiro grau escolar incompleto. A baixa escolaridade desses a quem cabe a escolha dos legisladores e governantes sempre foi motivo de preocupações, mas se torna um fato decididamente alarmante em face das novas configurações políticas e eleitorais, em que a presença da mídia eletrônica concorre fortemente para a ambientação de um novo tipo de sociabilidade.

É que a mídia televisiva tende a atuar com mais força de influência onde são altas as taxas de analfabetismo ou, então, onde ocorrem uma redução das formas organizadas de mediação do conflito social (sindicatos, partidos políticos e outras instituições da sociedade civil) e um aumento da atomização do comportamento eleitoral, isto é, de eleitores flutuantes ? partidariamente confusos ou institucionalmente indiferentes.

E isso se dá onde é mais marcante a convergência dos velhos eixos ideológicos (esquerda-direita) para um centro político-gerencial (um bom exemplo disso é o que no final do milênio os europeus chamavam de "terceira via"), mais preocupado com telecomunicações, transportes, ecologia etc. do que com as grandes teses desenvolvimentistas ou reformistas do pensamento político tradicional.

Pura imagem

Pode-se ponderar que, mesmo nessa temática centrista-gerencial, exista uma ideologização. O que certamente não existe é uma polarizacão antagônica de posições, já que tendem todas a convergir para um ponto comum, afinado com as novas exigências da tecnologia, do mercado e do status-quo social. As coalizões e as táticas pragmáticas abrem caminho para novas formas de política, que acabam por tornar contínua a erosão de identidade dos grandes partidos doutrinariamente centralizados.

Esse fenômeno generaliza-se nas sociedades contemporâneas, embora em graus de intensidade diferentes, como parte de um processo desconstrutivo que vem abalando os modos clássicos de identificação e organização das demandas sociais. Ao lado de outras mediações, os partidos vão sendo progressivamente esvaziados de seu papel histórico de canalização dos interesses coletivos e de institucionalização representativa (não apenas estatal) do acesso ao poder.

A expressão "novas formas de política" comporta a idéia de um reformulação generalizada das mediações tradicionais, também com conseqüências que apontam para uma mutação identitária em outras instâncias da sociedade. A chamada "despolitização" midiática ou tecnológica resulta, por sua vez, do enfraquecimento ético-político das antigas mediações e do fortalecimento da midiatização.

Sob a égide da produção informacional da realidade, a tecnointeração ? mídia, teletecnologias ? toma o lugar da mediação, desviando os atores políticos da prática representativa concreta (norteada por conteúdos valorativos ou doutrinários) para a performance imagística.

Eleitoralmente, os candidatos são como que absorvidos ou "solicitados" por uma conjuntura político-social onde predomina uma esfera de valores midiática, suscetível de acionar a força plebiscitária das massas contra o formalismo burocrático, ou eventualmente doutrinário, dos partidos. A "absorção" implica, na prática, a conversão da identidade político-partidária do indivíduo em pura imagem pública, isto é, em aparência ? constituída por um ou mais traços publicitariamente convenientes ? experimentada como entidade original ou "virtualizada".

"Pós-moderno"

Como já enfatizamos, porém, a esfera midiática é hibridizante, não atua sozinha. Não basta, por exemplo, a visibilidade pura e simples de um indivíduo na mídia ? a excessiva exposição de sua imagem na TV ou nos jornais. É preciso apelar para todo um arsenal de identificações entre a imagem e a audiência a fim de se obter efeitos não mais apenas projetivos, como no caso do entretenimento clássico, e sim de reconhecimento narcísico de si mesmo no "espelho" tecnocultural.

Por isso constam do imaginário midiático motivações características de modos de funcionamento tradicionais, como preocupações com segurança existencial, religião e família. Estes são elementos e valores ressignificados pelos dispositivos tecnoculturais em função da imagem pública que se deseja construir.

Tudo tende a confluir para a imagem publicitária como valor coletivo, o que pode tornar a interpretação cênica da realidade mais importante do que qualquer modo tradicional de representação. Publicamente, importa mais a capacidade pessoal de gerar espetáculo (telegenia, histrionismo, agressividade bem dosada etc.) ? portanto, a performatividade midiática ?, do que conteúdos programáticos.

É um modelo tipicamente norte-americano, que amadureceu ao longo de todo o século 20 e culmina no fenômeno dos atores-presidentes, isto é, chefes de governo que, mesmo não sendo necessariamente profissionais do ramo, seguem os padrões de uma certa cosmética cênica. Diante da progressiva despolitização substantiva da democracia norte-americana, o modelo só tem feito intensificar-se. Na campanha eleitoral para Senado e presidência dos Estados Unidos, em 2000, bastava consultar esporadicamente a imprensa para dar-se conta do jogo intersimulativo entre a realidade político-eleitoral e o imaginário holywoodiano: astros cinematográficos assumiam discursos políticos enquanto políticos profissionais faziam as vezes de atores.

Não chegamos a tanto no Brasil, apesar da evidente americanização das campanhas políticas no Centro-Sul. Mas dinheiro e publicidade, muito mais do que qualquer plataforma reformista ou desenvolvimentista, são cada vez mais os elementos-chave do êxito eleitoral. No vazio da formação letrada capaz de levar a decisões de voto comprometidas com a mudança social, no flagelo do analfabetismo, aumenta o poder da cosmética midiática. De Collor para cá, esta é a regra vigente na chamada "vida pública" brasileira.

O resultado é o que se vê: políticos novos e inexpressivos do ponto de vista da representatividade popular (já que mídia e mercado não implicam representatividade) e o velho caciquismo regionalista. Nada mais "pós-moderno", alguém diria.

(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ.

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