Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Argemiro Ferreira

EUA / FRAUDES NO NYT

“O estranho caso da fraude jornalística do NYTimes“, copyright Tribuna da Imprensa, 13/5/03

“Certamente ainda haverá muito a discutir sobre o assunto, mas o que me ocorre dizer inicialmente em relação ao escândalo Jayson Blair ? o jornalista fraudulento de 27 anos que motivou autocrítica de quatro páginas do ?New York Times? ontem ? é que o culpado pelo maior erro nos 152 anos de história desse jornal foi o próprio editor executivo Howell Raines, diretor da redação.

O comentário do ?publisher? Arthur Sulzberger Jr., destacado na autocrítica, absolveu explicitamente Raines e seus auxiliares da cúpula da redação, ao dizer que ?a pessoa que cometeu isso é Jayson Blair?, ?não comecemos a demonizar nossos executivos?. E o texto do ?mea culpa? sugeriu obliquamente ter havido tolerância pela política de promoção da ?diversidade?, já que Blair é negro.

Depois das quatro páginas do domingo, o ?conservador residente? da página de opinião, William Saffire, voltou ao assunto ontem. Numa coluna escrita com o rigor habitual, mas com maldade implícita, o sofisticado cultor da língua opta pela ?ação afirmativa? interna como bode expiatório. Ou seja, o esforço pela diversidade. Só que evita a franqueza explícita, que deixaria seu racismo exposto.

Os ?empregados de minorias?

Conservadores e racistas do país inteiro vão festejar esse episódio ? e, ao invés de demonizar os executivos de Sulzberger, vilanizar os negros, eventualmente favorecidos em disputas de vagas em universidades e empregos nas redações. Dirão, para usar frase de Saffire, que ?empregados de minorias são tratados com luvas de pelica, às vezes promovidos quando deviam ser demitidos?.

Embora Saffire não diga isso com aprovação ostensiva, fica claro que levantou o tema deliberadamente ? jeito esperto de transferir o papel de bode expiatório. A tradução, para mim, é essa: ?A política de diversidade do jornal está certa, devia até beneficiar mais depressa hispânicos e asiáticos, mas é preciso cuidado com tal paternalismo, essa gente inferior ainda está muito abaixo de nós, brancos?.

O ângulo ?ação afirmativa?, no entanto, é totalmente desautorizado por outros escândalos ? e, por coincidência, um dos temas do programa ?60 Minutes? da CBS no mesmo domingo da autocrítica do ?Times? foi o caso de Stephen Glass. Esse jornalista branco (também com tipo de anglo-saxão e protestante, portanto WASP) fez a mesma coisa que Blair, com absoluto cinismo, em outros veículos respeitáveis.

O cinismo branco de Glass

Glass era ainda mais jovem do que Blair ? tinha apenas 25 anos. A vítima maior dele foi a revista ?The New Republic?, de comentários políticos e sociais, muito respeitada nos meios intelectuais, com quase um século de existência. Escrevia ainda para ?Harper?s?, também tradicional e de grande prestígio, ?Rolling Stone? e até para a sofisticada ?George?, de John Kennedy Jr., hoje extinta.

Mas o cinismo parece ter sido a característica mais marcante do branco Glass, que não foi protegido pela ?ação afirmativa? ou qualquer tipo de programa ?politicamente correto?. Ele parecia ter prazer em fraudar, mentir e fabricar. Conforme contou à CBS, começou incluindo uma pequena mentira num texto. E não conseguiu parar. No final fabricava tudo, fontes, entrevistados, fatos ? tudo.

O escândalo Glass estourou há cinco anos. Ele só foi desmascarado porque um de seus textos, sobre uma fictícia conferência de ?hackers?, despertou o interesse da revista ?Forbes?. Ante dificuldades para confirmar a reunião e ouvir o grupo que supostamente a promovera, consultou ?New Republic?, cujos editores acabaram por constatar que tudo fora fabricado. E que todos os textos de Glass eram fraudulentos.

Os conservadores que usam os excessos ?politicamente corretos? para assumir o próprio racismo (sem admitir sequer brincadeira com a bandeira ou seus heróis de fancaria, como o presidente George W. Bush) são os mesmos que festejaram no passado outro escândalo jornalístico ? o prêmio Pulitzer dado à jornalista negra Janet Cooke, do ?Washington Post?, por reportagem que se revelou uma fraude.

De Bob Woodward a Raines

À época, numa autocrítica bem parecida com a do ?Times? no último domingo, o ?Post? relatou em páginas inteiras como tinham falhado seus mecanismos internos que deviam detectar a fraude. Ficou mais ou menos aparente naquele caso, embora o texto não fosse explícito nesse sentido, a culpa (no mínimo por negligência) do chefe de Cooke ? o branco Bob Woodward, já então rumo à cúpula da redação.

Cooke, obviamente, dançou. Mas Woodward ainda é a estrela maior do ?Post?. Nunca foi questionado pelo papel à frente da reportagem naquela época ? da mesma forma que ninguém questiona seu recorde de fontes anônimas, ainda a característica de todos os seus livros e reportagens.

O caso de Raines parece ainda mais evidente. Há mais de um ano os erros de Blair já eram rotina, sua conduta pouco profissional. O editor metropolitano Jonathan Landman, então chefe dele, escreveu aos superiores: ?Temos de impedir Jayson (Blair) de escrever para o ?Times?. Agora, imediatamente?. Ocorreu o contrário: em pouco tempo ele ganhava elogio de Raines ? e por um texto, na primeira página, logo contestado.”

“O repórter que enganou o ?New York Times?”, copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 12/05/03

“Uma investigação interna concluiu que um repórter do The New York Times cometeu diversas fraudes durante a cobertura de eventos jornalísticos significativos nos últimos meses. Os casos freqüentes de plágio e notícias fabricadas representam uma profunda quebra de confiança e um ponto baixo na história de 152 anos do jornal.

O repórter, Jayson Blair, de 27 anos, enganou leitores e colegas com textos supostamente enviados de Maryland, Texas e outros Estados quando freqüentemente estava a quilômetros de distância, em Nova York. Ele fabricou comentários de ?entrevistados?. Inventou situações. Roubou material de outros jornais e de agências de notícias. Pinçou detalhes de fotografias para passar a falsa impressão de que tinha estado em determinados lugares e visto certas pessoas.

E usou tais técnicas para descrever episódios recentes de alto conteúdo emocional, dos ataques de um franco-atirador em Washington ao sofrimento de famílias em luto por soldados mortos no Iraque.

Numa investigação destinada a corrigir as informações falsas e explicar como uma fraude de tais dimensões pôde ocorrer, jornalistas do Times identificaram problemas em ao menos 36 das 73 reportagens assinadas por Blair desde outubro, quando ele passou a integrar a equipe da editoria Nacional. Nos últimos meses, Blair tornou-se mais audacioso a cada semana, expondo a trajetória de um jovem a caminho da autodestruição profissional.

Blair, que se demitiu, trabalhou no Times por quase quatro anos – e era prolífico. Checagens esporádicas nos mais de 600 textos que ele escreveu antes de outubro identificaram outros indícios de fraude e a investigação continua. O Times pede aos leitores que o ajudem nesse trabalho.

Cada jornal, como cada banco ou departamento de polícia, confia que seus funcionários sigam determinados princípios. A investigação em curso mostrou que Blair violou repetidamente o dogma básico do jornalismo, que é simplesmente a verdade. Suas armas foram um telefone celular e um laptop – que lhe permitiram ocultar sua real localização – e o acesso 24 horas a bancos de dados cujas notícias roubou.

A investigação também apurou que vários editores e repórteres expressaram dúvidas sobre a capacidade de trabalho de Blair, sua maturidade e comportamento pessoal nos cinco anos transcorridos desde sua admissão como trainee do jornal. Seus erros se tornaram tão rotineiros, seu comportamento tão antiprofissional, que em abril o editor do caderno de Notícias Metropolitanas enviou um e-mail de duas sentenças à direção de redação.

?Temos de fazer Jayson parar de escrever para o Times. Já.?

Depois de tirar licença por problemas particulares e receber advertências, orais e por escrito, de que seu emprego estava em perigo, Blair melhorou de performance. Em outubro, os dois principais editores do Times remanejaram-no para a editoria Nacional, na qual recebeu a tarefa de cobrir o caso do franco-atirador de Washington.

Ainda naquele mês, fontes oficiais e colegas começaram a lançar dúvidas sobre suas reportagens. Em novembro, conforme a investigação interna, Blair estava inventando entrevistas e relatando cenas que não vira. Em março, mentiu a seus editores sobre sua presença numa audiência em um tribunal da Virginia, na casa de um chefe de polícia em Maryland e diante da casa de um soldado na Virginia Ocidental. Em 1.? de maio, sua carreira no Times acabou.

?É um enorme olho roxo?, disse Arthur Sulzberger Junior, presidente do conselho da New York Times Company, cuja família controla o jornal há 107 anos. ?Rompe a relação de confiança entre o jornal e seus leitores.? Veja a seguir alguns dos casos apurados durante a investigação:

Fuzileiros navais – Dois fuzileiros navais feridos estão deitados lado a lado no Centro Nacional de Medicina Naval, em Bethesda. Um deles, escreveu Jayson Blair, ?questionou a legitimidade da sua dor emocional quando pensou no caso do colega na cama ao lado, um maratonista que tinha perdido parte da perna por causa de uma mina terrestre no Iraque?.

A cena, como descrita num artigo que o Times publicou em 19 de abril, era tão falsa quanto arrebatadora. Na verdade, era mentirosa desde a primeira linha, da data em letras maiúsculas que dizia aos leitores que o repórter estava em Bethesda e presenciara a cena. Ele não tinha estado lá.

Porém, a imagem era tão convincente, as palavras tão evocativas, que o Times publicou um dos comentários do cabo James Klingel entre suas Citações do Dia, na página 2: ?É meio difícil sentir pena de si mesmo quando tanta gente teve ferimentos piores ou morreu.?

Blair realmente entrevistou o cabo Klingel, mas por telefone e um ou dois dias depois que o soldado tinha dado baixa do centro médico. Embora o cabo, que sofreu ferimentos no braço e na perna direitos, não tenha certeza se realmente disse a frase reproduzida pelo repórter, garantiu que Blair nunca o visitou no hospital. ?Li o artigo sobre mim no The New York Times?, afirmou, na semana passada. ?A maior parte daquilo eu não disse.?

Blair não tinha acabado sua visita virtual a Bethesda. O sargento Eric Alva, que sofreu a amputação, foi realmente colega de quarto de Klingel durante dois dias, mas o sargento, citado por Blair, nunca conversou com ele, disse o comandante Jerr Rostad, porta-voz do centro médico. Outro paciente citado por Blair como internado na enfermaria naquele dia, Brian Alaniz, teve baixa cinco dias antes da chegada do cabo.

Franco-atirador – Os ataques do franco-atirador na região de Washington dominaram o noticiário do país em outubro. Tornou-se uma ?avalanche de reportagem? disse Jim Roberts, o editor de Nacional, invocando o jargão usada para coberturas prioritárias por seu editor-executivo, Howell Raines.

Raines e Gerald Boyd, outro editor, aumentaram rapidamente o tamanho da equipe de oito repórteres, incluindo Blair entre eles. ?Esse cara é faminto?, disse Raines na semana passada, ao lembrar por que ele e Boyd escolheram o repórter.

Impressionar ele impressionou. Apenas seis dias após sua chegada a Maryland, Blair aterrissou na primeira página, com um artigo exclusivo com detalhes surpreendentes sobre a prisão de John Muhammad, um dos dois suspeitos de serem os atiradores. A reportagem, atribuída inteiramente aos relatos de cinco fontes policiais não identificadas, informava que o promotor de Maryland, pressionado pela Casa Branca, tinha obrigado os investigadores a encerrar o interrogatório com Muhammad talvez exatamente quando ele estava prestes a confessar.

Foi um artigo importante e preciso no seu ponto central: o fato de que as autoridades locais e federais estavam em rixa em relação à custódia dos suspeitos. Mas em retrospectiva, mostram as entrevistas, a reportagem continha uma falha grave, assim como um erro factual.

Duas altas autoridades policiais que de outra forma discordaram acidamente do que aconteceu naquele dia, concordam num ponto: Muhammad não estava, como informou Blair, ?explicando as raízes da sua ira? quando o interrogatório foi interrompido. Em vez disso, disseram eles, a conversa tratava de assuntos de menor importância como arranjos para um banho e uma refeição.

O artigo atraiu críticas imediatas. Tanto o procurador-geral da República, Thomas M. DiBiagio, quanto um funcionário senior do FBI, emitiram declarações negando certos detalhes. Apreensões semelhantes foram levadas aos editores seniores por vários repórteres veteranos da sucursal em Washington do Times que cobrem a área judiciária e policial.

No dia 22 de dezembro, uma outra reportagem sobre o caso dos atiradores de autoria de Blair apareceu na primeira página. Novamente citando autoridades policiais não identificadas, seu artigo explicava porque ?todos os indícios? apontavam para o cúmplice adolescente de Muhammad, Lee Malvo, como o autor dos disparos. Mais uma vez, sua reportagem despertou fortes críticas, desta vez de um promotor que convocou uma entrevista coletiva. ?Não creio que alguém na investigação seja responsável pelo vazamento, porque grande parte disso está totalmente errado?, disse Robert Horan Junior, de Fairfax, Virginia.

Em 29 de abril, já no final de sua notória carreira de fraudes, Blair foi convocado à sala da direção de redação para responder a acusações de plágio apresentadas pelo The San Antonio Express-News. O assunto centralizou-se em um artigo que ele alegava ter escrito a partir de Los Fresnos, Texas, sobre a angústia da mãe de um soldado desaparecido. Numa série de tensas reuniões durante dois dias, Roberts repetidamente pressionou Blair para que apresentasse provas de que realmente tinha entrevistado a mãe do militar.

O repórter mostrou páginas de notas manuscritas e até descreveu o telhado avermelhado da casa de estuque branco, o jipe vermelho na entrada, as rosas que floresciam no pátio. Só depois que as fraudes foram descobertas, Roberts soube como o repórter o tinha enganado mais uma vez: consultando arquivos de fotos computadorizadas do jornal.”

“Pivô de antigo escândalo virou ficcionista”, copyright O Estado de S. Paulo / Newsweek, 12/05/03

“Há cinco anos, no escândalo jornalístico da década, um jovem repórter foi despedido por inventar mentiras acintosas. Agora, ele escreve ficção de verdade.

Stephen Glass é autor de algumas das mentiras mais escandalosas da história do jornalismo, mas parece estar contando a verdade. ?Dizem que devo ter sido muito calculista?, diz ele, recostado na parede de um café no centro de Manhattan. ?Mas eu não estava sendo razoável. Tentava fazer malabarismos com todas as milhares de mentiras que contei. Queria prolongar a vida que eu achava que tinha por mais um segundo. Isso exigia que eu tentasse imaginar o que teria de fazer a seguir para arranjar mais uma frase, mais cinco palavras, antes que tudo desmoronasse.?

Lá se vão cinco anos desde que Glass, então um astro de 25 anos da revista The New Republic, destruiu sua carreira publicamente. As reportagens improváveis que ele vinha inventando eram inconseqüentemente audaciosas. Em um texto, Glass ?noticiou? uma imaginária ?Primeira Igreja de George Herbert Walker Cristo?. Noutro, escreveu sobre uma conferência da Ação Política Conservadora que realmente aconteceu, mas inventou episódios nos quais participantes fissurados por sexo cheiravam cocaína.

Quando o então editor da The New Republic, Charles Lane, percebeu o que estava ocorrendo, Glass tinha se convertido num homem-bomba jornalístico.

Estava não apenas aniquilando sua carreira como destruindo um pouco do sempre frágil elo de confiança que os jornalistas tentam estabelecer com seus leitores. ?Só posso dizer que lamento?, diz ele, no café de Manhattan.

Romance – Glass não poderia lamentar num momento mais conveniente. Seu primeiro romance autobiográfico, The Fabulist (O Fabulista), chega esta semana às livrarias. Na nota do autor, Glass insiste em avisar que ?este livro é uma obra de ficção – uma invenção e, desta vez, uma invenção admitida?.

Mas The Fabulist – interessante, embora não necessariamente pelos motivos certos – é uma tentativa óbvia de explicar as coisas. No fim do ano, Glass será objeto daquilo que provavelmente será um retrato bem menos lisonjeiro, um filme denominado Shattered Glass (que traduzido significa Vidro Estilhaçado, um trocadilho com glass, que quer dizer vidro), produzido por Tom Cruise e protagonizado por Hayden Christensen, de Guerra nas Estrelas.

Coincidência – Numa triste coincidência, Glass volta à luz dos holofotes justamente no momento em que outro jovem astro está se autodestruindo. Há duas semanas, Jayson Blair, de 27 anos, demitiu-se do The New York Times depois de ter sido acusado de plágio.

Portanto, Glass não é apenas um romancista. É membro-fundador do Clube dos Mentirosos.”