Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Armas, tiros e muita cara-de-pau

DOCUMENTÁRIOS

Antônio Brasil (*)

Todo mundo só fala de eleições, apurações e comemorações. Mas assim como eu, tem gente que não agüenta mais tanta "notícia" e que resolveu conferir os bons filmes do Festival de Cinema do Rio de Janeiro. A mostra deve se transferir para São Paulo nos próximos dias. Queria aproveitar o clima e dar uma dica para aqueles que acreditam que os bons documentários também podem tratar de assuntos sérios e, ao mesmo tempo, ser muito divertidos. Principalmente um filme polêmico que tente explicar, entre outras coisas, por que será que tanta gente odeia os americanos?

O filme é Bowling for Columbine (Tiros em Columbine), produzido em 2001 pelo cineasta americano Michael Moore. O título original é uma referência a mais uma dessas tragédias que a imprensa adora mostrar, faz questão de esquecer e, raramente, explica. Trata-se do massacre de 20 de abril de 1999 numa escola americana, a Columbine High School, da pequena cidade de classe média Littleton, no Colorado, que terminou com a morte de 15 pessoas entre estudantes e professores, além ferimentos graves em outras 25. Na manhã da tragédia, dois típicos jovens americanos, brancos, igualmente de classe média, sem qualquer motivo aparente, a caminho da escola pegaram seus brinquedos favoritos ? poderosas armas de assalto ? muita munição comprada numa loja de conveniência e, antes de entrarem para a história, ouviram o rock de Marilyn Manson, jogaram videogame e ainda disputaram uma partida de… boliche!

Em estado de choque, testemunhas declararam que Eric Hain, 18 anos e Dyan Klebold, 17, ao atirarem impiedosamente contra pessoas inocentes vibravam com risos e gritos. Pareciam estar se divertindo muito. Após algumas horas de violência e terror, se mataram ou declararam "game over" (fim do jogo). A pergunta do filme é simples: por quê?

Elemento perigoso

Apesar da pouca divulgação pela imprensa e em meio a tantos bons filmes de ficção apresentados no festival, o documentário Tiros em Columbine foi recebido com enorme sucesso. E não é para menos. Numa onda de ressurgimento do gênero, o filme chega ao Brasil como o único documentário selecionado para concorrer na mostra principal do Festival de Cannes em seus 55 anos de existência. Em maio último, Mike Moore competiu com produções de cineastas como Roman Polanski, Mike Leigh, Amos Gitai entre outros. Não recebeu a Palma de Ouro, mas levou o prêmio especial . A única escolha por unanimidade de todo o festival. Precisa mais?

Michael Moore aos 58 anos, não é um cineasta típico americano. Nascido na pequena Flint, Michigan, é gordo, feio, tímido, meio ranzinza e não acredita em violência. Sua principal arma é ridicularizar pessoas e situações particularmente absurdas. Atrás das câmeras se transforma no terror das grandes corporações americanas ao criar um jornalismo investigativo sério com recursos do melhor entretenimento "pastelão. Seu senso de humor e instinto de rebeldia já são velhos conhecidos daqueles que apreciam a boa televisão no Brasil. Ele foi o criador de um dos melhores programas "alternativos" exibidos aqui por canais por assinatura, o TV Nation. A série era imperdível, diferente de tudo que costumamos ver na TV.

Apesar de tratar de assuntos sérios e importantes, Michael jamais abriu mão da sua própria estranha figura ? um verdadeiro Dom Quixote eletrônico, um antijornalista de TV que quebra todos os modelos e padrões estabelecidos pelo meio. Sempre com muita irreverência e criatividade para enfrentar situações delicadas e inusitadas. Suas denúncias contra os poderosos transitam entre o terrível e o patético. Ele insiste em lutar contra os interesses de muitos americanos que lucram com a cultura do medo e do ódio. Muitas vezes, se transveste em palhaço ou bufão, faz um papel ridículo frente à câmera para poder dizer a verdade e convencer o público da necessidade de entendermos melhor o mundo.

A técnica de investigação utilizada por Michael Moore é simples e eficiente. Com equipes e orçamentos reduzidos, ele vai ao encontro dos donos do poder para perguntar por que eles fazem o que fazem. Simples, não? Nada de altas tecnologias, câmeras ou intenções ocultas. Insatisfeito com os rumos do país onde nasceu e que faz questão de dizer que ama muito, resolveu se tornar em um verdadeiro "tijolo" no sapato da direita americana. Nada e ninguém estão a salvo das suas críticas. nem mesmo o conceituado jornalismo americano. Moore declarou, em entrevista para o site da Australian Broadcasting Corporation (http://abc.net.au/arts/film/stories/s654932.htm), que "hoje, o jornalismo se parece com uma verdadeira linha de montagem de uma fábrica de automóveis onde todos fazem tudo igual e de uma forma considerada certa por todos. Não tenho nada contra os quem, o que, quando, onde e como, mas nós não temos perguntado os porquês".

É nesse caminho, em busca de explicações para as tragédias recentes e para tanta violência na história americana, que Michael Moore tem direcionado seu trabalho. Ele faz um jornalismo de guerrilha que contesta tudo e incomoda muito. Não teme exibir suas idéias e sentimentos em seus filmes. Se expõe como mais um elemento perigoso da mídia à esquerda dos interesses políticos e econômicos americanos. Ao abrir mão da segurança das regras consensuais que exigem objetividade e isenção, o cineasta dá um exemplo para aqueles que ainda consideram que jornalismo não deveria se tornar sinônimo de indiferença e irresponsabilidade social.

Último argumento

Michael Moore navega contra a corrente. Se recusa a aceitar as explicações televisivas que nos procuram convencer de que tudo acontece simplesmente porque… acontece. Uma cultura que divulga, vende e lucra com os nossos medos e transforma o ódio em bem de consumo. Tudo sem maiores explicações, com a notícia se confundindo com os comerciais.

"É assim que sempre foi aqui nos Estados Unidos e é assim que nós somos. A América possui muito sangue na sua história. Temos muita misturas étnicas que geram problemas e violência." Essa declaração surpreendente do ator Charlton Heston, um dos principais defensores do direito dos americanos de possuírem armas de fogo, no documentário Tiros em Columbine, é contestada com muita cara-de-pau ? velha, eficiente e meio esquecida técnica jornalística ? por um revoltado Michael Moore. Ele não disfarça sua insatisfação com a "explicação" que revela tanta ignorância e indiferença e sai atirando mais e mais perguntas insolentes. Ele não teme a pieguice e resolve mostrar ao velho ator uma foto de uma menina morta por outra criança que teve acesso a uma arma carregada encontrada na casa de um tio. Mais uma arma, outra tragédia. Charlton Heston que já personificou tantos heróis como El Cid e Moisés, reconhece a derrota, interrompe a entrevista, levanta-se e, com passos inseguros, retira-se de cena em silêncio. Cinema e jornalismo da melhor qualidade.

Depoimentos como esse, com "experts" ou "famosos" são regularmente apresentados em nossos telejornais como "fatos da vida". Não merecem maiores explicações ou contextualizações. São fatos incontestáveis, um pouco estranhos ou bizarros, mas é assim mesmo que nós somos e pronto! Pausa para os comerciais. O jornalismo e a televisão não têm culpa. Será mesmo?

Em sua busca por explicações mais convincentes, sem dúvida Moore também acredita na própria sorte. Ninguém poderia acreditar que, no dia combinado, o paladino da direita americana, o velho Charlton Heston, estaria em sua própria casa, em Los Angeles, disposto a falar sobre o controle de armas. Ninguém, menos o diretor americano. Ele ainda acredita em algo inexplicável, impossível de ser ensinado na escola: o tal "faro jornalístico". Uma mistura de intuição, experiência, arrogância e determinação que nos faz acreditar que estamos quase sempre certos. Que nos induz, muitas vezes, a ter coragem para conseguir o que ninguém sequer tentaria.

É bom lembrar que no Brasil já tivemos algo muito parecido. Ninguém era mais cara-de-pau do que o repórter personagem Ernesto Varella, criado pelo talentoso Marcelo Tas em tempos de produção independente para o Olhar Eletrônico. Num misto de jornalismo e entretenimento, o ator personificava um repórter que insistia em cometer "sacrilégios jornalísticos"quot;. Seu melhor momento foi quando ousou perguntar a Paulo Maluf, de surpresa, em pleno Congresso Nacional, durante sua controvertida campanha presidencial, se ele era mesmo… ladrão? Lembram? Bons tempos quando um ator tinha coragem de perguntar o que todos, inclusive os jornalistas, queriam saber. Hoje, em tempos de eleição, também é bom recordar que a televisão no Brasil em plena ditadura já foi bem mais ousada e criativa.

Nos Estados Unidos, com posições políticas e profissionais independentes, Michael Moore não tem medo de desagradar a quase todos. Seu trabalho já tem milhares de admiradores e seguidores em todo o mundo. Publicou recentemente mais um livro de sucesso, Stupid White Men (Estúpidos Homens Brancos), Harper Collins Publishers, NY, 2001, primeiro lugar da lista de best sellers do New York Times durante várias semanas. O livro é bem documentado e procura contestar com dados e humor as "verdades" de um governo Bush pós-atentados de 11 de setembro. No livro, ele exige que a ONU intervenha na Casa Branca e derrube um governo, "a junta da família Bush", que deu um golpe e se elegeu de forma ilícita.

Em tempos de guerra contra o terrorismo e muita patriotada nos Estados Unidos, Moore investe contra o "todo poderoso" e procura arregimentar novos aliados para a sua cruzada. "Não procuro agradar ou converter os que já estão convertidos. Não sou maluco. Quero que as pessoas me ouçam. Meus filmes se dirigem a todos aqueles que ainda têm dúvidas", diz.

Para quem ainda não se convenceu de que alguém pode fazer um bom documentário que seja ao mesmo tempo sério e muito divertido, um último argumento: você pode assistir ao trailler de Tiros em Columbine com alguns dos seus melhores momentos em <www.michaelmoore.com> . O site é muito bom e oferece vários links para outros endereços de jornalismo alternativo de qualidade. Já se tornou ponto de encontro para uma legião de jovens de todas as idades que, apesar de tantas decepções, continuam acreditando que os Estados Unidos e o mundo ainda têm jeito.

(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de TV, professor de telejornalismo e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ.