Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Artigos

 

Gabriel Priolli

 

C

ão Paulo, domingo do Oscar, nove da manhã. O cidadão sintoniza uma rádio FM, em busca de música para alegrar o dia de descanso, e logo encontra a trilha de Antônio Pinto e Jacques Morelembaun para o filme Central do Brasil. Anima-se, mas mal consegue ouvi-la. Ela está ali apenas fazendo fundo para entrevistas sobre a “festa máxima do cinema”, na qual o Brasil estará oficialmente representado pela terceira vez desde 1995. O sujeito muda de estação no dial, encontra eventualmente a música que procura, mas não se livra do falatório em torno do Oscar, de Fernanda Montenegro, de Walter Salles, de Vinícius de Oliveira. Faltam mais de doze horas para o início da premiação em Los Angeles, mas o rádio já faz o “aquecimento” para a transmissão. E é assim também nas ruas, nas feiras, nos botequins, nos estádios de futebol. O Brasil torce pela seleção nacional, na Copa do cinema.

Na televisão, o território privilegiado da festa, a construção do clima de torcida e fervor patriótico é meticulosa e impressionante, na intensidade que atinge. A Rede Globo, que detém os direitos de transmissão para a TV aberta (na TV paga, ficaram com a HBO), passa o dia todo pondo lenha na polêmica: Fernanda ganhará o prêmio de melhor atriz? Central do Brasil vencerá A vida é bela como melhor filme estrangeiro? O Brasil se divide, o Brasil debate, o Brasil aguarda. Para sorte do SBT e demais redes que não têm o Oscar nas mãos, termina também nesse domingo o seqüestro do irmão dos cantores sertanejos Zezé di Camargo e Luciano. O rapaz é devolvido mutilado, doente e imundo, numa penúria mais que perfeita para o melodrama televisivo, mas sua odisséia, mesmo sensibilizando a audiência, não dá para o cheiro da competição com o megashow de Hollywood. É dia de astros e estrelas, smokings e modelos de Valentino, jóias e glamour. É dia de Oscar, Olimpíada do cinema. Copa do Mundo Audiovisual.

O país inteiro é levado a acreditar que Central do Brasil e Fernanda Montenegro têm alguma chance de vitória. Há evidências inequívocas de que não conseguirão nada, apresentadas pelos analistas mais atilados, mas o povo se ilude. É levado à ilusão, mas também quer se iludir, quer crer no triunfo, quer acreditar no Brasil. E então, a festa vem, mostrando que quem manda ali, também ali, são os Estados Unidos e que o país escolhido para dividir as glórias, este ano, não foi este seu patético vassalo ao sul do Rio Grande, mas aquele outro anexado na Europa, desde a Segunda Guerra Mundial: a Itália, velha Itália, terra das mamas, pizzas, pastas e palhaços histriônicos como Roberto Benigni. Ele é o rei do Oscar 99. Fatura três estatuetas, sobe nas cadeiras aveludadas do Dorothy Chandler Pavillion, grita, faz micagens, discursa interminavelmente em inglês macarrônico, vira o centro das atenções, imitado por Jim Carrey, apresentado por Sophia Loren. Ganha um clipe exclusivo de dois minutos para A Vida é Bela, antes de o filme se consagrar como a melhor produção estrangeira do ano.

Enquanto isso, o Brasil… desaparece. Ao longo de quase quatro horas de festa, merecemos apenas duas tomadas rapidíssimas de Fernanda Montenegro e um trecho de sua atuação em Central do Brasil, no momento da premiação de melhor atriz, e mais um outro trecho do filme, na premiação do melhor estrangeiro. Menos de um minuto de imagens, no total. Nenhuma tomada de Walter Salles Jr., ou de Vinícius de Oliveira. Sequer aquela clássica cena de Bruno Barreto ao lado da mulher Amy Irving, “ex” de Steven Spielberg, que vemos todos os anos. Toda a imensa expectativa, alimentada por intocáveis reportagens na mídia impressa e eletrônica, todo o clima de euforia criado no país e mantido por semanas a fio, esfumaça-se assim, no mais completo desprezo, na mais profunda indiferença. Os gringos nem olham para nós, indiarada insignificante do Terceiro Mundo. Só querem saber de Roberto Benigni, o seu novo “clown”, o seu novo “darling”.

Bem feito. É um castigo para macacos bajuladores, colonizados voluntários, escravos risonhos. O Oscar não é a “festa máxima do cinema”, mas do cinema americano, o centro de uma indústria cuja finalidade é garantir, no plano cultural e ideológico, o mesmo domínio que os Estados Unidos exercem sobre o mundo por meio de armas e dólar. Sagrar-se campeão em Hollywood não é conquistar um título mundial. O Oscar não é o Prêmio Nobel. É uma láurea instituída por americanos, para americanos e para mais alguns que, eventualmente, americanos julguem dignos de reconhecimento. Não tem mais valor moral do que os prêmios de Cannes, Berlim, Veneza, Gramado ou Brasília. É um prêmio entre tantos prêmios.

E, no entanto, é preciso torcer loucamente por ele. Com a mística que possui, fundamentada em 71 anos de publicidade maciça em escala planetária, impõe-se como o maior de todos os eventos do cinema e consegue se apresentar mesmo como um prêmio mundial. Isso sensibiliza milhões de almas, até as de frios empresários. Se e quando um filme brasileiro ganhar o Oscar, certamente ficará mais fácil para os nossos cineastas captarem recursos para os seu projetos. Cinema dá dinheiro e o público não rejeita o produto nacional, ao contrário. Mas isso só ficará claro para os investidores se eles tiveram uma estatueta para olhar e acreditar, no seu fervor místico de que abençoado mesmo é aquilo que os americanos dizem ser bom – não o que nós, autonomamente, decidimos que é. Santo Oscar de Los Angeles, portanto, valei por nós. Agora que estamos na pindaíba do pós Real e antes que a hora da morte chegue, de novo, ao recentemente revivido cinema nacional.

Por absurda e desproporcional que fosse, e por quixotesca que se mostrasse desde muito cedo, a mobilização nacional em torno de Central do Brasil e de suas chances de vencer o Oscar teve lógica. A vitória aumentaria a auto-estima dos brasileiros e o seu apreço pelos filmes nacionais. De olho nisso, os investidores aumentariam suas inversões no nosso cinema. E a televisão, cada vez mais sócia dele, teria muitas vantagens nisso. Não deu desta vez, mas a Globo saiu no lucro. Na semana anterior, celebrou os 17 pontos de audiência que conseguiu com o especial jornalístico São Paulo Urgente, superando o Topa tudo por dinheiro de Silvio Santos. Com o Oscar, no mesmo horário, atingiu a média de 30 pontos. Graças à platéia que foi dormir mais tarde no domingo, só para ver se Fernanda Montenegro subiria ao palco no lugar da festejada atriz Gwyneth Patrow.

Nada há que nos diminua diante dos americanos, a não ser o nosso atávico complexo de inferioridade. Somos capazes de conquistar as platéias do mundo todo e disputar prêmios em toda parte com um filme de US$ 4,8 milhões, um terço do que estúdio Miramax gastou apenas para promover A vida é bela nos Estados Unidos. Temos Fernandas Montenegros, Marílias Peras, atrizes e atores do mais alto gabarito. Temos Waltinhos, Babencos, Barretos, Jabores, grandes cineastas. O que nos falta é o dinheiro que sobra em Hollywood e mais confiança no nosso próprio taco. Segundo o Ministério da Cultura, temos hoje 66 filmes em fase de finalização, 71 em produção e 424 em pré-produção – isto é, ainda captando recursos para se viabilizarem. Dêem a cada um deles os US$ 50 milhões de um filme americano comum e lá estaremos nós, novamente, em 2000, disputando o caneco. Para perder outra vez, para vencer, não importa. O Oscar da teimosia, esse já ganhamos faz tempo.

“Bem feito para os colonizados”, copyright Gazeta Mercantil, 26/3/99

 

Fernando de Barros e Silva

Como se comportar diante desse fenômeno enfadonho, o Oscar?

Mesmo para os padrões do cinema hegemônico, pasteurizados por definição, o Oscar destoa como uma aberração.

A sensação ao vê-lo é semelhante à provocada por um programa de Hebe Camargo, mas potencializada pelo fato de que a abundância de dinheiro torna a vocação cafona daquele megashow virtualmente sem limites ou fronteiras.

Qualquer opinião sobre essa noitada de negócios está condenada a engordar a vasta ridicularia que a envolve. Além disso, quase tudo e seu contrário já foi dito sobre o Oscar, antes e depois da grande noite. Não teria muito a acrescentar à lucidez de Marcelo Coelho, cuja coluna publicada na última quarta-feira [24/3/99] na Ilustrada vai, como de hábito, ao ponto, ainda que, dessa vez, tingida por um nacionalismo expresso num tom que não é bem o seu.

“Aquilo tudo é uma patriotada militar, uma iniciativa de guerra”. “A cerimônia do Oscar é apenas a confirmação do poder americano”. Em duas frases brutas, eis toda a questão.

No que diz respeito à TV, no entanto, talvez haja ainda um par de observações a serem feitas. Vistas as coisas do ângulo brasileiro, a grande vencedora do Oscar é a Rede Globo. A pequena Hollywood dos trópicos também fez a sua festa. Nada mais adequado que o Oscar – e que esse Oscar em particular – para que a Globo representasse o papel para o qual foi designada: o de centro de gravidade de um país que são dois e que a história (do) real vem mostrando ser irredimível, mas que no imaginário que a emissora ajudou a inventar resplandece redimido.

Esse “ponto médio” da cultura nacional que a Globo encarna e irradia é uma versão subdesenvolvida da fábrica de ilusões de Hollywood.

Todos, ou quase, nos comovemos com as imagens da Central do Brasil, a estação, e dos tipos que por lá circulam, exibidas durante toda a semana no Jornal Nacional, em reportagens especiais. O que vem à tona nessas imagens? A alegria intransitiva, a efusividade, a força afirmativa, a confiança teimosa e a vocação cordial “desse povo sofrido”, que parece como que predestinado a alguma recompensa desde que se eternize numa espécie de agitação bovina.

A violência, a miséria, o horror – enfim, a história que engendrou esses burros de carga herdeiros de três séculos de escravidão surge quase como moldura, como aresta, como uma casualidade ou um detalhe daquelas imagens comoventes. Essa naturalização paisagística da história brasileira, essa “postalização” do país que serve à Globo está presente em Central do Brasil e vai além de ambos.

Lembre-se que recentemente um ministro ornamental, não o da Cultura, o outro, do Turismo, disse abertamente que vê “um caráter até lírico em certos mendigos e despossuídos”, o que os tornaria semelhantes a Carlitos, o personagem mítico do cinema.

Quando vemos Maurício Kubrusly transmitir ao vivo de Cruzeiro do Nordeste a cerimônia do Oscar, ao lado de mulheres enrugadas torcendo com velas acesas nas mãos pela estatueta brasileira, temos a impressão de que aquela cena, exibida naquelas circunstâncias, resume involuntariamente 500 anos de tragédia. São “fiéis servidores da nossa paisagem” (verso de Carlos Drummond de Andrade, usado como epígrafe do belíssimo livro de Modesto Carone, Resumo de Ana).

“A ‘Central do Brasil’ é bela”, copyright Folha de S.Paulo, 28/3/99

 

 

O Paraguai é ali

Absurdo o que a Globo fez no início da cobertura da crise no Paraguai. Aproveitar-se da presença de Galvão Bueno em Assunção foi no mínimo um fiasco. Com seu exagero natural, o narrador esportivo deu o ar próprio aos episódios que sucederam ao assassinato do vice-presidente daquele país. Acostumado a ver futebol brilhante da seleção na mais apática das partidas da Seleção Canarinho, Galvão Bueno mascarou com exagero os conflitos. Até parecia que Kosovo era Assunção e o Paraguai, a Iugoslávia. Isso sem contar as participações do repórter Mauro Naves, que só faltou citar a escalação dos guerrilheiros titulares e dos oviedistas reservas em confronto em frente à sede do governo em Assunção.

Ora, o Paraguai fica logo ali. E as fronteiras não estavam tão fechadas assim para a imprensa, não?

Cláudio Messias, Repórter do jornal Voz da Terra, Assis (SP)

Apenas um eletrodoméstico

Assisto há muito tempo ao Observatório na TV e gostaria de emitir minha opinião sobre toda essa discussão sobre a função dos meios de comunicação e o cumprimento de seus papéis perante a comunidade.

Na minha opinião, a televisão deveria ser encarada no Brasil como mero eletrodoméstico para entretenimento, assim como um ventilador quando está calor ou um microondas quando estamos com fome. A informação, cultura, e conhecimento deveriam ser buscados por canais especiais devidamente divulgados e/ou livros, revistas e jornais. E a televisão em sua posição em altar, no centro da sala, ao alto, vista e cultuada como o único meio de informação dessa população sofrida e enganada como a brasileira. A culpa não é da televisão, mas de um misto de inocência subserviente da população e displicência do governo.

Gilberto Miranda Júnior

Orientação de leitura

Alberto Dines, você não acha que a população brasileira, sem o mínimo de orientação para escolher um bom veículo de informação, acaba preferindo o “pseudojornalismo”? Na minha opinião, saber ler não basta, é preciso ter uma orientação de como ler e onde ler. Gostaria que você comentasse. Sou um observador da imprensa, apesar de não ser jornalista.

Bento Francisco dos Santos Júnior

Por uma TV independente

Gostaria de pedir que meditassem sobre os temas abaixo:

1) Existe realmente imprensa livre no Brasil e no mundo, onde o poder econômico e político domina e decide acintosamente o que a mídia deve ou não publicar ou divulgar?

2) Particularmente no caso do Brasil, pode alguém em sã consciência, acreditar que um funcionário da Rede Globo ou mesmo das outras emissoras, inclusive as TVE’s, tem liberdade total para falar, dizer ou escrever o que pensa? Principalmente nas Organizações Globo, onde a “auto-censura” é institucionalizada? Seria acreditar em Papai Noel achar que alguém vai falar o que o sr. Roberto Marinho, Sílvio, Bispo Macedo etc. etc. não querem que saia publicado ou veiculado nos seus meios de comunicação. Fazem umas gracinhas para parecerem independentes e, lógico, os seus empregados que precisam e não querem perder seus empregos cumprem o seu dever de casa.

3) Não seria o caso de se trabalhar por um projeto de lei transformando todas as TVE’s do Brasil em fundações independentes, e que as outras TVs e jornais fossem obrigados a oferecer um espaço realmente livre da pressão do anunciante (governos ou iniciativa privada)? ,para se saber que ali as coisas eram para valer e verdadeiras.

Estamos cansados de Pravdas e Granmas disfarçados em nosso país.

Paulo Emílio Pinto.

Educação e qualidade

Parabéns pelo programa. Ser jornalista é saber que comunicação é a mais antiga das formas de se educar alguém. Quando a maior parte das inserções na TV, jornal, rádio, debates etc. levam para o pessimismo e o empobrecimento do “ser” popular, temos responsabilidade sim no que se faz e no que se pensa numa região, estado e até mesmo uma nação.

Só vejo uma saída, uma REEDUCAÇÃO jornalística, a começar por aqueles que coordenam os telejornais, partidários de uma demonstração televisiva de como as coisas “estão ruins” e como podem ficar “piores”. É inadmissível ver uma das melhores TVs do mundo em mãos tão negativas.

Peço que se pense em fazer um Roda Viva ou um Observatório na TV com este assunto: “Como melhorar a qualidade jornalística da TV”.

Osvaldo Aparecido Pinheiro

Topa tudo por dinheiro

Não consigo entender como os jornais (a maioria) conseguem combater determinados crimes em seus editoriais, enquanto nos cadernos de classificados continuam veiculando anúncios dos criminosos que eles combatem. Tanto no Rio de Janeiro (especialmente O Globo), como em São Paulo, é comum a inserção de mensagens de agiotagem e de prostituição, com endereço, telefone, fotos etc. Nos cadernos principais dos jornais são comuns anúncios de vídeogames de caráter violento, assim como o mais recente, em que o objetivo é o atropelamento de pedestres…

Sylvio P. Leitão Filho

Problemas de produção

Antes de mais nada, a versão do Observatório da Imprensa na TV é uma iniciativa que só merece apoio e aplauso por parte de nós, jornalistas. Igualmente, é um programa bastante produtivo para professores de jornalismo estimularem e provocarem debates aprofundados em sala de aula a partir de temas tratados. O único porém que gostaria de ressaltar é a lerdeza dos avanços técnicos na produção do programa, provocando falhas que, acredito, a esta altura já poderiam ter sido sanadas. Além do difícil corte nas falas de alguns participantes, que provocam perda de ritmo no debate, um dos aspectos mais graves e desagradáveis, quando é chamado ao ar, é a TV UOL. Freqüentemente a conexão dá errado ou apresenta aquela imagem fragmentada, que não funciona no vídeo: não acrescenta enquanto forma e muito menos quanto ao conteúdo, pois dificilmente se consegue decifrar a opinião ou pergunta do participante. Sem contar a eternidade da vinheta que antecede seu aparecimento na tela, de mau gosto e longa demais para o telespectador, gerando uma expectativa quase sempre frustrada.

Na verdade, como todos os programas experimentais sobre tema tão específico, não é nada fácil encontrar a linguagem e o tom certo. Espero que entendam o sentido da crítica, pois a torcida é grande para que o Observatório na TV vingue.

Wanda Jorge

 

Mulher na TV

“Na última reunião do TVer, a entidade criada em junho de 97 para a discussão da qualidade da TV brasileira, foi apresentada a primeira pesquisa do grupo, sobre ‘mulheres e televisão’. O resultado mais surpreendente foi que, para 79% das 253 mulheres entrevistadas no Estado de São Paulo, a programação atual não transmite a imagem da mulher ‘real e verdadeira’.

“No relato bem-humorado de Paulo Roberto Ceccarelli, psicanalista integrante do TVer e doutor pela Universidade de Paris 7, ouviram-se na reunião reações do tipo ‘nossa, como as mulheres estão, hein?!’. O ‘espanto’ foi devido à ‘impressão de que é absolutamente inusitado que as mulheres possam pensar dessa forma’.

“Não apenas quanto à imagem geral das mulheres, refletida na TV, mas quanto aos programas. Para 59%, a programação não tem a ver com ela própria, entrevistada. Mas nem todos os resultados foram da mesma ordem. Em outro ponto do levantamento, 51% das entrevistadas de classe C disseram que a programação da TV no país ‘deixa a mulher mais culta’, no sentido de ajudar na formação.” (Nelson de Sá, “A mulher da televisão brasileira é irreal, diz TVer”, Folha de S. Paulo, 6/3/99)

Parece-me uma falsa questão a discussão e pesquisa sobre a imagem da mulher moderna na TV brasileira, simplesmente pelo fato de haver uma questão que, confesso, não sei se responderei aqui. Ao menos colocarei os fatos em pauta de forma controvertida.

Quando a televisão foi criada, acredito ter sido com o mesmo propósito que o telefone: comunicar. No entanto, ao telefone, fazemos um uso comprometido com a realidade de forma a torná-la mais ágil. A televisão tem mais do que isso. Apropriada da audiência de milhares, muitas vezes milhões e milhões de pessoas, está comprometida com um “mentor”, o que não acontece com o telefone. Ponho, então em questão o que a televisão (ou seu mentor) entende por mundo real, visto que veicula muito mais do que diversão e “um” reflexo da realidade. Disse Marshall McLuhan que a TV herdou o conteúdo do cinema (que herdou, mormente, o da Literatura), e acrescento: também do rádio. Ora, se o cinema foi capaz de iludir o homem, assim segue a sua sucessora.

Se por um lado a alta tecnologia porta o aparelho com uma qualidade de definição cada vez mais nítida, mais estereofônica, enfim, mais real, não podemos inferir sobre o seu conteúdo? Mesmo estes programas e filmes baseados em histórias verdadeiras estão impregnados da leitura de seus autores. Isto me faz lembrar aquele cientista purista que diante de um estudo iniciado a partir do momento empírico, considera a sua presença fator digno de nota na interferência de suas experiências. O que se aplica perfeitamente ao conceptor destes trabalhos baseados em episódios de nossas vidas. Purismos e afetações humanas à parte, o que a TV mostra hoje é jamais ser reflexo da realidade, pois a manipulação exercida pela imprensa, na pessoa do editor, fica escancaradamente clara a partir de uma segunda leitura, vigiada pelo farol do vizinho, isto é, à luz do estudo comparado.

Claro que há um lado bom nesta história. Viver a realidade pura é nunca sublimá-la, como nos ensinou Freud – isto é, todos se afastam daquele sujeito que sempre responde que tudo vai mal. Todos nós temos problemas, mas respondemos que “tudo bem, obrigado, e você?”. Neste ponto de vista, sublimar a realidade é a tarefa que a TV melhor executa, ainda que mostrando acidentes de carro, defuntos, incêndios, desastres ecológicos, sangue explícito, assassinatos e traições, seja em novelas, filmes ou mesmo nos tablóides sensacionalistas eletrônicos tipo Aqui Agora, Ratinho, Rambo e toda uma leva de produções milionárias financiadas pelos anunciantes e elocubradas por editores e diretores de criação especializados em público inculto e subdesenvolvido – algo de que não precisamos importar, temos de sobra.

No âmbito da publicidade, não vejo muita diferença. Mesmo antes da época em que os anúncios de cigarros e bebidas eram livremente exibidos, nossa publicidade já forjava e apelava para o consumo, sublimando o espectador a um nirvana de poder e de frustração. A imagem e o som hoje produzidos pelos anunciantes, em especial dos automóveis, é absolutamente externa à realidade do brasileiro comum. Como algo popular pode custar R$ 11.000,00 ou mesmo R$ 9.999,99 ? Seria o equivalente a 83,3 salários mínimos ou ainda 6 anos e meio de trabalho – sem gastar absolutamente nada com nada ! Vamos entender o que é popular, então? Eis a TV forjando novamente, desta vez adulterando o significado das palavras. Tudo bem que a língua está em movimento e que permite o fenômeno do neologismo, mas convenhamos…

Estarei equivocado, misturando alhos com bugalhos? Estarei fora do espírito da questão, desviando-me para um ponto de vista eminentemente pessoal e míope?

Gostaria ainda de aditar mais um apelo, ressaltando uma inobservância na matéria supracitada: a pesquisa foi feita com 253 mulheres paulistas. Indago: que “nicho” é este (para não dizer tecnicamente “amostragem”)? Só as mulheres paulistas assistem TV ou só a opinião delas é que tem peso? De que modo as perguntas foram formuladas? Como foram conduzidas?

Todos sabemos que é possível manipular pesquisas tanto na fonte, no processo como nos resultados. Na fonte, pela sua formulação; no processo, pelo modo como são executadas as indagações e o seu registro; nos resultados, pelo modo como os dados são arrumados.

A televisão brasileira destina seus programas segundo os conceitos e comprometimentos de seus mentores. Qual destes é mulher? Ora, os nichos dos programas visam a mulher trabalhadora? A mulher bacharelada em Direito? Ou a dona-de-casa? Que mulher ‚ essa que assiste TV à tarde aos programas de Silvia Poppovic, Leda Nagle (Sem Censura), Xênia? Que modelo de mulher assiste a programas do tipo Business, Jô Soares Onze e Meia, Vitrine, Metrópolis, Roda Viva ? Neste momento, pergunto afinal, como é que a TV brasileira poder mostrar o retrato da mulher “real e verdadeira”?

A estratégia da política do “pão e circo” ainda é componente do inconsciente coletivo e não morrerá jamais. A TV cumpre o papel do circo evoluído, que se atualiza metamorfoseado na era eletrônica e digital. O herói jamais morrerá: Rambo e Ulisses são a mesma personagem. Silvester Stalone e Homero têm a mesma função: imortalizar e entreter com seus heróis e sublimar o homem comum, espalhar sua obra.

Desta forma, entendendo o moto perpétuo do inconsciente coletivo, não vamos nos desvencilhar deste componente enquanto não conseguirmos acompanhar a Deutsche TV.

Acredito que a televisão tenha duas realidades, ambas concernentes ao seu conteúdo: a realidade de seus componentes eletrônicos e a realidade que forja diante dos olhos e dos ouvidos de sua assistência.

Vinicius Claro