Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As rotinas de produção da pauta de um jornal popular

PESQUISA

Cristiane Brum Bernardes (*)

Uma reflexão sobre as questões envolvidas na produção da pauta de um jornal impresso do gênero popular é a intenção deste artigo. Em nossa análise, procuramos comprovar que a imagem do público pelos produtores é essencial na determinação do que será noticiado em um jornal deste tipo, sendo fator extremamente importante para a sobrevivência da publicação. Assim, todas as atividades de seleção dos acontecimentos têm como ponto de partida o interesse do leitor e a importância do fato para o público, critérios que são exemplificados nas conversas, nos depoimentos e nas rotinas produtivas observadas ao longo do processo.

A partir do mapeamento das rotinas de produção da pauta do jornal Diário Gaúcho, periódico da Rede Brasil Sul (RBS), este trabalho pretende discutir algumas questões envolvidas na seleção das notícias feita pelos jornalistas do veículo. O jornal, editado desde 2000 em Porto Alegre, tem caráter popular e circula basicamente na região metropolitana da capital, além de algumas cidades do interior do Rio Grande do Sul.

Justificam o interesse pelo veículos dois fatos. Em primeiro lugar, o impacto do lançamento no panorama da comunicação no estado. O Diário Gaúcho (DG), lançado para atender as classes C, D e E, obteve sucesso instantâneo no mercado editorial da Região Metropolitana de Porto Alegre e durante o primeiro ano não vendeu menos de 100 mil números/dia, circulação bastante próxima do principal jornal impresso da rede, Zero Hora. Além disso, com a entrada do veículo no mercado, a Região Metropolitana de Porto Alegre passou a ser a primeira no país em índice de leitura de jornais, pulando de 64% para 76% de penetração (Marplan, 2000), superando o Rio de Janeiro.

Mas o sucesso local do Diário Gaúcho parece estar conectado a uma tendência nacional de revitalização do jornalismo popular, voltado às camadas menos privilegiadas da população. O que explicaria, em parte, o surgimento e a consolidação de publicações brasileiras, nos anos 90, como: O Dia, Extra, Lance!, entre outros. Mais que isso: estudo feito entre 1996 e 2000 no Brasil registra aumento na venda de jornais impressos, de 6,5 milhões para 7,9 milhões, com aumento na participação dos jornais chamados "populares" de 11% para 17% no mesmo período (Ajzenberg, 2001). Daí a segunda razão para o interesse por tal veículo.

Conhecimento do real

Entretanto, para a análise dos critérios de noticiabilidade é preciso compreender o percurso desse conceito dentro dos Estudos de Jornalismo. Uma abordagem que privilegia a "lógica dos processos" (Wolf, 1995: 161) envolvidos na construção do noticiário é a base para a adoção da perspectiva interpretativa da notícia que se preocupa com a análise crítica da objetividade. Tentamos assim superar a ideologia jornalística presente na Teoria do Espelho ? segundo a qual as notícias refletem a realidade ? e avançar no aproveitamento de referenciais teóricos iniciados com os estudos de gatekeeper (White, 1993).

Para os autores alinhados a esta abordagem, a notícia é fruto da ação dos informadores que definem as normas de sua produção; é o produto final de um processo complexo de construção metonímica que se inicia na seleção de acontecimentos de acordo com categorias socialmente construídas e que tem como função fornecer uma determinada visão do mundo para que o público oriente sua ação. Isto significa que o jornalismo, sendo uma forma de conhecimento social baseado na singularidade e que funciona como uma indústria, constrói um outro mundo a partir dos fatos sociais, trabalhados em um processo definido como a percepção, a seleção e a transformação da matéria-prima ? os acontecimentos ? no produto ? as notícias (Filho, 1996; Gradim, 2000; Hall et al., 1993; Lalinde, 1990; Marcondes, 1989; Meditsch, 1992; Traquina,1993). Deste modo, "o jornalismo não é o discurso da realidade (como diz ser), mas um discurso sobre a realidade" (Moretzsohn, 2001).

Resultado da necessidade de relatos do inobservado, as notícias nos contam o que não assistimos diretamente, isto é, são relatos jornalísticos dos acontecimentos, uma compilação de fatos avaliados, estruturados e tidos como relevantes pelos jornalistas para a compreensão do cotidiano, funcionando como guias de leitura e informação; são as formas narrativas e literárias usadas pelos jornalistas para organizar o acontecimento, os modos específicos de se contar uma história; são um tipo específico de sistema simbólico que faz parte de uma prática cultural antiquíssima ? a narrativa ? e que possui seus próprios códigos, reconhecidos pelas audiências (Bird-Dardenne, 1993; Gradim, 2000; Molotch-Lester, 1993; Muniz Sodré, 1996; Traquina, 1993; Tuchman,1993).

Segundo Meditsch, o sistema mundial criado com o capitalismo provocou a necessidade de acesso a realidades que não tínhamos como atingir diretamente. Para suprir essa necessidade de contato direto com o mundo imediato, o jornalismo fornece os seus relatos. A partir deles, podemos construir o conhecimento genérico e universal sobre o real. Um conhecimento, portanto, baseado na singularidade (1992: 30).

Rotinas, pautas, enfoques


São as características, os detalhes, porque é preciso montar um quadro que tenha certa semelhança com a minha percepção imediata, a maneira como desvelo coisas que eu vejo ao meu redor. A grandeza e a força do jornalismo decorrem do fato dele reproduzir coisas distantes pelo ângulo do fenômeno, ou seja, pelo ângulo da singularidade. (Meditsch, 1992: 31)


Entretanto, apesar das semelhanças, a notícia não pode ser considerada um produto ficcional por fazer uso da estrutura narrativa. Além da ficção e do jornalismo, também a história é uma forma de produção de sentidos através da linguagem. O que as diferencia são os lugares sociais de produção, as rotinas produtivas e as expectativas dos leitores de cada uma delas (Berger, 1996). Uma vez que é produzida por jornalistas que seguem regras profissionais convencionadas e princípios regidos por uma organização do trabalho, a notícia precisa ser analisada como construção coletiva, que tem a função de fornecer informação útil para a ação social. Alguns autores defendem que a notícia precisa ser institucionalmente legitimada e legitima as instituições, convertendo a imprensa em uma delas e mostrando seu caráter de representação social (Henn, 1996: 35). Segundo Alsina, a atividade jornalística tem um papel legitimado socialmente para produzir construções da realidade publicamente relevantes. O que não significa deixar de considerar as interações da audiência com essas construções (1989: 30-31).

Ainda nas palavras de Ronaldo Henn, a notícia é "uma arena sígnica onde as forças que pululam na sociedade se digladiam" (1996: 37). É exatamente aí que reside, segundo muitos autores, a perspectiva ideológica da notícia, uma vez que o processo de produção e as definições inerentes a ele são feitas conscientemente por jornalistas, baseadas em diversos critérios. E esse processo de produção começa exatamente na execução da pauta, que constitui a "primeira filtragem do caos ecossistêmico." (1996: 86). Perceber a pauta como o início do processo de construção da notícia permite ao pesquisador admitir que as definições presentes nela são parte de uma atividade coletiva, ultrapassando o limitado alcance de teorias anteriores (como a do gatekeeper) que determinavam a um indivíduo o poder das decisões tomadas nessa etapa. Como lembra Henn, "a pauta traduz e seleciona acontecimentos segundo sistema de valores codificados tanto no jornalismo como na sociedade" (1996: 94). Ainda que, em algumas situações, as decisões sejam individuais, elas estão ancoradas num conhecimento e regras partilhadas pelo grupo. Do contrário, o indivíduo sofreria sanções.

Para este trabalho, coletamos os dados entre os dias 31 de março e 4 de abril de 2003, com a permanência na redação no período entre 8h e 12h. A observação foi precedida de uma experiência-piloto, conduzida na manhã do dia 17 de outubro de 2002. A partir dos processos observados naquele dia, a análise foi centralizada nos seguintes aspectos ou questões envolvidas na atividade jornalística: rotinas de produção, origem das pautas, distribuição das matérias entre os repórteres, enfoques escolhidos para as pautas, interação editores-repórteres, escolha das fontes, critérios expressos para seleção. Além do acompanhamento do processo e das conversas entre os produtores, foram feitas entrevistas não-estruturadas com o gerente-geral, o editor-chefe e a editora de produção.

Pauta, início do processo de construção da notícia

A observação das rotinas produtivas envolvidas na pauta é a primeira etapa de um estudo detalhado sobre os processos produtivos do jornal. Antes mesmo da coleta das informações, os jornalistas fazem escolhas e apontam os caminhos que a cobertura seguirá. Dentro da rotina produtiva diária do jornal impresso é a pauta a fase de preparação dos repórteres, início do processo de seleção dos fatos que serão relatados. É por onde deve começar, portanto, qualquer análise sobre o produto simbólico jornal.

A pauta, no jornalismo, é o primeiro processo que estabelece uma organização para o caos dos fatos do mundo. Nela transparecem as visões que orientam a prática e as regras que conduzem a rotina do trabalho jornalístico. Essa rotinização é necessária porque os produtores precisam enfrentar situações inesperadas com rapidez e, por isso, as decisões são, de certa forma, codificadas previamente. Contudo, a pauta não pode ser tão rígida a ponto de impedir a cobertura de fatos inéditos e imprevistos, ainda que suas convenções ofereçam quase sempre uma "representação-padrão dos objetos" (Henn, 1996: 94).

No caso da pauta do Diário Gaúcho, tudo começa de madrugada, quando o serviço de copy desk da Zero Hora ? que mantém um estagiário de jornalismo de plantão na redação durante a madrugada ? faz a "ronda" ? processo que consiste em telefonar para o batalhões da Brigada Militar e as delegacias da Polícia Civil da região metropolitana de Porto Alegre, além de hospitais e Departamento Médico Legal ? às 2h e às 5h para descobrir ocorrências. Se há telefonemas de leitores ou algum fato extraordinário é descoberto, a informação é anotada e enviada por e-mail a editores e repórteres dos dois jornais que, quando chegam, têm material para o início do planejamento da edição. Em caso de algo mais grave, o repórter e o fotógrafo que permanecem de sobreaviso ? em casa, com um telefone celular do jornal ligado ? são acionados.

Acompanhamento e checagem

Os primeiros funcionários ? duas telefonistas e um repórter da Editoria de Polícia ? chegam ao DG por volta das 8h, enquanto a editora de Produção abre a redação às 7h. Com eles começa o processo coletivo de feitura do jornal e, por isso, sua presença é requisitada nas primeiras horas da manhã. No decorrer da observação, percebemos que a série de atividades necessárias para a realização da pauta subtende a participação de várias pessoas. Uma característica do jornalismo em sua fase industrial, em que o produtor perde o controle total do processo e fica responsável por uma etapa determinada.

Em geral, o comentário da editora de Produção ao ler as mensagens deixadas pelo copy é: "Hoje não deu nada". A maior parte dos acontecimentos da madrugada acaba gerando pautas para a Editoria de Polícia. Por isso, quando nada acontece na madrugada, o trabalho dos repórteres da editoria é ampliado. Como não há nenhum fato relevante acontecido na madrugada para recuperar, é preciso iniciar a busca diária de acontecimentos entre as fontes oficiais, fazendo uma nova "ronda".

Além dos fatos descobertos na ronda, o copy também envia aos repórteres e editores dos dois jornais as transcrições dos correspondentes Ipiranga e Aplub, das rádios Gaúcha e Guaíba, além dos telejornais da noite anterior. Como se não bastassem os relatos, a primeira providência da editora ao chegar à redação é ligar os aparelhos de TV e rádio. "Por força do ofício", como ela afirma, um deles é sintonizado na Rádio Farroupilha, emissora que forma, com o DG, o segmento popular da RBS.

Na realidade, além dos fatos da noite e das notícias monitoradas nos outros veículos, a pauta começa no dia anterior, como lembra Henn:


Entram nessas listas de pautas tanto as matérias já publicadas, mas que por sua importância, dimensão, ou reverberação social merecem acompanhamento, como as sugestões de acontecimentos que nem sequer foram checados. (2002: 4)


Leitor como fonte de pauta

A presença das telefonistas na redação desde o início da manhã é plenamente justificada pela diretriz fundamental da produção de pautas do jornal, exemplificada na declaração da editora de produção:


A nossa grande fonte de pauta é a ligação dos leitores. O dia em que perdermos a capacidade de entender que a vida real está lá fora, não aqui dentro, aí seremos uma enganação. (17/10/2002, entrevista à pesquisadora)


Durante os dias em que a observação foi realizada, além de uma página diária sobre a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque e do noticiário constante sobre a greve dos médicos em Porto Alegre e a ameaça da pneumonia asiática, as ligações de leitores foram o destaque na produção, em especial, da Editoria de Geral. Das 46 matérias ? são consideradas também notas e matérias secundárias ? publicadas na Geral nas cinco edições acompanhadas, cinco versavam sobre a guerra, quatro sobre a greve, três sobre a pneumonia e 15 eram resultado de ligações de leitores.

Assim, as telefonistas são peças-chave no processo de produção do jornal, uma vez que a elas cabe a responsabilidade do atendimento aos leitores, as principais fontes do jornal. As funcionárias, algumas delas estudantes de Jornalismo, realizam uma pré-seleção das ligações, só passando aos jornalistas os casos que efetivamente possam dar origem a matérias. Como destaca Amaral, a estratégia de comunicabilidade do periódico é a "intensa participação do cidadão como fonte jornalística" (2002: 1). A autora acrescenta que a necessidade de identificação do periódico com o público faz com que a notícia seja enquadrada como uma espécie de "diário pessoal, cuja relevância social se evapora", para que se crie a "ilusão de que ali se trava um diálogo real" (Amaral, 2002: 5).

Considerando-se o DG um sistema autônomo, as telefonistas têm o papel de conectá-lo ao mundo exterior, o que no jornalismo é um fator determinante, uma verdadeira via de mão dupla (Henn, 1996: 65) que garante a subsistência do sistema através da manutenção da credibilidade da publicação. Obviamente, em qualquer jornal essa relação é fundamental, como lembra Henn em outro trabalho:


A relação fonte/repórter, portanto, é uma ponta da conectividade da redação com os demais sistemas e subsistemas que compõem o mundo circundante do jornalismo. Na outra ponta temos a relação com o público que pode, em determinados momentos, viver o papel de fonte, até mesmo no sentido de pautar matérias. (Henn, 2002: 8)


Mas a questão presente no DG é exatamente o fato de que essa inversão de papéis entre público-fonte ocorre rotineiramente. Isto é, o leitor é sempre a fonte principal, enquanto as fontes chamadas oficiais aparecem como secundárias, apenas para responder às reivindicações do público do jornal. O veículo aposta, portanto, em uma imagem ? construída interna e externamente através das práticas de produção ? de porta-voz, representante oficial do grupo de leitores. O fato de as fontes populares não serem ouvidas apenas em casos de catástrofes e situações negativas faz parte da identidade que o jornal construiu e transparece nas declarações de seus produtores, como no trecho a seguir:


(…) A editora de produção, ao ouvir os comentários, colabora:

"Uma das melhores coisas no Diário é que ele transforma coisas e pessoas comuns e suas vidas em coisas especiais. Um exemplo é o porteiro-poeta, que não seria notícia em nenhum lugar."

"Transformamos anônimos em notícia", atalha o editor-adjunto.

"Cada vez que mostramos uma pessoa comum, nós honramos todas as outras que se espelham nela. E essas não têm espaço nos outros jornais, só se forem assassinadas", resume a editora, antes de se afastar.

"Quando a gente olha na capa a Feiticeira tem aquela coisa do desejo, do consumo. Mas tem a coisa de achar as histórias parecidas com as minhas, e se aquela história legal entrou no jornal, a minha história também deve ser legal, mesmo que eu não entre no jornal. Mas eu podia estar no lugar dele", conclui o editor. (17/10/2002, trecho de conversa presenciada pela pesquisadora durante a observação)


Muitos críticos podem ver pontos positivos na prática diferenciada das rotinas dos chamados jornais "de referência", entretanto, segundo Amaral, "as fontes populares não são apresentadas como membros ativos de uma comunidade, mas como reivindicadores de questões individuais que se contentam com respostas setoriais" (2002: 15). O espaço público seria, desse modo, privatizado e espetacularizado, com a "singularização e a personalização que retiram o acontecimento de seu tecido social" (2002: 15).

Isso é jornalístico?

Mas, se a singularidade é a característica mais forte do jornalismo, como lembra Meditsch, a estratégia acerta no ponto de partida, ainda que possa derrapar ao não promover uma evolução para o conhecimento genérico e universal (Meditsch, 1992: 32-33). Também é preciso levar em conta que a utilização das fontes populares, mais que estratégia para garantir o espaço mercadológico da publicação, parece ser um importante ponto de apoio para a constituição profissional dos produtores. O contato com o público escolhido entre classes socialmente não-privilegiadas parece reforçar nos jornalistas a ideologia que estabelece na proteção dos interesses e na representação dos dominados a função social da profissão. A seção "Venda o seu peixe", espaço onde desempregados se oferecem para vagas, revelando suas habilidades e aptidões, é um exemplo. Criada pelo editor-chefe há poucos meses em função do volume de cartas que chegavam à redação pedindo empregos, nada mais é que uma tentativa de auxílio aos leitores.

Uma prática assistencialista, obviamente, mas os comentários dos próprios produtores sobre ela deixam transparecer um comprometimento com o público maior do que o comum nas redações. Uma afirmação do editor enquanto folheia as fichas do Setor de Atendimento exemplifica a questão:


Quando leio esses troços aqui fico pensando em como se vai avaliar a análise. Esses dias peguei a história de uma cara que estava desesperado, com a casa queimada. Aquilo não era notícia. Mas eu sei que, se colocamos, vão aparecer pessoas querendo ajudar. Então a gente põe uma notinha só para ajudar o cara. É justo colocar o jornalista numa situação dessas? É justo que essa pessoa tenha que recorrer a um jornal para resolver essa situação? (…) Tento ser técnico, mas às vezes me comovo com essas coisas. E olha que eu não sou tão sensível assim pra esses dramas. Daí colocamos uma nota para ajudar o cara. Mas isso é jornalístico? (17/10/2002, depoimento à pesquisadora)


Ao mostrar a pasta onde se acumulam as fichas do Setor de Atendimento, o editor admite a importância dos leitores na produção do jornal. "Pelo menos 50% do grosso da nossa produção está nessa pasta, ou são releases ou são ligações", diz ele. Uma estratégia adotada é juntar as reclamações por assunto e desenvolver uma matéria geral com vários leitores, não apenas um único caso. Assim, é possível visualizar uma tentativa de superar a singularização provocada pela notícia calcada em depoimento pessoal. Ainda que o jornal busque a aproximação com o leitor, a generalização da matéria que exemplifica a situação com vários casos parecidos pode ser uma forma de abordar as questões sociais com maior profundidade.

Outro aspecto interessante diz respeito à tentativa dos produtores em justificarem a utilização das ligações dos leitores como forma de quebrar a rotinização da produção. Segundo o editor-adjunto, "as ligações são o mais importante. É o imprevisível, o que faz com que a gente vá mudando o jornal e até derrubando pautas". (17/10/2002, depoimento à pesquisadora). Entretanto, percebe-se que a estratégia constitui a própria rotina do jornal e não a quebra das regras estipuladas, como poderia ocorrer em outras publicações. A questão é comprovada pelo número de cartas e telefonemas que chegam à redação todos os dias e pela quantidade de seções da publicação que se baseiam nos depoimentos dos leitores. Em levantamento realizado por Amaral (2002: 10), o leitor é chamado a participar em 12 seções fixas do jornal, além de ter espaço prioritário na cobertura jornalística de todos os fatos a partir de citações textuais, enquetes e, principalmente, sugestão de pautas.

Ponto de vista determina a observação

De acordo com Miquel Alsina, o processo de produção da notícia se inicia com o acontecimento, pois os meios de comunicação promovem uma aproximação dos fatos que não poderíamos obter sozinhos, mas é o sujeito observador que dá sentido ao fenômeno social. Isso significa dizer que os fenômenos externos só viram acontecimentos a partir da ação dos sujeitos sobre eles (1989: 81). Nessa perspectiva, a notícia nada mais é que a construção social da realidade e a própria percepção dos produtores sobre os fenômenos que merecem virar acontecimentos muda de acordo com a região, a época e o tipo de veículo. O acontecimento é, portanto, um fenômeno social e histórico (Henn, 1996: 67).

No caso do DG, a diferenciada perspectiva do que constitui um acontecimento relevante determina as práticas de produção e as rotinas do veículo. A partir dela, as fontes oficiais são deixadas de lado e o cidadão comum passa a ter um espaço discursivo privilegiado nas páginas do jornal. Dessa forma, os depoimentos pessoais ganham força e os repórteres já sabem o que procurar quando saem às ruas (Henn, 2002: 10). A estratégia de inversão do jornal é explicada pelo gerente-geral, que já foi editor-chefe:


Toda a pauta que parte de uma assessoria de imprensa tem por trás o interesse institucional. Os jornais tradicionais já se acostumaram a ser palco para esses interesses, ou por uma questão política ? interesse que o jornal tem em que determinadas pessoas apareçam -, ou até por uma questão de preguiça das redações ? para preencher espaço, baixa o release direto e azar. A gente tem plena consciência de que o espaço do Diário Gaúcho é muito valioso para o leitor. Esse leitor tem que perceber que, quando ele desembolsa 50 centavos por dia, que pode ser a diferença de ele andar de ônibus ou não, de tomar o lanche ou não tomar, tem que valer a pena. Ele tem que chegar ao final do jornal achando que valeu a pena ter gasto 50 centavos. (…) Então a gente não pode desperdiçar espaço do jornal com coisas que só interessam a um determinado grupo, a uma pequena área da sociedade. Precisamos cuidar muito para que o espaço seja aproveitado para o maior benefício possível para o leitor. (1?/4/2003, depoimento à pesquisadora)


Os jornalistas envolvidos na produção do veículo desenvolvem uma percepção própria dos fatos, comprovando a hipótese de que os veículos de comunicação assumem um papel central como atores sociais ao determinarem que acontecimentos merecem existência pública e oferecerem as interpretações sobre eles, definindo o significado e, mais do que isso, criando os fatos. Ou seja, além de nos dizerem sobre quais fatos pensar, também nos dizem como pensar sobre eles e, conseqüentemente, o que pensar. O poder da mídia, portanto, está em fornecer as formas para as declarações, mais do que em declarar o que é verdadeiro. Dito de outra forma, o poder do Campo Midiático reside na condição do meio de comunicação como grande mediador dos diferentes Campos Sociais, isto é, como ator que dá visibilidade ao social e que produz, projeta e legitima sentidos, veiculando as várias vozes que constituem um determinado tempo histórico (Traquina, 1993; McCombs-Shaw, 1993; Schudson, 1993; Berger, 1996).

Pouca fé no poder público

O conceito de enquadramento da realidade defendido por muitos autores atinge em cheio a questão da percepção social dos jornalistas. Ao atribuírem determinadas tarefas à profissão, os jornalistas acabam elegendo prioridades que interferem nos critérios de noticiabilidade de um fato. As condições que o acontecimento precisa atender para virar notícia acabam moldando todo o trabalho jornalístico. Um exemplo paradigmático foi observado na Editoria de Geral. Um dos repórteres relata que está encarregado de uma matéria sobre a aprovação da cobrança da taxa de iluminação pública. Ele explica que irá a três cidades que já cobram a taxa para ver se as ruas estão no escuro. "Pegaremos um caso de rua que esteja mal iluminada em cada cidade e será ?um abraço?", comenta. Logo em seguida, depois de fazer algumas ligações, ele afirma que a pauta "está furando", porque os municípios não teriam começado a cobrança da taxa ainda. "A lei foi aprovada, mas eles ainda não começaram a cobrar. Vai ficar para mais adiante", explica.

Nesse exemplo, o enfoque escolhido pelo jornal para a matéria não condiz com a realidade observada. Antes mesmo de qualquer denúncia de leitor, sem o dado "real", portanto, os jornalistas pautaram a matéria. A dedução dos produtores é que, apesar da cobrança da taxa instituída pelos municípios, o serviço de iluminação continuará precário. Percebe-se na sugestão de uma pauta a total falta de confiança no poder público, isto é, a idéia compartilhada pelo senso comum de que o serviço público não funciona no país. Nesse caso, o não-funcionamento dos serviços públicos torna-se uma pauta tão constante que acostuma o público a não acreditar no poder público e, mais que isso, a depender do jornal para a resolução de problemas sociais ou políticos.

Na mesma linha, um release sobre uma operação de fiscalização do Ministério da Agricultura é o ponto de partida para uma pauta sobre o perigo de utilizar um medicamento restrito ao uso animal em crianças. "Os números de estabelecimentos autuados e a operação não nos interessam, mas sim o fato de que pessoas mais simples estão usando produtos veterinários para combater piolhos em crianças", explica a editora de Produção (31/3/2003,depoimento à pesquisadora). Segundo o release, a fiscalização nos estabelecimentos de produtos veterinários havia verificado que um carrapaticida e um produto antipulgas estavam sendo comprados para uso humano. O alerta do ministério era para o fato de que os produtos poderiam causar graves problemas de fígado em seres humanos. "A nossa pauta é orientar, dar um serviço para os nossos leitores sobre o uso destes produtos e o perigo que representa o uso incorreto", explicou a editora à repórter encarregada da pauta.

Prestação de serviço

No caso de uma pauta sobre osteoporose, a origem do assunto foi um release recebido pelo editor, mas além da matéria sobre a caminhada contra a doença, assunto do material enviado, a pauta pensada por ele previa uma matéria com maiores detalhes, "explicando o que é a doença, como prevenir, onde fazer o exame, etc.", deixando a caminhada apenas como "gancho da matéria", ou seja, apenas como ponto de partida para um enquadramento específico do assunto mais adequado ao público, segundo os critérios dos produtores.

Aliás, o sentido do jornalismo como prestação de serviço é muito forte no DG. Não seria outra a finalidade da página 2, bem como a contracapa, ambas destinadas a prestar informações úteis para a população. E as declarações dos produtores ressaltam essa característica como um dos objetivos principais da publicação.


A idéia é que a pessoa possa cortar e guardar. Dividimos os assuntos em áreas de interesse para os vários públicos: crianças, donas-de-casa, etc. E sabemos, através de pesquisas, que os temas que mais interessam às pessoas são culinária, saúde, decoração, jardinagem. A ?contra? só é fixa nas sextas, quando damos uma dica de passeio para o final de semana, em geral alguma coisa gratuita ou bem barata, e nos sábados, quando uma colaboradora faz uma página de moda. Sempre preocupada com os preços, claro. Queremos algo para facilitar a vida das pessoas, algo que elas não soubessem, dicas para obter renda, indicação de cursos, dicas de presentes, serviços de orientação, festas religiosas. Também damos informações históricas, sobre datas e comemorações, a programação das festas populares e comunitárias. Nesses casos, damos o serviço completo: preço, horário, localização, horário e preço dos ônibus. A idéia é que a pessoa pegue o jornal e se anime, melhore de algum jeito sua vida." (17/2/2003, depoimento da editora de Produção, responsável pela contracapa)


A ênfase no sentido do serviço pode ser interpretada como uma tentativa de estabelecer um valor de uso imediato para a publicação, necessidade explicitada no depoimento do gerente-geral, assegurando a sua compra por parcelas populacionais que privilegiam essa característica nos produtos. Entretanto, acaba servindo como parâmetro para o estabelecimento de critérios pelos próprios jornalistas, que admitem a dependência do contato com o leitor para a produção do jornal:


No mínimo 70% das pautas vêm pelo telefone. Esse é o grande segredo, porque por mais que a gente ache que sabe como essas pessoas vivem, a gente não sabe. É fácil cair numa atitude prepotente de acharmos que sabemos mais do que sabemos. De vez em quando precisamos sacar as tendências, antecipar situações. Mas a fonte do jornal é quem lê: o leitor é que tem que dizer o que quer ler. Temos um estereótipo, mas precisamos sair dele. Ontem, discutindo o valor do salário mínimo, isso ficou claro: nenhum de nós sabe a real dimensão de viver com 240 reais. Então temos que ir lá perguntar para quem sabe. (1?/4/2003, depoimento da editora de Produção à pesquisadora)


Nesse sentido, percebemos que os próprios jornalistas têm consciência das limitações decorrentes da feitura de um jornal que se dirige a uma classe social que não é a deles. Voltamos, portanto, à argumentação sobre a importância do critério de noticiabilidade relativo ao público do jornal, desenvolvida em outro trabalho (Bernardes, 2002: 9-10). Segundo Lalinde, a imagem que os jornalistas têm da audiência é um critério bastante usado pelos profissionais quando querem explicar por que escolheram determinado fato (1990). O que significa que a apresentação da notícia se adapta à imagem que o jornalista tem do público. Segundo Wolf (1995: 191), este critério tem recebido pouca atenção nos estudos de newsmaking.

A partir dessa argumentação, podemos indagar como o jornalista determina o público leitor. Como ele sabe quem efetivamente lê o jornal? Como lembra Marcondes Filho, os jornalistas classificam os fatos de acordo com seus próprios estereótipos e constroem os relatos com as pessoas-símbolo (2000: 109). Na mesma linha, Muniz Sodré argumenta sobre as escolhas jornalísticas afirmando que a notícia pode ser, ironicamente, "aquilo que os jornalistas acham que interessa aos leitores e, portanto, notícia é aquilo que interessa aos jornalistas" (1996: 135). No caso do DG, é clara a preocupação em superar essa limitação através das estratégias de produção, tratando de assuntos que realmente interessam aos leitores, e não de temas escolhidos pelos jornalistas.

Critérios de noticiabilidade

A definição do que é acontecimento para o jornal já está estabelecida na pauta, etapa do processo que detém o poder catalisador das conexões entre as rotinas de geração, seleção e exclusão (Henn, 2002: 5). Nela, portanto, já estão definidos os códigos específicos de concepção da notícia, os critérios de noticiabilidade, que são o conjunto de requisitos que se exige de um fato para que se torne uma notícia, ou seja, adquira existência pública (lalinde, 1990). A noticiabilidade, portanto, é constituída pelos critérios, operações e instrumentos com os quais os órgãos de imprensa enfrentam a tarefa de escolher as notícias (Wolf, 1995) e está vinculada ao processo de rotinização e estandardização das práticas produtivas, conduzindo a critérios como o espaço disponível e a política editorial, a aprovação do anunciante e a apreciação do leitor (Berger, 1996).

Na rotina observada no DG, a produção da pauta começa no dia anterior, no momento em que a edição é fechada. Ali já estão traçadas as pistas para o próximo exemplar, como a continuidade de matérias importantes e a recuperação do que ficou de fora por motivos organizacionais. As pautas sobre a greve dos médicos em Porto Alegre exemplificam a questão, pois constituem um assunto trabalhado ao longo de semanas pelo periódico. Nessa longa cobertura transparece a necessidade de apelar para uma das características principais da notícias: o ineditismo.


O grande medo é que a greve fique comum, que as pessoas comecem a dizer: ?O que é que tem os postos parados??. O nosso desafio de hoje é dar um novo enfoque para a cobertura, que já está na terceira semana. (31/3/2003, depoimento da editora de Produção à pesquisadora)


A primeira reunião dos editores do DG acontece no meio da tarde, mas antes disso a editora de Produção orienta os repórteres para o recolhimento dos fatos de destaque. Assim que chega à redação, o editor-chefe é informado sobre os fatos selecionados e o que foi deixado de lado. Nas conversas informais entre editores e repórteres, os critérios são reconhecidos e confirmados pela equipe. Quando a reunião de pauta ? no sentido estrito ? acontece, às 16h, a maioria das matérias já está encaminhada, ainda que possa haver correções de rumo nos enfoques ou inversão de prioridades. Esse momento, na verdade, delimita o início da edição propriamente dita, ainda que seja difícil separar as etapas da atividade jornalística, uma vez que as escolhas não começam apenas na fase chamada de edição como querem fazer crer alguns adeptos da Teoria do Gatekeeper.

Trabalho facilitado

Nas editorias de Esporte e Variedades, a rotina é um pouco diferenciada devido à especificidade dos assuntos. Por exemplo, a cobertura esportiva é quase que inteiramente realizada sobre os dois times de futebol da capital: Inter e Grêmio. Uma das colunas, entretanto, permite observar como até mesmo nas soft news impera o critério de serviço. A página chamada "Planeta Moto" é publicada às quartas-feiras e dedica espaço ao motociclismo. No primeiro dia da observação acompanho o repórter que estava encarregado da página durante as férias do jornalista responsável. Ele e o fotógrafo passam mais de uma hora conversando com um colecionador de carros antigos que iria participar de uma feira. As fotos mostram duas motocicletas antigas que serão expostas no evento, mas o gancho da matéria é a doação de gêneros alimentícios e de higiene pelos visitantes para uma instituição beneficente.

Já na Editoria de Variedades, a pauta é bastante dependente das fontes "oficiais" ? artistas, produtores e gravadoras ? mantidas pelos repórteres e, o próprio editor admite, dos interesses dessas fontes em divulgarem o próprio trabalho.


(…) estamos muito atentos para as coisas locais, os nativistas, pagodeiros, rappers. Até porque eles têm interesse em aparecer, são super acessíveis. Esta é uma área muito pautada pelas gravadoras, nisso aí fazemos um pouco o jogo deles, não temos muito como fugir disso. Nós tentamos fugir disso, mas é difícil." (depoimento do editor-adjunto à pesquisadora)


Como estratégia empresarial, é dado destaque total às produções e artistas da própria RBS e da Globo, como exemplifica a série de matérias publicadas durante os primeiros meses de 2003 sobre a minissérie que a emissora carioca estava produzindo no estado, A casa das sete mulheres". Um dos repórteres destaca que os artistas locais já aprenderam os critérios usados pelo jornal e facilitam o trabalho, enquanto as gravadoras maiores ainda causam problemas ao tentarem selecionar o material que enviam ao jornal:


Nessa história de seleção elas (as gravadoras) deixam de fora coisas que nos interessam e mandam outras que não interessam. Houve o lançamento do CD do Renato Russo, mas elas só mandaram para a ZH, achando que não nos interessava. Mas é óbvio que a gente daria a matéria, afinal é um cara super conhecido. (1?/4/2003, depoimento do repórter à pesquisadora)


Conflito entre editores

Além do conflito com as fontes, o espaço dedicado às soft news não é unanimidade. Nas edições observadas, a capa oferece destaque para o esporte e a música, que sempre contam com, pelo menos, uma chamada. Aqui cabe uma ressalva: o noticiário da Editoria de Variedades estava centrado na divulgação da Festa de Aniversário do jornal, que ocorreria em poucos dias. Das cinco manchetes produzidas na semana, uma foi dedicada à guerra, uma versou sobre o aumento do salário mínimo, uma relatou o caso de uma execução de testemunha apurado pela Editoria de Polícia, uma foi dedicada à vitória do Grêmio e uma apresentou o vencedor da terceira edição do programa Big Brother Brasil. Sobre esta última, cercada por chamadas para o final da minissérie A casa das sete mulheres e para o jogo do Grêmio, a editora de produção comentou:


A capa ficou muito bobinha hoje. Estamos com a guerra, a greve dos médicos, um monte de situações graves. Não sei se era negócio dar manchete para esse bobalhão (Dhomini, vencedor do BBB III). (2/4/2003, depoimento à pesquisadora)


A discordância de critérios entre os editores, além de provocar conflitos na equipe, atrapalha o trabalho dos repórteres, que ficam sem indicações precisas sobre a cobertura. Apesar de terem as regras mais ou menos internalizadas, algumas situações fogem à conceituação comum e precisam de maiores orientações. Exemplo disso é a pauta surgida durante os dias de observação no Bairro Rubem Berta, na capital. A repórter foi destacada para uma matéria que não havia sido privilegiada pelo editor da Geral, em vez de ser enviada para a pauta sugerida por ele momentos antes (por telefone).

Antes de chegar ao local, a repórter comenta: "Acho que essa pauta é furada. Essa história está muito fantasiosa, mas nos passaram como se fosse uma grande pauta". A pauta dizia respeito a uma denúncia, feita por uma família que seria despejada de um imóvel do Departamento Municipal de Habitação (Demhab). Eles haviam invadido a casa, que estaria abandonada. O caso é que a Igreja católica havia entrado com recurso pedindo reintegração de posse do imóvel, que teria sido comprado em uma negociação irregular, pois estava localizado em área de reassentamento de famílias e, por isso, não poderia ser negociado. A repórter continua dando suas impressões sobre a história:


Numa história assim é que vemos a subjetividade do trabalho de seleção. A rivalidade entre os editores acaba causando reflexos no nosso trabalho. Um diz para fazer uma coisa, o outro manda fazer outra. Aí que tu vês que esse papo de imparcialidade não tem nada a ver. A seleção das pautas é uma etapa muito importante no trabalho. Às vezes tu sente que o teu trabalho é desvalorizado porque seguiu a orientação de quem pautou, que é diferente ou contrária à do editor. (2/4/2003, depoimento à pesquisadora)


Conclusões provisórias

Durante a observação, as matérias indicadas na pauta foram, em sua maioria, publicadas no jornal e seguiram à risca as indicações que percebemos. Por vezes, a publicação não aconteceu no dia seguinte ao surgimento da pauta, mas nas edições subseqüentes. Percebemos que os critérios são definidos em função do público, ou, pelo menos, da imagem que os jornalistas fazem dele. O interesse e a necessidade das informações pelos leitores são os dois motes principais para a escolha dos assuntos.

Como afirma Ramão Gomes Portão, em relação ao Notícias Populares:


No preparo do jornal, é preciso saber o que se pretende dizer ao leitor. Melhor, ainda: saber o que o leitor gostaria de ler. (…) É preciso sentir o pensamento, o gosto, a vontade, o interesse do leitor. Ter senso psicológico para entrar no meio do povo, na sua alma, e oferecer-lhe exatamente o que pretende comprar. (Portão, 1972: 25)


A estratégia de aproveitar todas as contribuições dos leitores e fazer deles as maiores fontes do jornal serve, de certo modo, para preservar os jornalistas de eventuais críticas e garantir a identificação do público com o veículo. Publicar as matérias sugeridas pela população é uma garantia de que os temas são do interesse do público. E a preocupação com o serviço, com a informação que pode ser usada na vida cotidiana do leitor, também segue o mesmo sentido.

No caso dos produtores de um jornal, a partilha dos valores-notícia é essencial para a produção. Durante o processo da pauta, é possível verificar com profundidade quais são os valores que estão em jogo na produção das notícias e como eles acabam se interligando em um todo coerente. Por isso, a pesquisa deve estar baseada na investigação da "estrutura funcional das instituições comunicativas" (Alsina, 1989: 92), o que pode ser feito através da observação das rotinas produtivas e da análise dos documentos do processo (esboços, rasuras, ensaios, etc.), na busca das marcas de realização do processo.

É interessante perceber como os próprios produtores admitem a processualidade da atividade jornalística, conscientes, em certos aspectos, de que o estabelecimento das regras faz parte do jogo e mantém a funcionalidade do sistema. Nos depoimentos, como no trecho a seguir, percebemos claramente o processo de construção de uma auto-imagem, de uma identidade própria para a publicação, afirmada e reafirmada durante as diferentes etapas da atividade jornalística através das conversas, orientações, escolhas, decisões, enfim, de todas as ações relacionadas à pauta.


Insisto para que os repórteres tragam as pautas de fora. Não posso achar que vá vir uma iluminação e a gente crie as pautas aqui dentro. O grande aprendizado do jornal é que vemos que as regras que criamos, aquelas que a gente acha que são verdades do mundo, são só verdades de redação. Como o nosso perfil permite, conseguimos mudar algumas delas. O jornal é o que tu queres dar para as pessoas ou o que as pessoas querem que tu dês? Acho que o jornal é um pouco o produto do meio. O Diário é um sucesso porque fala das coisas da tribo para a tribo. Também é missão do jornal falar do mundo para a tribo, mas alguns só falam nisso e esquecem da tribo. (17/10/2002, depoimento do editor-adjunto à pesquisadora)


No caso do jornal em questão, portanto, as pautas são determinadas pelo próprio leitor: seja em forma de sugestão ou em forma de serviço, ele é o ponto de partida para a seleção dos fatos do mundo que merecem virar notícia e o ponto em que a conectividade do sistema com o ambiente se faz mais forte. Deste modo, o critério relativo ao conteúdo ? em que o número de pessoas afetadas e proximidade geográfica têm grande impacto ? na denominação de lalinde (1990), também está relacionado à imagem do público feita pelos jornalistas. Isto é, o acontecimento que vira notícia é escolhido de acordo com o interesse que desperta na audiência e com a significação do fato para os leitores, questões que continuam sendo determinadas, efetivamente, pelos próprios jornalistas.

Concluímos, portanto, que a imagem que os produtores têm do público determina as rotinas de produção do Diário Gaúcho, influenciando a origem das pautas, a distribuição das matérias entre os repórteres, os enfoques escolhidos, a interação editores-repórteres, a escolha das fontes e, principalmente, os critérios expressos para seleção dos acontecimentos. Pelo menos, é nisso que acreditam os jornalistas.

(*) Jornalista, mestranda em Comunicação e Informação pela UFRGS

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