Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Autoritarismo hipócrita

MÍDIA GAÚCHA

Erico Valduga (*)

No regime militar, autoritário (eu ia escrever fascista), diziam que eu era de esquerda; no regime petista, igualmente autoritário (de novo ia sair fascista), dizem que sou de direita, como escreve o signatário da gauderiada publicada pelo OI [remissão abaixo]. Aliás, também afirma que sou filiado a partido político de direita. É uma inverdade, pois nunca filiei-me a partido, por acreditar que jornalista, sobretudo se atuar em editoria política, não pode ter militância partidária. Caso contrário, de militante passa a militonto, e de militonto a hipócrita a distância é curta.

Sugere o sr.Crestani, entre outras sandices, que eu e dignos jornalistas rio-grandenses estamos nos manifestando por questões econômicas. Mais inverdade. Reclamamos o direito da livre expressão do pensamento, exigimos liberdade de imprensa, queremos trabalhar ? como o fizemos, alguns há mais de 30 anos ? libertos da pressão do autoritarismo que se instalou no governo de nosso Estado. Não discutimos ideologias, nem o direito de todos tê-las.

Convém lembrar aqui, aos leitores que desconhecem os fatos, qual pode ter sido o ponto de partida da polêmica "liberdade de expressão versus autoritarismo", que arde no Rio Grande do Sul feito incêndio de campo em época de seca. Em 7 de junho, um jornalista, por delegação de colegas, ocupou o período do grande expediente da Câmara Municipal de Porto Alegre para agradecer homenagem ao Dia da Liberdade de Imprensa, ocorrido em 1? de junho. Seguem-se alguns trechos do pronunciamento, que até o dia de hoje não foi contestado:


"Nunca, na nossa rica história, processou-se tanto jornalista como se processa hoje neste estado. Nunca! Todos os que foram citados aqui têm, pelo menos, um processo. No ano de 1893, no século retrasado, ao tempo da Revolução Federalista, o então presidente do estado, Júlio Prates de Castilhos, mandou uma mensagem a chefes do seu partido no interior que lhe pediam orientação sobre como se comportar em relação aos oponentes. A resposta de Júlio de Castilhos tornou-se clássica, pelo seu autoritarismo e violência: ?Respeitai as famílias e castigai nos bens?.

Vou citar um exemplo do que está acontecendo hoje, entre dezenas. Mas, antes, chamo a atenção para o que foi referido aqui, por um orador que me antecedeu, que usou a expressão ?contraditório?. O contraditório é da essência do Parlamento, de fato; agora, o que está acontecendo na área de comunicação aqui, no estado do Rio Grande do Sul, principalmente aqui em Porto Alegre, não tem contraditório. Basta que se vá aos cartórios das varas e se levante a existência de processos; basta que se pergunte a jornalistas quanto gastaram para defender-se de processos movidos pelo estado, através do Ministério Público. Quem me processa não gasta, usa a máquina pública; eu, que vou me defender, preciso gastar, na maioria das vezes recursos de que não disponho e que fazem falta a minha família. E os donos do poder sabem disso. Mas vou relatar um exemplo de como estamos pisando em terreno altamente movediço, de como estamos margeando liberdades democráticas de forma muito perigosa.

Um colega nosso, jornalista, tem um filho que estudava na PUC, estudava, já se formou, e fazia parte de uma dessas empresas-júnior, chamada Junior Achievement, que se constituem na universidade para aqueles que estão nos semestres finais. A Junior Achievement, nesse caso, é para fazer com que treinem na universidade o que lhes vai acontecer após formados. Elas imitam a composição de todas as empresas, têm diretor-presidente, diretor-técnico, diretor-comercial, o que lhes serve de treinamento para o futuro. Esses rapazes, da PUC, constituíram a empresa, e, por tê-la legalmente constituída, puderam participar de uma concorrência em um organismo público de Porto Alegre que queria fazer um house organ, um jornal do próprio organismo, da própria entidade. E participaram com muitos outros disputantes. Resultado: ganharam! Os guris ganharam e, para surpresa deles, ganharam de muita gente boa que está no mercado há muito tempo. Ao ser julgado o seu trabalho, disseram-lhes os licitantes, entidade pública, repito, que há muito tempo não viam um trabalho de tanta qualidade e que, possivelmente, outros organismos públicos da Prefeitura de Porto Alegre copiariam esse trabalho, porque ele era muito bom.

Mas, como essa entidade pertence à Prefeitura, teve que se reportar à comunicação social da Prefeitura. Lá na Prefeitura, o responsável pela área olhou o projeto vencedor, e concordou com a decisão, cumprimentando-os pelo feliz resultado da concorrência. O projeto era muito bom e os preços razoáveis. Continuou olhando o layout do projeto, olhando, elogiando, e daí a pouco parou os olhos onde estavam os nomes dos diretores da empresa-júnior. E perguntou: ?Esse nome aqui, ele é parente do jornalista tal?? O assessor da entidade que promovera a concorrência lhe disse que não sabia, mas que procuraria logo saber. Foi ao telefone, voltou e disse que era. ?Então, esquece o projeto!?, decidiu.

Um rapaz que estava começando no jornalismo foi punido por ter o pai que tem, e que ousou pensar e expressar-se de forma diferente da cartilha oficial. Vejam que barbaridade! Que desastre para o exercício da profissão! O exemplo da utilização da coisa pública foi tão lastimável que o assessor da entidade não se conformou e recorreu à área de comunicação social do Palácio Piratini. E lá no Palácio Piratini a reação foi a mesma: ?Mas que belo trabalho?, ?escolheram muito bem?. Mas logo olharam o expediente, e perguntaram: ?Esse nome tem alguma relação de parentesco com o jornalista tal?? A resposta já era sabida: ?Tem, é filho?. A conclusão foi a mesma, só mais brutal: ?Então, esquece o projeto. Nós não vamos botar comida na mesa dessa gente!?.

Foi isso o que foi dito: ?Nós não vamos botar comida na mesa dessa gente!?. Ou seja, se depender de quem administra recursos públicos em nome do conjunto da sociedade rio-grandense, os jornalistas que expressam opinião crítica sobre os atuais governos do estado e da capital passarão até fome. Não houve, no caso, e em muitos outros também desconhecidos da sociedade, sequer a visão ética de que as informações geradas pelo governo pertencem a todos os governados e a eles deve chegar. Os cidadãos têm direito à informação, a despeito do que cada um pensa. A informação tem força própria, ela precisa ser comunicada, ela precisa ser divulgada, não interessa o estado de espírito, não interessa o partido, não interessa a ideologia de quem a colhe. Isto, sim, seria liberdade de imprensa. Sr. Presidente, gostaria de encerrar enfatizando uma informação. Creiam os senhores, é uma informação, não é opinião: nunca, neste Estado, tantos jornalistas foram processados e tantas famílias foram atingidas."


Constata-se que o Sr.Crestani, ao negar fatos, percorreu com seu texto a curta distância a que nos referimos acima. E a hipocrisia é o tributo que o vício presta à virtude (respeitosa homenagem a Voltaire, que precisou exilar-se para fugir ao autoritarismo dos donos do poder de seu tempo).

(*) Jornalista

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