Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Bacon e as máquinas da guerra

11-S, UM ANO DEPOIS

Ulisses Capozoli (*)

Francis Bacon (1561-1626), pai da ciência moderna, deixou escrito, em seu Nova Atlântida, obra que veio à luz no ano seguinte ao sua morte, que as sociedades que aprendessem a amar a ciência teriam descoberto o caminho da felicidade. Poderiam encontrar cura para todas as doenças, seus integrantes viveriam mais que os das sociedades não-científicas e poderiam desfrutar de máquinas impensáveis no século 17, capazes tanto de perfurar as nuvens como mergulhar sob as águas dos oceanos.

Contraponto a Atlântida mencionada por Platão em sua República, o escrito póstumo de Bacon, classificado como utopia, ao menos enquanto gênero, fez sucesso, em seguida, nas penas de Daniel Defoe e Jonathan Swift. Mesmo expressas em estilo despojado, as aproximadamente 30 páginas desse pequeno escrito são tidas, hoje, como um clássico da língua inglesa.

Bacon deixou à posteridade uma imagem controvertida. Seus simpatizantes vêem nele o exemplo de um homem que enxergou um futuro negado a seus contemporâneos, e não mediu esforços para que essas antecipações se tornassem realidade. Defensor do método experimental, morreu em meio a investigações sobre o frio e a putrefação. Encheu uma galinha de neve e observou como sua carcaça se comportava. Historiadores relatam que não resistiu à dureza do inverno, especialmente pelas saídas constantes destinadas a sustentar seu experimento. Morreu em 9 de abril de 1626, vítima de bronquite.

Os críticos desenham outra imagem de Bacon: um homem sem nenhum escrúpulo, sedento de poder, que não vacilou em acusar seu antigo protetor, o conde de Essex, condenado por traição e executado em 1601. Em Esclarecimentos acerca de imputações relacionadas ao recém-falecido conde de Essex, Bacon defendeu-se da acusação de traição e, com a habilidade de argumentação que nem seus desafetos lhe negaram, justificou que "um homem honesto prefere Deus a seu rei e seu rei a um amigo".

Discordância é ousadia

O que diria Francis Bacon sobre o 11 de setembro, data que se tornou sinônimo de um acontecimento capaz de dividir o recém-inaugurado século 21 em um antes e um depois, assunto que consumiu rios de tinta e montanhas de papel de imprensa, sem falar em livros, filmes e toda uma parafernália de adereços típicos de uma sociedade que faz, mesmo das piores desgraças, um motivo para se ganhar dinheiro?

Na impossibilidade de uma resposta, o mais produtivo talvez seja refletir sobre o projeto baconiano de conquista da natureza pela ciência, exposto em outra obra, o Novum Organum, também um contraponto, neste caso o Organon de Aristóteles, e seu sonho de felicidade para as sociedades científicas.

Os Estados Unidos, apontados cotidianamente como a maior potência científica do planeta neste momento, são uma sociedade feliz e compartilham, de alguma forma, este bem-estar com a comunidade internacional?

A julgar pelas palavras de George W. Bush, desde o 11 de setembro passado, quando as torres gêmeas tombaram vítimas do atentado organizado por bin Laden, a resposta é negativa. Bush, desde então, não fez outra coisa senão falar de vingança e a caçar, literalmente, Osama bin Laden pelas terras tristemente ressecadas das áreas mais ermas do Afeganistão.

Homens, mulheres e crianças que sempre conheceram os horrores da guerra, mas certamente nunca compreenderam bem o significado da ciência, pagaram então um tributo de horror por esta sede de sangue. Festejos de casamentos acabaram em meio a entulhos produzidos por bombas. Caravanas foram reduzidas a montes disformes de carnes de homens e animais em ataques pelas máquinas que Bacon previa voando entre as nuvens. Bombas potencializadas pela otimização das reações químicas destruíram cidades, pessoas, animais, esperança e perspectiva de futuro. Só a desgraça e o sofrimento tiveram espaço para crescer.

É de se perguntar se seria minimamente justificável que homens, mulheres e crianças americanas sejam atingidos pela violência carregada por instrumentos desenvolvidos pela ciência. Se a resposta for negativa, como é de se esperar de quem tenha uma noção de humanidade, deve-se estender a pergunta ao Afeganistão, ao Iraque ou a qualquer outra das nações da Terra, onde líderes, impostos aos seus próprios povos, tenham ousado discordar do que pensa e avalia o presidente dos Estados Unidos.

Banho de sangue a evitar

Homens, mulheres e crianças destas terras já sofridas devem ser, mais uma vez, punidos pelo fogo dos instrumentos desenvolvidos pela ciência? As pessoas dessas outras partes do mundo são menos humanas para merecer um castigo assim?

Ao reagir à compreensível onda de indignação que se espalhou pelos Estados Unidos no dia do ataque e nas semanas e meses que se sucederam, intelectuais americanos como Noam Chomsky e Susan Sontag (esta, que nos últimos dias participou de debates no Brasil) foram fisicamente ameaçados e tachados de impatrióticos, quando apenas cumpriam o dever de formação: discutir os vários ângulos da questão, procurando uma resposta, a melhor resposta para os acontecimentos.

Um ano depois, uma decantação natural certamente fez com que um número maior de pessoas, mesmo nos Estados Unidos, se desse conta dos acontecimentos. A própria Sontag, com a crítica corrosiva que faz dela uma interlocutora nada fácil, disse no Rio de Janeiro, em outras palavras, respondendo a uma provocação do professor Cândido Mendes, que seu presidente pode ser pouco mais que um cowboy desencontrado no tempo, mas seu país não é formado por idiotas.

Quem visitou Nova York no pós-atentado e passou entre os despojos das torres gêmeas, mesmo meses depois, pôde sentir o impacto da destruição. Edifícios vizinhos ainda enegrecidos pelo fogo, cicatrizes do impacto de peças, colunas ou seja lá o que for que um dia foi parte de um avião ou de um escritório, grossas camadas de poeira ainda acomodadas sobre janelas que não foram mais abertas. Árvores arrancadas pelas raízes e tumbas, nos fundos de uma igreja próxima, com suas lápides calcinadas pelo fogo.

E pode haver muito mais.

Líderes árabes moderados previnem que um ataque ao Iraque é capaz de abrir as portas do inferno, numa metáfora sem exageros. Uma reedição amplificada do que foi a Guerra do Golfo, a batalha executada pelas máquinas da ciência, as máquinas voadoras de Bacon, guiadas pelos olhos eletrônicos e insensíveis dos satélites que orbitam muito além das nuvens, fora da atmosfera da Terra, dependendo da posição do Sol, confundindo-se com o brilho das estrelas.

Cabe à imprensa, aos jornalistas de todo o mundo, neste momento, advertir para os riscos que se mostram no horizonte. Deixar de lado a simpatia ideológica, a crítica fácil, quando não o puro cinismo, para tentar evitar, literalmente, um banho de sangue que não levará a nada, a não ser a mais e mais ódio.

Saddam, criatura dos EUA

Em 1995, no primeiro encontro das Nações Unidas sobre mudança climática, em Berlim, um especialista local fez longa preleção a um grupo de jornalistas latino-americanos. Falou sobre os efeitos da posição de cada país, particularmente os Estados Unidos e sua recusa já conhecida de reduzir as emissões de dióxido de carbono e outros gases do efeito-estufa, posição renovada no encontro que se encerrou no dia 4 na África do Sul, durante a Rio+10.

Na sala, um dos ouvintes argumentou que o conferencista não levava em conta os efeitos do terrorismo, como ingrediente capaz de alterar profundamente a receita que ele cozinhava para o futuro.O homem não se abalou. Disse que era um argumento pouco consistente. Talvez tenha mudado de idéia, com os acontecimentos do 11 de setembro.

O terrorismo não é, porque a violência não é, a melhor forma de se resolver litígios. Para isso, em escala internacional, existe diplomacia, pressão econômica e outras armas de coerção que não fazem vítimas inocentes. A brutalidade da guerra leva a um estágio em que a razão não faz mais sentido e os impulsos mais primitivos assomam e assumem os controles.

Como potência única do planeta, os Estados Unidos não têm se mostrado, na atual administração, dispostos a ceder em nenhum de seus interesses ao bem-estar comum. A recusa no controle do efeito-estufa é um exemplo claro dessa irredutibilidade que se estende aos mercados e às forças militares. Há um rufar crescente de tambores, com perspectiva de se chegar ao ápice em novembro.

Mas também há esperança. Líderes políticos consultados neste fim de semana que antecede o 11 de setembro, à exceção de Tony Blair, desaconselham com veemência um ataque a Bagdá.

Além disso, como argumentou Susan Sontag, os Estados Unidos não são, de forma alguma, um país de idiotas. As pessoas estão pensando, e essa é a melhor maneira de se resolverem os problemas.

Além disso, é de se esperar que os jornalistas cumpram com um mínimo de isenção o seu papel. O de prevenir para o custo, os riscos e a insanidade de uma nova guerra.

Até porque, antes de se deflagrar uma guerra contra o Iraque, é preciso responder quem criou, e com que objetivos, o truculento Saddam Hussein.

(*) Jornalista especializado em divulgação de ciência, mestre e doutorando em Ciências pela USP, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC) e editor de Scientific American Brasil