Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Balancete à procura de um gestor

COBERTURA ELEITORAL

Gilson Caroni Filho (*)

Definida como um conjunto de práticas e idéias que se reforçam por ação recíproca, a hegemonia é um processo que tende a se impor como produtora de sentidos nos mais variados campos da vida social. Da imprensa aos partidos, atravessando estruturas familiares e processos pedagógicos, o pensamento hegemônico se afigura como cosmovisão axiomática e irremovível. O processo eleitoral e a cobertura dada a ele pelos principais veículos da imprensa brasileira evidenciam a vitória inconteste da lógica liberal. O liberalismo sempre viu na política um obstáculo a ser transposto. Um campo de paixões irracionais, incompatível com a maximização dos recursos alocados. A rigor, como expusemos em vários artigos neste Observatório, os defensores do livre mercado e a democracia sempre foram antípodas. A política como práxis transformadora, desde Adam Smith, é algo a ser neutralizado e, se possível, aniquilado. Parece que estão prestes a obter uma vitória acachapante. Independentemente do nome que as urnas consagrem e das legendas que logrem fazer maioria no Congresso.

Alianças impensáveis entre atores e formações partidárias supostamente antagônicas, indiferenciação programática e ausência de debate político são as marcas das próximas eleições até o presente momento. E, convenhamos, a imprensa não tem se prestado a ser mera registradora dos fatos. Antes, é parte constitutiva da financeirização da política, do esvaziamento ideológico dos debates e da fragilidade do sistema partidário. Seu apoio ao candidato governista não se faz tão explícito como em outras vezes. A quadra histórica ? hegemonia neoliberal ? possibilita uma falsa isenção. A intervenção eficaz se dá pelo balizamento editorial do que é politicamente relevante. Estão, desde já, fora do cenário temas incômodos como concentração de renda, reforma agrária; soberania nacional e política externa independente. Em seu lugar surge, nas páginas dedicadas à cobertura eleitoral, o arrazoado que interessa ao capital. Depurados de conflitos distributivos, aparecem, como um raio num dia de céu azul, conceitos e índices macroeconômicos.

Ciro, alvo preferencial

Superávit primário (receita menos despesas, descontados os gastos com juros), administração da dívida interna, taxa de juros, reforma tributária que desonere os exportadores, metas de inflação e Risco-Brasil são a expressão mais acabada do pensamento único. Deixaram as editorias de Economia e migraram para as de Política como fenômenos naturais. Não é um quadro que se ofereça como algo a ser revertido por uma política alternativa. Mas um roteiro inalterável à espera de um competente diretor. Ou, se preferirem, um balancete à procura de um gestor. Saem os cientistas políticos. Entram os consultores de bancos e empresas financeiras. Nunca a despolitização foi tão bem-engendrada. Jamais a economia (a ser distinguida das finanças) e a política se viram em plano tão reles.

Os deslocamentos sutis não podem ser confundidos com imparcialidade. Gostaríamos de partilhar do otimismo do sempre instigante Luiz Weis, em seu artigo "William Bonner para presidente". Mas parece que assistimos ao mesmo embate a partir de diferentes ângulos do ringue. A primeira rodada de entrevistas com os presidenciáveis promovida pela TV Globo não foi um marco nas relações entre imprensa e democracia. Antes, foi um exercício demarcatório.

A "expansividade" do telegênico editor e apresentador subtraiu tempo (exatos quatro minutos, segundo o Jornal do Brasil) do candidato Ciro Gomes. A tecnicalidade das perguntas condicionou a fala do entrevistado. O efeito esperado foi obtido com êxito. O candidato da Frente Trabalhista soou ininteligível para a maioria dos telespectadores. O ex-governador Anthony Garotinho foi submetido a uma sabatina estritamente regional e, por diversas vezes, foi interrompido por réplicas dos apresentadores. Desnecessário dizer que o tempo reduzido e o leque temático diferenciado estão longe de representar tratamento equânime. Serra e Lula, a polarização desejada pelo Planalto, dispuseram de maior espaço para responder às questões formuladas. Em suma, sem que estejamos emitindo preferência por qualquer candidatura, se afigura com clareza que Ciro Gomes é, no momento, o alvo preferencial das Organizações Globo.

O tratamento dispensado ao candidato no jornal da família Marinho merece olhar mais atento. Suas declarações atuais são confrontadas com posições contraditórias em passado recente. Procedimento não extensivo a outros candidatos. E a associação com Fernando Collor, feita pelo comitê de Serra, reverbera em quase todas as páginas da editoria de Política. Curiosamente, não se menciona que a tropa de choque do ex-presidente foi base de sustentação do governo que Serra representa. Aliás, qual foi mesmo a emissora que editou o debate entre Collor e Lula?

Até Greenspan rejeita

Pode haver algo mais antidemocrático que diluir diferenças políticas e estabelecer como parâmetro discurso de competência para o cumprimento de uma agenda única? Quando a astúcia política é substituída por uma inteligência operacional ainda cabe falar em pluralidade e democracia? Haverá uma militância motivada em mostrar que o seu candidato é mais confiável ao investidor externo? Que com ele o superávit primário será elevado e as contas públicas saneadas? A melhor alternativa para a redução da taxa de juros é discussão que empolgue a arena política? Prenderá a atenção do jovem (e)leitor saber que, para Mercadante, é alvissareiro que Armínio Fraga apóie uma "minirreforma tributária para reduzir a cumulativade dos impostos e aumentar os recursos para o Proex (Globo, 20/7)? Comoverá a combativa militância petista ouvir o deputado José Dirceu afirmar que, em recente visita aos EUA, tentou "convencer cada investidor, credor e economista, e mesmo o governo americano. de que é um erro, por uma crise mundial e dificuldades que o Brasil está enfrentando até por erro do governo brasileiro, abandonar o Brasil?" (Globo, 20/7) Ou não soaria mais coerente Luiz Inácio da Silva, saindo da moldura do marketing, dizer que o governo é "um bando de agiotas"? Além de mais preciso, politicamente mais autêntico com a própria trajetória de líder da mais forte expressão republicana.

E Ciro, usando a mesma argumentação de Serra, utilizar a crise argentina para atacar Lula? Osmose ou traição perpetrada por DNA do mesmo conservadorismo? O que dizer da naturalidade com que se apresenta, como balão de ensaio, um pacto de transição com o FMI, em que todos os candidatos assinem um acordo para manter as metas de inflação e superávit primário do atual governo? A versão cabocla e a rentista de Moncloa tilinta no baile do J.P.Morgan.

Com intensa participação da grande imprensa, os principais atores da festa eleitoral podem estar enterrando a política como campo de intervenção possível. A sensação de desalento já se faz sentir no eleitorado. As pesquisas, servidas como simulacro de expressão cidadã, são o espetáculo da temporada. Ainda mais quando a margem de erro é pequena. Reverter o quadro é possível?

Sem dúvida, sinais de insatisfação pipocam por toda a América Latina. Resultado de uma agenda que é posta sob suspeita até por Alan Greenspan e sua inabalável fé nas virtudes do mercado e seus fundamentos. Mas se o transformismo é a moda da vez e a renúncia à política a práxis dominante, haverá espaço para um arrivismo que não tem escrúpulos de sair às ruas. É aí que mora o perigo, senhores políticos e distintos editores.

(*) Professor-titular da Facha, Rio de Janeiro

Leia também