Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Banquete com o dinheiro público

NEGÓCIOS, NEGÓCIOS

Lúcio Flávio Pinto (*)

A Funtelpa (Fundação de Telecomunicações do Pará) pagará, até o final do ano, entre 3,5 milhões e 4 milhões de reais à TV Liberal para que a emissora, usando a rede de transmissão de imagens da TV Cultura, veicule em todo o interior do estado a programação da Globo, da qual é afiliada.

O enunciado da sentença deve ter desnorteado o leitor. Explique-se: a Funtelpa, que é uma entidade pública estadual, cede seu conjunto de torres e base de apoio em terra para que a TV Liberal, uma empresa comercial, possa transmitir suas próprias imagens e programação. Mas, em vez de cobrar por essa prestação de serviço, é a Funtelpa quem paga à firma privada. A compensação seria dada com a cessão de espaço na TV Liberal para a propaganda do governo do estado.

Essa inusitada relação vem sendo questionada desde seu estabelecimento, em setembro de 1997. A Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado considerou o acerto ilegal e lesivo ao interesse público. Uma ação popular foi proposta na Justiça contra a parceria. Indiferentemente a essas reações, durante cinco anos da administração Almir Gabriel a Funtelpa transferiu 20 milhões de reais do erário para os cofres da emissora particular de televisão. Seria como se o governo tivesse construído uma Estação das Docas inteirinha para a família Maiorana.

Em setembro do ano passado o insólito trato comercial chegou ao fim. Mas o governo Almir Gabriel assinou um aditivo prorrogando-o por mais três meses, até o fim de seu mandato. Desde que substituiu seu antigo chefe, em 1? de janeiro, Simão Jatene vinha tendo essa herança atravessada na garganta. Mas no mês passado deglutiu-a. O Diário Oficial do dia 19 publicou o extrato de um termo aditivo prorrogando por mais 12 meses o "convênio de retransmissão via satélite". O documento dizia que as "despesas acrescidas" seriam especificadas "em Termo Próprio", sendo cobertas por dotação orçamentária do exercício de 2003.

Perguntas aos canais competentes

Velho leitor da papelada oficial, jamais havia visto algo semelhante. Liguei para duas fontes oficiais atrás de esclarecimentos. Explicaram-me que havia ocorrido um erro: a responsável pela elaboração do termo aditivo tomara um documento errado por modelo. No dia seguinte o aditamento foi republicado, sem a menção ao "Termo Próprio" posterior, nem a "despesas acrescidas". O valor seria o mesmo de cinco anos e meio atrás, de 200 mil reais por mês, com a correção monetária pelo IGPM durante o período.

Feita a correção formal, porém, o documento continuava a suscitar dois questionamentos à margem da configuração legal e moral do trato entre a Funtelpa e a TV Liberal. O primeiro: subsiste a estrutura mambembe do convênio? A auditoria do TCE já demonstrou que essa forma é ilegal. A relação devia ser estabelecida em contrato comercial, não de convênio, adotado apenas para permitir a fuga das exigências da Lei de Licitação Pública (e da própria opinião pública, que certamente se perguntaria sobre a motivação de uma televisão pública, com objetivos educacionais e culturais, ceder seu espaço a uma televisão comercial, negando sua própria razão de ser). O segundo questionamento: depois de cinco anos (e mais três meses de capenga prorrogação) de vigência, a relação pode ser aditada novamente? Cinco anos são o prazo máximo permitido pela Lei 8.666, de 1993. Mesmo que o governo quisesse continuar a afrontar (nesse e em outros itens) a lei, não deveria assinar outro convênio?

Ficam as perguntas endereçadas aos ditos canais competentes, seja no Executivo como no Ministério Público do Estado, que, nesse caso, tem sido como uma princesa à espera do beijo do sapo natural (desprovido de metamorfose mágica, portanto). Sapos, aliás, não faltam nesse banquete com o dinheiro público.

(*) Editor do Jornal Pessoal, de Belém (PA)