Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Baseado em fatos reais

SEXO, VIDA E MORTE

Felipe Sáles Gomes (*)

Na quarta-feira, 8/4, a Rede Bandeirantes fez o favor à humanidade de veicular o polêmico documentário A vida íntima de Michael Jackson, no qual a imagem do atormentado cantor é destroçada, em clima de Linha Direta, por Roberto Cabrini, envolto na aura automasturbatória do responsável pelo documentário, de cujo nome não faço a mínima questão de lembrar. Michael Jackson tem suas bizarrices, disso não há dúvida; mas também fica claro que meteram uma lupa em suas esquisitices. E a imprensa mundial ? e a brasileira, claro ? embarcou no sensacionalismo barato, condenando e veiculando fofocas, enfim, dando vazão ao nosso cada vez mais sexualizado cotidiano, permitindo-se às notícias-showbusiness e resumindo-se a um jornalismo baseado em fatos reais.

Como bem disse Caetano Veloso, "de perto ninguém é normal". Mas, com Michael Jackson, que se auto-estipulou em mais de um bilhão de dólares, sua anormalidade é levada ao êxtase. Só mesmo uma sociedade machista, preconceituosa e hipócrita ao extremo para relacionar tudo a sexo. E o papel da mídia?, conscientizar?, dar ao povo o que o povo quer? Definitivamente, dormir com crianças não é normal; mas também não há nada de errado ou ilegal. A própria linguagem está tão carregada de duplo sentido que até o verbo dormir já denota em si sexualidade. E quem deveria primar pela língua, nessas horas, dorme.

É aquela velha história: a maldade está nos olhos de quem vê. E, no caso de Michael Jackson, toda a imprensa pareceu ver ? ou fingir que viu em nome do sensacionalismo. Está certo que ele tem um histórico de acusações de pedofilia, mas se restringiram a isso, acusações ? sendo julgado e condenado apenas pela própria imprensa ?, e, mesmo assim, poucos foram os jornais que, ao darem espaço ao depoimento do documentário, enfatizaram a acusação. Ou seja, condenaram o cantor pelo simples fato de ele ter dito que dormiu num mesmo quarto com uma criança.

O único argumento de defesa permissível é que ele pode ter descredenciado todo o seu depoimento com algumas mentiras deslavadas, como quando disse ter feito apenas duas cirurgias plásticas no nariz. Isso sim foi bizarro, mas… e daí?! Pelo sim ou pelo não, é apenas fofoca, "vida íntima…" de artista a que toda mídia dedicou seus valiosos espaços. E mesmo que ele tenha mentido, nada mais justificável que o cantor esconda da mídia, pois como ? pelo menos isso ? ficou claro no documentário, o sofrimento em toda a sua vida foi perene, inclusive por questões estéticas moralmente condenadas pelo próprio pai, enquanto ele, criança, ainda tinha que enfrentar o mundo diante das câmeras. Com seu histórico, nada mais justificável que se sinta confortável apenas junto à ingenuidade e à inocência mais que nunca restritas à infância.

Holocausto da verdade

Mas toda a imprensa não seu deu ao trabalho de fazer reflexões, meter o dedo na ferida, levantar doenças psicológicas possíveis do cantor ou o porquê do cunho sexual em quaisquer assuntos. Resta saber: a imprensa brasileira embarcou na onda sensacionalista internacional, ou teve a "capacidade" de julgar por conta própria? Todo o mundo está submerso no sexismo ou temos um maior talento para isso, país do carnaval e da égüinhas pocotó? Os programas de humor podem ser um bom termômetro: nunca estivemos com um senso de humor tão atrelado ao trocadilho e às piadas de cunho sexual. Casseta & Planeta que o diga.

Tudo isso retrata bem não apenas uma nova época ? acompanhada e apoiada pela mídia ? regida exemplarmente pelo sexualismo, como também às notícias showbusiness. Dois outros exemplos amplamente noticiados: quando a "empresa" Clonaid convocou coletiva de imprensa e, simplesmente, disse que tinha clonado um ser humano e fim de papo ? o maior golpe de marketing da história; e, mais recentemente, na "propaganda" em que uma multidão de iraquianos festejou em volta da estátua derrubada de Saddam ? tornou-se irrelevante a informação de que se tratava na verdade de xiitas, estes, desde sempre contrários ao regime do ditador, e portanto, reação natural que não significa necessariamente apoio popular.

Essa informação, fornecida pelo correspondente Marcos Uchôa, estava contida num breve comentário. Na ocasião, o Jornal Hoje, da Rede Globo, preferiu enfatizar que aquelas imagens entrariam para a história. Tudo como no cinema (leia-se, entretenimento): no primeiro exemplo, da Clonaid, a sensação de vivenciarmos um filme de ficção, e no segundo o final "feliz" de um filme dramático. Sexo, vida e morte em prol da audiência. Em tempos de guerra e sensacionalismo gratuito, assistimos ao holocausto da verdade. E o jornalismo, pano de fundo, mero artifício para considerar tudo "baseado em fatos reais".

(*) Estudante de Comunicação Social